A salga de peixe

Pescar bacalhaus é tudo menos divertido. Por absurdo, poderíamos comparar a sua pesca a uma “estopada” de pescar pampos durante seis meses seguidos, horas e horas, todos os dias.
Se hoje vamos pescar por prazer, porque gostamos de pesca e dos peixes, digo-vos que na altura das safras da pesca ao bacalhau, se pescava por todas as razões menos essa.
Haveria muito boa gente a odiar a pesca. Mas tinha de ir.

A pesca do bacalhau e a sua salga foi um modo de vida exclusivo para muitos milhares de portugueses.
Para os mais novos, poderá parecer estranho que algum dia se tenha considerado a possibilidade de salgar peixe. Em contrapartida para os mais velhos, trata-se de uma técnica de conservação de alimentos tão válida quanto qualquer outra.
O advento das arcas frigoríficas e dos vulgares frigoríficos veio dar possibilidades de alongar no tempo a duração de produtos que, de outra forma, ficariam estragados em poucos dias. Hoje, apenas em meia dúzia de pontos no nosso país é possível adquirir peixe seco. Recordo-me dos meus tempos de miúdo, em que se compravam tentáculos de polvo assado, que mais não era do que polvo salgado, seco ao ar, e assado no momento.


Quantos daqueles que lêem este texto se lembram do cheiro delicioso do polvo seco assado que comprávamos nas feiras?


Mas nem sempre foi assim, nem sempre existiram frigoríficos, e a conservação em sal teve o seu tempo.
Se em terra a matança do porco era um ritual familiar, e uma forma de preservar e consumir proteína a baixo custo, também os produtos do mar não iriam passar ao lado desta técnica, a salga.
Entrou na cultura portuguesa, e de forma bem enraizada, o consumo de bacalhau. Desde logo por ser um alimento fácil de preservar, de baixo custo, que podia ser confeccionado de inúmeras formas.
E isso foi fundamental para o êxito da criação de um cenário comercial, de oferta e procura.
O tema que vos trago hoje tem a ver com a salga de peixe no nosso território, e para o entendermos, teremos de recuar no tempo, até ao século XVI. Vamos ver se isto faz sentido.

As grandes safras de captura de bacalhaus remontam ao século dezasseis, aos famosos “Bancos dos bacalhaus”, na Terra Nova.
Estas viagens aos mares do norte foram uma saga que mobilizou todo o nosso país, não só a nível do consumo, mas também em termos de construção naval, de produção de sal e de ocupação de mão-de-obra. Foram os tempos em que naqueles mares havia mais portugueses que todas as outras nacionalidades juntas. Por razões que se prendem com um controlo muito apertado dos ingleses da actividade naquelas paragens, e também porque os nossos esforços enquanto nação foram dirigidos para as nossas ex-colónias e o comércio de outro tipo de produtos, houve um interregno de 3 séculos, sem viagens àquelas paragens. Até ao século XIX não mexeu, pese embora o consumo de bacalhau se tenha mantido durante todo este tempo. Passámos a comprar produto importado, vindo de Inglaterra.
Em 1884, e já com outras premissas no que toca ao livre-trânsito naquelas águas, voltámos então à pesca, com navios e tripulações exclusivamente portuguesas. E inovámos. Fomos para a Terra Nova, distante do nosso país cerca de 1860 milhas, com métodos diferentes e mais produtivos. A pesca com pequenas embarcações, em solitário, os doris, a remos ou à vela, permitia maximizar as possibilidades de conseguir encher o navio mãe no mais curto espaço de tempo.
Dito isto, poderão pensar que se pescava em três dias e se voltava a terra. Nada disso. O trabalho era de tal forma árduo que muita gente morreu a executá-lo. Morriam por se perderem no mar, longe do navio fábrica, e morriam de cansaço.
Falamos de uma pessoa pescar 8 a 10 horas / dia, sozinha, voltar ao navio, começar a esventrar peixe até ao último, e a seguir proceder à sua salga. Tudo isto significava uma rotina diária de 18 a 20 horas de trabalho, e espantem-se com isto, durante meses e meses.
Porque havia o compromisso de pescar para o barco o máximo de peixe possível, porque este pagava um salário e dava alimentação, e porque havia uma remuneração salarial variável individual, que dependia dos resultados diários de cada um, muitos dos pescadores portugueses foram até ao limite da exaustão. Imaginem o que era pescar com linhas de mão, com feridas abertas e sem tempo nem condições para fechar essas chagas.
Aquilo que fazemos hoje é pescar por prazer e em rigor não tem nada a ver com o que se fazia.

Há que contextualizar a pesca do bacalhau com as dificuldades que havia de fazer chegar peixe em condições minimamente aceitáveis ao interior do país. A demanda era enorme para um produto que podia ser guardado na casa de cada um pelo tempo que fosse preciso.
De 1930 a 1960 deu-se uma explosão no consumo interno, e mais e maiores navios foram construídos para estes trabalhos. Em 1958, tínhamos 77 navios a operar na safra do bacalhau. Portugal conseguia cobrir 88% da procura interna com produto capturado pela frota portuguesa.
Os restantes 12% vinham de Inglaterra, com quem tínhamos acordos compensatórios de exportação de produtos nossos, nomeadamente vinhos, cortiça, etc.

Por razões que se prendem com a imposição local de restrições às capturas e o acesso a determinados locais de pesca, por volta de 1960 os navios começaram a retornar a Portugal com os porões meio vazios.
A existência de quotas de pesca tornou a actividade inviável para quem ali se dirigia de tão longe e começou aí o declínio da actividade.
Há outras razões, que se prendem com a impossibilidade de o Estado Novo poder continuar a subsidiar o custo do kg de bacalhau ao consumidor, a situação de guerra no Ultramar em 1961, etc.
A necessidade de meios humanos e militares para travar combates, a instabilidade política e todo um encadeamento de razões, e chegamos a uma altura, 1974 a 1977 em que já não havia possibilidades de manter operacional a frota naval.
Terminou aí a saída de barcos de pesca portugueses para a pesca do bacalhau.

Em traços largos, este é um resumo curto daquilo que levou à existência entre nós de uma técnica de conservação de peixe através do sal. Mas a técnica em si ficou-nos gravada e por isso continuou a ser utilizada pelas populações.


As vejas, um peixe firme, com carne às lascas e cujos lombos se prestam na perfeição para a salga.


Também nas nossas ilhas a salga de peixe era, na ausência de frigoríficos, a única forma de preservar comida para os tempos de escassez do Inverno.
A veja é pescada à linha no Verão, com pedaços de caranguejo da pedra, e depois de arranjada de tripas e escamas, cortada de forma a fazer um longo filete.
Bem coberta de sal, coloca-se em cima de uma tábua, que se recolhe ao interior durante a noite, para não apanhar humidade.
Durante o dia apanha sol directo, e fica seca ao fim de três a quatro dias. Conserva-se seca em sal, como o bacalhau, e é cozinhada da mesma forma. A sua carne é firme, às lascas, e o sabor francamente bom.
Outros peixes são também utilizados para fazer estas salmouras, tais como a cavala, o safio, a abrótea, e mesmo o carapau.
O producto pode ser mantido durante meses, e é uma óbvia mais valia para as populações com mais baixo poder económico, pois a salga é feita com espécies de baixo custo.
Há hoje algumas empresas a fazer ressuscitar estes métodos e felizmente que sim, que estão a obter êxito. Preservar a tradição, o conhecimento, o saber, é de toda a importância para todos nós.




Eu tive a oportunidade de experimentar veja seca na freguesia da Manhenha (estranho nome…!) na ilha do Pico e posso dizer-vos que sim, que é um substituto perfeito para o bacalhau.

Espero que tenham gostado.



Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. Obrigado por mais um excelente registo.
    É um privilégio acompanhar o seu blog.

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    Respostas
    1. Bom dia Paulo! Seguimos na nossa missão de informar, de procurar chamar a atenção para detalhes que, sendo colaterais em relação ao acto de lançar linhas e anzóis, não deixam de ser pesca, não deixam de ser mar.
      Acho que os leitores do blog vão ficar satisfeitos com um tema que tem a ver com a preparação do peixe que pescamos. Foi um trabalho muito longo e difícil, pela quantidade de contactos que tive de fazer, ( seis semanas no total, com muitos deles feitos no Japão), mas que me deu um gozo tremendo. Tenho a certeza de que vão gostar. Só irá sair lá para fim de Maio, há muita coisa já feita, na grelha de publicação diária. Procurei dar um pouco mais aos dedos, porque agora vou começar a sair quase todos os dias ao mar e o pouco tempo que sobre é apenas para limpar, lubrificar equipamentos e descansar.
      Tenho vários projectos de textos em mãos, muitas ideias para colocar no papel.
      Assim vocês tenham a paciência de ler.....
      Temos de sair à pesca, está tudo cheio de peixe!

      Abraço
      Vitor

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