A tainha, má fama que vem de longe

Não as vemos. Mesmo quando estão à frente dos nossos olhos, mesmo quando são às centenas, não as vemos.
O olhar de quem observa a vida marinha não se detém sobre este peixe. E porquê? Porquê esta má fama que nos impede de a considerar ao mesmo nível de qualquer outro peixe da nossa costa?




É isso que vamos tentar entender hoje. A sua reputação de peixe sujo, de comedor de lixos e detritos à superfície, deu-lhe mau nome, má fama e dificilmente no futuro se sairá deste registo.
Este mugilídeo vive em ambientes estuarinos, e habita os primeiros 20 metros da orla costeira. Na verdade, não se aventuram muito para fora, porque sabem ser uma alvo fácil para muitos predadores.
Dizem-nos que as tainhas que se encontram na praça, nas bancas de supermercados, são capturadas no alto mar. Mentira! Ainda estão para vir as tainhas de alto mar….as que se atrevem a afastar-se levam pancada dos predadores do azul profundo, os espadartes, as tintureiras, os atuns, os tubarões makos, os espadins brancos. Mais próximas da costa, das anchovas, os robalos, os lírios. E para além disso, há que contar com um mamífero que as adora: o golfinho.
Mesmo dentro do rio, os robalos dão-lhes caça. Seria mais correcto dizer-se que pela frota pesqueira se capturam em mar aberto, na costa. Isso sim, é verdade, embora se trate de um “by-catch, algo que aparece nas redes sem ser procurado.
Dizem-nos que podem facilmente substituir o robalo, e que são bem mais baratas. Também é verdade, na parte do mais barato, o seu preço não excede os 3/ 4 euros / kg no mercado. Uma tainha de águas limpas tem algum valor gastronómico, e seria até um peixe interessante, não fora o facto de acumularem toxinas nas suas deambulações por zonas de grande actividade humana. São correntes nas marinas, onde vivem debaixo dos barcos, raspando as algas do casco destes. Mas é também aí que se alimentam de óleos, de detritos vários que flutuam nesses espaços. Junto às grandes cidades, é frequente vê-las à superfície, dando preferência a zonas com muita matéria orgânica, nomeadamente saídas de esgotos, portos marítimos.
Se são capturadas fora, longe dos grandes centros populacionais, também é verdade que passaram grande parte da sua vida a comer o que não deviam. O facto de serem capturadas fora não significa que tenham vivido sempre fora. Em dados momentos do ano, sobretudo na época de reprodução, é corrente que se formem grandes bancos de peixes, e que se vejam muito por fora dos estuários. Mas hão-de voltar aos seus “lixos” orgânicos e a tudo aquilo que fez delas um peixe a ser evitado.
Quando no mar, em condições de vida que poderíamos chamar de normais, alimentam-se de algas, alguns tipos de plantas aquáticas e pequenos seres invertebrados. Isso é o que procuram avidamente durante o dia, sendo que as encontraremos mesmo em mar aberto, em zonas baixas, em locais onde tenham sido efectuadas posturas de ovas que se encontrem à superficie. Eu vejo-as ao longo da costa, em zonas até aos 20 metros de fundo, indistintamente se são zonas de pedra ou areais. Mas se há sitio mais querençudo, é de preferência onde houve descargas ou lavagens de porões, ou nas manchas de pó amarelo da floração dos pinheiros.




Sentem-se particularmente à vontade em zonas rochosas que tenham muita pedra partida, que lhes dá protecção contra predadores que possam chegar do largo.
São perseguidas por todos os grandes da costa e ainda pelos golfinhos.

Temos entre nós diversas sub-espécies deste mugilídeo: Lisa aurata, Chelon labrosus, Lisa saliens, Lisa ramada, e Mugil cephalus, as maiores do grupo. Quando falamos de tainhas grandes, costumamos pensar em adultos na ordem dos 50 cm. Para as nossas águas continentais será eventualmente uma medida razoável, mas se soubermos procurar nas nossas ilhas, temos que não é de perto nem de longe o grau máximo de crescimento. A tainha nos Açores cresce muito mais que isso, e não raro ultrapassa os 5 a 6 kgs de peso, para cerca de 1 metro de comprimento. Vivem debaixo de lajões escuros, em cardumes de algumas dezenas de exemplares, e têm actividade essencialmente costeira. Na ilha de S. Miguel há colónias destes peixes em locais bem demarcados. É verdade que são muito frequentes em determinadas pedras, e pelos vistos, também particularmente apreciadas em termos culinários. Recordo-me do saudoso e meu amigo Artur, cantoneiro de profissão, uma fantástica pessoa que durante 41 anos pescou em regime non-stop no mesmo pesqueiro, na Freguesia da Salga, no famoso “Calhau”.
Recebia um salário sem no entanto ter muito a fazer. Um daqueles empregos camarários que servem para distribuir algum dinheiro por famílias carenciadas. A sua ocupação era apontar o número de carros que passavam pela estrada asfaltada, para fazer a “estatística”. Dizia-me que preenchia os papéis à segunda feira de manhã, para toda a semana: “ Vitor, os que passavam eram quase sempre os mesmos, eram as carrinhas do leite, o pessoal que ia trabalhar para a cidade”…
Durante quatro décadas, poucos dias terá falhado a pescar na mesma pedra. Já debilitado de um cancro, ainda assim continuou a ir pescar os seus peixes, as suas tainhas gigantes. Os filhos levavam comida para baixo, e traziam o peixe para cima, para a casa de família. Na verdade, a habitação não oficial daquele amigo era aquela, a sua pedra Artur. Tentem imaginar alguém que, ao longo dos anos, com martelo e escopro, esculpiu um cadeirão na rocha, virado para a zona certa do pesqueiro. Da rocha bruta fez nascer um sofá de pedra, com furos redondos nos apoios dos braços, para enfiar as canas. Ali pescou até falecer.




A maré enchente permite-lhes chegar a zonas de pedra mais altas, na zona entre-marés, com mais sol, sempre mais produtivas em matéria vegetal.




Porque se alimentam de limos verdes, procuram as pedras lisas viradas ao sol, onde estes crescem. Com a sua maxila inferior em forma de espátula, lisa, raspam as pedras e conseguem obter alimento que não interessa a muitas outras espécies.




Fora dos estuários também é possível encontrar tainhas. Se há momentos propícios, a floração dos pinheiros é um deles: o pó dos esporos que largam ao vento, e que cai à água formando longas bandas amarelas, é um atractivo para esta espécie.




Na costa, a tainha dá preferência a pedras carregadas de limos verdes. Todavia, é possível pescá-las com minhocas, e até com pequenas bolinhas de pão.
Também as desovas de outros peixes lhe interessam, e é comum vê-las a babujar a superfície, (ver canto superior esquerdo da foto acima) onde estas se encontram a flutuar.
Nesta circunstância recebem a concorrência das cavalas, que também vêm à superfície comer algo que os nossos olhos não vêem, por ser transparente, mas que é proteína e por isso aproveitado.




Toleram a presença de predadores como o robalo, que, até um determinado tamanho, não as incomodam. Este, obtém uma camuflagem fácil, por ser do mesmo tamanho e sensivelmente da mesma cor.
Os robalos acompanham a deslocação das tainhas para, do meio destas e da sua pachorrenta deslocação, desferir ataques a peixes miúdos, incautos e completamente despercebidos da sua presença.




No momento da enchente, cruzam-se nas pedras com outras espécies, nomeadamente os sargos, as douradas, de quem não são concorrentes directos.
Cada um procura a sua ementa.




Podemos encontrar tainhas em zonas de pedra forte, desde que esta tenha algas incrustadas, que lhe servem de alimento.
Quando em zonas sombrias, exibem uma coloração muito escura, um antracite escuro, quase preto.




Também na areia conseguem descobrir pequenos vermes e por isso não dispensam passagens por estes extratos. Reparem que mudam as cores para um creme mais próximo da cor do fundo.




E por vezes corre mal. Há sempre alguém que chega para aproveitar os despojos. Os safios são quem faz este trabalho mais frequentemente, mas outros existem: os búzios, as estrelas do mar, os polvos, etc.

Na verdade, e mesmo que não entrem na lista de peixes que fazemos questão de trazer para casa e apresentar à nosso querida esposa, longe disso, ainda assim, existem, têm uma função a desempenhar.
Ocupam um nicho muito específico, fazem falta e contribuem para a manutenção da biodiversidade. E só por isso, já merecem o nosso respeito.
Não estão em vias de desaparecimento, nem por sombras, tal como as salemas, outras mal amadas, motivo do nosso próximo artigo.
São peixes que não são objecto de pesca dirigida, são desprezados, de resto como tudo aquilo que não vale dinheiro. Se não dão lucro, não se pescam.

É bom saber que andam por lá, seriamos seguramente mais pobres sem elas.



Vítor Ganchinho



6 Comentários

  1. Tanto tainha como salema são peixes que dão belas refeições. Por cá temos o mau (ou bom, dependendo do ponto de vista) hábito de desprezar muitas das espécies que habitam a nossa costa. Quanto a mim, qualquer peixe de mar é bom para comer. É preciso é saber prepara-lo!

    Por outro lado, inevitavelmente vai chegar o tempo em que até o mais restrito dos pescadores no que a espécies alvo diz respeito, terá de dedicar as suas jornadas às tainhas, salemas, bogas, cavalas, e etc... Com a crescente e rápida diminuição dos stocks não adivinho um futuro muito risonho.

    Boas proas

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    1. Grande Gradeiro Já se está a ver que não concordo! Por mim, pode ficar com elas todas, que eu como uma posta grossa de pregado de mar, na grelha de carvão, ou um robalo. Mal comparado, é dizer que as mocinhas são todas iguais, que é tudo uma questão de preparação....
      Então uma loira alta e esbelta, de cintura estreita, bem apessoada, é igual a uma ruiva baixa e gorda com falta dos dentes da frente?!......
      Não me lixe!

      Venha daí à pesca comigo, que eu mostro-lhe que há coisas bem melhores que pescar salemas.....

      Abraço, Gradeiro!




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    2. Não troco de todo um bom robalo ou uma baila por um bom robalo, mas se me calhar uma no anzol nas águas do Sintra ou Peniche não me faço rogado. Até porque em pesca de terra estamos sempre limitados nas espécies que nos possam calhar...

      Pode ser que ainda este ano tenha condições de ingressar numa saída de lrf com a go fishing, não tanto pelo peixe mas pela experiência.

      Grande abraço

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    3. Pressuponho que se refira a uma tainha quando diz: "Não troco de todo um bom robalo ou uma baila por um bom robalo", mas entendo a mensagem.

      É o que lhe digo, eu levo-o a pescar bichinhos que fazem com que queira saltar desenfreado aos pés juntos para cima da tainha, com mais força que um martelo pneumático!
      As tainhas podem ser boas para comer, em ilhas que não têm produção industrial, que não têm excesso de poluição ( há sempre alguma se lá morar gente...), e onde elas têm mesmo de se alimentar de matéria orgânica natural.
      De resto, é sempre andar aos beijos com uma mocinha a quem faltam os dentes da frente...

      Apareça!



      Um abraço
      Vitor

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  2. Bom dia!
    A minha primeira Corvina de 31Kg pescada de terra, tinha como isco uma Tainha de quase 1Kg. :) Antes tinha deixado fugir uma outra corvina porque os anzois estavam totalmente dentro do lombo e a corvinha conseguiu regurgitar tudo sem ser ferrada!! Sucesso só com ponta do anzol bem a vista, mas elas têm uma pele extremamente resistente que aguenta! Abraço, MR

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    1. Venha de lá essa foto com a corvina! Queremos publicar aqui os êxitos de cada um dos amigos que nos acompanham nesta caminhada da pesca. Uma corvina de 31 kgs em princípio será sempre melhor que um pontapé nas costas, ou uma fratura exposta do fémur, com os ossos à vista.

      Parabéns Ribeiro por esse peixe de 31 kgs. Eu nunca fiz nenhuma tão grande. Mas já fiz um peixe que a engole....inteira.

      Mande fotos! O Hugo Pimenta vai ter de nos dizer como é que isso se faz. Vou perguntar a ele se posso publicar o meu e-mail.


      Abraço
      Vitor

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