Fui à pesca com o João. Corto as veias dos pulsos com uma faca, …ou não?!!

Cá estou eu mais uma vez, a contar-vos das minhas intermináveis conversas com Jesus Cristo. Vá lá saber-se porquê, falamos muito sobre penitências e pagamento de pecados.
Vou hoje relatar-vos uma saída de barco com um amigo meu. E não, não fui com nenhum dos apóstolos, pese embora entre eles houvesse pessoal da pesca. Esses, Simão Pedro, André, Tiago filho de Zebedeu, Tiago, filho de Alfeu, João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tadeu, Simão e Judas Iscariotes, eram rapazes pacatos, amigos do seu amigo. O amigo de que vos falo é de Sesimbra e não é, tanto quanto sei, apóstolo de Cristo.

Chamemos-lhe apenas João Nuno, para não ferir susceptibilidades….e não é de todo o mesmo João que almoçava à mesa da santa ceia.
Este é outro João, outra loiça, e por sinal muito menos católico e muito menos amigo do próximo: viria no fim a cravar-me umas notas de euros para a gasolina do barco….coisa que nenhum apóstolo decente faria.

A minha intenção era tão simplesmente experimentar três canas de pesca novas que me tinham chegado do Japão. Há pessoas que acampam à espera do lançamento do novo I-Phone. Eu espero uma semana pelo lançamento de uma cana, ou um novo carreto. São gostos. Na circunstância, nem levei muito a sério a possibilidade de virmos a pescar algo. Bastava-me poder lançar umas linhas e ver o comportamento das canas quando em carga. Pareciam-me boas. De resto, os produtores de canas japoneses não sabem fazer mau material. Também não iriam longe, pois o padrão de qualidade é tão alto que não permite distracções. Fabricar ruim é fabricar para deitar fora, porque não se vende. Por isso, as minhas canas são sempre boas, umas melhores que outras. Podem olhar para elas pelo canto do olho, mas por amor de Deus, não olhem nunca directamente para as minhas canas, de forma alguma. São altamente venenosas! Em caso de olhar acidental, é lavar a vista com água tépida, e a seguir colocar um colírio anti-inflamatório, Visadron, ou Visine.
O amigo João tem de organização e arrumação de barcos a mesma noção técnica que eu tenho em química de fabricação de próteses dentárias. Ele não sabe onde meteu os coletes de segurança, e por isso não os usa, e eu não sei muito sobre Acrilonitrilo-Butadieno-Estireno.
Ele tem uma ideia de que deve ter a bordo duas âncoras, mas não acha nenhuma, e eu penso que, se me enchesse de brios, seria capaz de um dia conseguir entender para que serve o Tripropileno glicol metil na parte da placa que encosta à gengiva.
Tudo isto para vos explicar que o moço teve a amabilidade de me convidar para sair à pesca com ele, no barco dele. E eu, que acredito fervorosamente em Deus e na garantia da vida para além da morte, aceitei. Foi a minha desgraça.

Cheguei à Marina à hora marcada por ele: 9.30h. Não preciso de vos dizer que, quando vou aos robalos, a essa hora já eu costumo estar de regresso a casa. Mas se ele diz que é assim, pois seja, embora a minha hora normal sejam as 6.30h…AM.
Fiquei no carro a fazer tempo, e já perto das 10.00h resolvi ligar-lhe: _João, era hoje …ou não?...

Que sim, que estava quase a sair de casa. E eu esperei, com o material de pesca na mão, olhando as tainhas da doca e a sua azáfama de raspar limos, encostado às canas com a mesma santa paciência com que um pastor de ovelhas se encosta a um cajado.
Às tantas, e porque me tinha dito que o pontão onde tinha o barco era o primeiro, resolvi tentar descobrir o dito. Nas palavras dele, o barco seria o mais bonito e estimado da marina. Havia uns quantos barcos que correspondiam às características dadas, com design, com algum tamanho, bem motorizados e limpos. Passei por uma pessoa de idade que me saudou, num “bom dia” abafado pela máscara anti-covid. Estava a meter geleiras para bordo de um barquinho pequeno, sujo, e muito desarrumado.
Respondi à amabilidade com um sonoro bom-dia, mas com os olhos postos num barco parqueado a uns 50 metros daquele, um Parker de 9 mts, novo, com boa pinta, com um fora de bordo de 300 HP. Mas não estava lá ninguém.
Voltei atrás e foi então que o vi, de mãos nos bolsos, a chegar com aquele andar compassado de quem não tem pressa nenhuma. Algo correu mal, porque parou exactamente onde estava o tal barco pequeno. Um barco de fibra, mas pouca.
Um barco feio, reparado com muito mais fita-cola do que o que seria de esperar. A porta da cabine seguramente terá sido comprada num vendedor de alumínios para marquises, … em segunda mão.
É aquele tipo de barco que, a princípio, e pelas fotos na internet trabalhadas com muito Photoshop, quereríamos alugar por uma semana completa, dia e noite, para sairmos com os amigos. O chamado aluguer de longa duração.
Só que depois de uma breve vistoria presencial, e olhando ao estado geral da embarcação, não há quem não rectifique a intenção de aluguer para um período que seja superior a 6 minutos.
Entrei. Voltei de novo a cumprimentar a pessoa que estava bordo, que me pareceu não ter culpa nenhuma daquela desarrumação. De resto, estava a tentar compor um pouco as coisas, e até me pareceu meio constrangida pelo estado do barco.

O João Nuno conseguiu abrir a porta e retirar do meio do exíguo compartimento a que ele chama cabine, uma cadeira de caça. Algo que seria natural se a ideia fosse fazer uma espera aos javalis, mas que não esperamos ver a bordo de um barco cabinado.


A cadeira de caça, a meio do poço. Em termos práticos, a tramar todo o pouco espaço disponível aos colegas de pesca.


Feitas as exéquias das apresentações e cumprimentos, fiquei a saber que o destino seria o Cabo Espichel. Pedi-lhe um colete de segurança. A resposta veio meio embrulhada: “Nem sei se tenho…” o que me levou a pensar que só isso já daria para pedir a demissão de todo o concelho de administração do barco. Ainda tentei argumentar” _ Mas João, o colete é obrigatório por lei e faz falta. Devias ter meia dúzia no mínimo. Caso não tenhas, arranja-me qualquer coisa, nem que seja um soutien insuflável, mas arranja-me qualquer coisa”…
Que não, que só tinha um e era para ele. Do meio de uma lixeira a céu aberto a que chama porão, conseguiu descobrir algo que já tinha sido um colete, mas seguramente do tempo da monarquia portuguesa. Eu tenho as vacinas do tétano em dia, e embora com relutância, cobri-me daquele despojo de guerra, rasgado e fedorento. Cheirava a bafio. Antes queria inalar clorofórmio. Nem tentei perceber se era de alguma forma possível encher o dito em caso de aflição, porque de repente quase me saltaram os olhos das órbitas, quando o vejo sentado, a começar a empatar anzóis.


Empatar anzóis no dia de sair à pesca?! Às 10.30h?!


Fiquei a pensar a que horas iriamos começar a nossa pesca. Caixas de anzóis e destorcedores espalhados pelo chão não auguravam nada de bom. Os minutos passavam e a situação não melhorava.
Eu que tenho sempre uma reserva com umas dezenas de baixadas e imensos anzóis empatados, pareceu-me estranho que ele tivesse necessidade de estar atracado, àquela hora, a fazer aquilo.
O João Nuno tem todo o tempo do mundo para preparar os equipamentos, goza de uma reforma dourada, e sobra-lhe tempo para tudo.
Quando pensei que já estava, que estaríamos finalmente prontos para largar amarras, eis que resolve fazer uma escolha prévia de caranguejos. Nem queria acreditar!
Procurei por toda a parte a bolsinha com as cápsulas de cianeto que costumo usar para resolver estas situações. O suicídio assistido foi criado para isto, para ajudar as pessoas a morrer mais depressa, mas eu até me desenrascava sozinho, nem queria ajuda.


Escolher um a um todo este balde de caranguejos, leva tempo.


A minha caixa das iscas é um restaurante de sushi fresquinho. Penso mesmo que ganharia facilmente umas quantas estrelas Michelin! Quando olhei para dentro da lata dos bichos, desanimei de todo.
Estava quase tudo morto. Digamos que se pode encontrar bem melhor em qualquer secção de saldos de uma loja de iscos pouco vivos. O cheiro empestava, e para mim era um muito mau augúrio para a pesca que se seguiria. Pensei para mim próprio que a única possibilidade seria fazer engodo para as bogas. Se eu estivesse no lugar do João Nuno, com o nível de iscos que ele arranja, teria sempre a bordo uma betoneira das obras, para amassar aquilo tudo. Não tem que saber, é atirar lá para dentro umas dezenas de quilos de caranguejo podre e é até fazer as claras em castelo.


Fazer a autópsia antes de colocar de parte, é sempre uma boa medida. Os bons para mim, os ruins para vocês...


Sinceramente sempre esperei que ele fosse destinar-me os caranguejos inválidos, cegos, feridos, podres e mortos. Pareceu-me claro que estava a escolher os piores para mim.
Nunca pensei que me fosse deixar pescar nesse dia com caranguejos vivos… por isso, preparei-me para o pior. Espreitei discretamente o meu boletim das vacinas. Estava em dia.
Já tarde e a más horas, e com todos os barcos mais que fartos de pescar, lá fomos direitinhos ao destino: Cabo Espichel. Faço aquilo no meu barco em 10 minutos, com ele pensei que estava a fazer um cruzeiro de seis dias no Atlântico.
Eu fui, obviamente que acabei por ir, senão não tinha este episódio para vos contar, mas fui sempre com o coração nas mãos.
Apareceram-me umas douradas raquíticas. Peixes diabéticos, com ar desnutrido, cansados como se estivessem nas últimas sessões de quimioterapia.
Valeu uma abrótea de 2,5 kgs, que, bem arrepiada com sal, deu para cozer para toda a família. Ensinei o João a “desensardinhar” a abrótea, retirando-lhe a tripa que lhe estraga o paladar.
Depois disso feito, é um peixe muito saboroso, fino.


A minha caixa ao fim do dia. Antes preferia um pontapé nas costas...


O João Nuno acabou por aparecer no porto de Sesimbra com um balde cheio de peixe, mas de tamanho sofrível, vulgo miudezas, ou missangas.
Em condições normais, deveria também ter aparecido com algo diferente. Por exemplo uma série de contusões e hematomas inexplicáveis, vulgo nódoas negras, porque resolveu fazer finca-pé e só sair do pesqueiro quando já estávamos a iscar caranguejos à luz de fósforos. Mesmo depois de eu lhe ter feito o meu ar de quem estava a ter um ataque de apendicite, não se comoveu. Continuou a pescar. Por ele, dormia no Cabo Espichel, de cana na mão.
Não consta que seja uma zona particularmente boa para passar a noite, mas há quem durma profundamente em espaços mais pequenos, mais frios e muito mais apertados. As múmias paralíticas, por exemplo.

Só por isso vou oferecer-lhe a minha amostra da sorte, a do sarcófago egípcio:





João, espero que venhas a ser muito feliz com ela. Estou certo de que vais conseguir ferrar muitos lúcios, achigãs, percas do Nilo e orcas no teu pesqueiro da ponta do Espichel.

Também devo avisar-te de que eventualmente só tu serás capaz de superar a terrível maldição que recai sobre tão sinistro objecto: dizem que quem a leva à pesca, não só nunca mais na vida tem uma única picada, como ainda é certo que, assim que dás à chave de ignição, o barco afunda ou explode de imediato.

Sinceramente, não vejo motivo para te preocupares, o teu barco é uma caliqueira...



Vítor Ganchinho



4 Comentários

  1. Opah... O que me ri! O Sr Vítor afinal não tem só o dom da escrita científica. Tem também o da escrita criativa em modo sátira que leva o leitor para lá de uma realidade imaginável.
    Muito bom, a sério.

    Essa amostra quanto a peixe não sei, mas para qualquer pescador é mortífera. Lindíssima. Até com maldição eu pegava nela para o meu espaço.

    Perante a panóplia de artigos e excelentes exemplares com que tem brindado quem lê, é perceptível essa sofridão com essa geleira, perante a realidade de muitos, e principalmente quem embarca muito em MT's nem era visto como um mau dia de pesca. Realidades e objetivos diferentes. Os meus começam a ser menos exequíveis e mais exigentes a cada linha deste blog.

    Grande abraço e até ao próximo artigo

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    1. Boa tarde amigo Gradeiro O João Nuno é um amigo de há muitos anos e, (tal como o Carlos Campos), de vez em quando sai na rifa, e vê a sua reputação desgraçada por mais um dos meus artigos. Eu dou-lhe muita pancada, mas ele sabe que se um dia ele caísse ao mar, eu era capaz de ser o primeiro a não o ir salvar, e o primeiro a não ligar para a Policia Marítima a avisar que tinha havido um acidente.
      O João Nuno é um fixe, e é aquele tipo de pessoa que se presta a valer para as minhas escritas mais venenosas. Porque ele faz coisas em que ninguém acredita. Só por isso, e para não perder a possibilidade de continuar a contar com ele para estes textos, eu até era capaz de ligar, com chamada a cobrar no destinatário, para a Polícia Marítima, a dizer algo como:
      " Joã....caí...mar"....
      Não me podem pedir é que gaste mais que uns dois segundos com ele...porque o sacana nunca me chegou a agradecer eu ter-lhe ido comprar comprimidos Ultralevur à farmácia, na Ilha da Madeira, num dia em que ele estava com uma disenteria agravada, que borrou a casa de banho até uma altura de 4 metros!....
      Estragou-nos dois dias de pescaria, e o João sabe que eu vou estar na campa e a remoer aquilo que nos fez.

      O que eu já sofri com ele! Só por isso já tem o dever de aguentar que eu escreva algumas verdades sobre o miserável barco....


      A seguir, vem aí pancada no Carlos Campos, que é boa pessoa e não merece maus tratos. Mas o mundo é cruel, e algo me diz que vou cometer mais uma grande injustiça. O Carlos já olha para mim de atravessado, sem confiança, como se eu fosse um gato preto.

      Abraço!
      Vitor Ganchinho

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  2. Boa tarde Vitor,

    Muito bom este seu texto, deu para rir até doer a barriga!

    Você anda desaparecido, já fiz algumas saídas e não o vi no sitio habitual.

    Abraço,
    A. Duarte

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    1. Bom dia Duarte Tenho andado no mar, mas a sair com o barco grande, o Rodman de 9 mts. Porque tem aparecido muita gente para ir pescar, e já se sabe que a minha pesca "caseira" tem de ficar para outros dias. Há peixe!

      Os jigs pequenos têm estado a dar cartas, este é um momento em que o peixe está a morder muito franco, sem receio. O LRF neste momento dá para fazer milagres aos pargos, aos atuns sarrajões, às bicas, .....mesmo os robalos estão a entrar, embora fundos.

      Força aí!

      Abraço
      Vitor

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