Quando as areias mexem um pouco

Já todos ouvimos falar em desassoreamento. Por vezes, a areia de uma praia desaparece de um momento para o outro, e deixa-nos apenas um esqueleto vazio daquilo que era um local onde já esticámos a nossa toalha. O tema de hoje é particularmente complexo, desde logo porque tem múltiplas causas, e também porque os prejuízos podem ser incalculáveis. Vamos ver porquê.




Com o aumento do número de barragens, a quantidade de areia que chega ao mar é cada vez mais reduzida. Para darmos um exemplo concreto, o rio Douro tem mais de 50 barragens, em Portugal e Espanha.
Cada uma, por fazer retenção de areias, rouba a esse rio a possibilidade de fazer chegar ao litoral muitas toneladas desses sedimentos. Se há 60 anos tínhamos um valor estimado de areia transportada de 2 milhões de toneladas/ano, hoje esse caudal sólido é de apenas 250 mil toneladas.
Também a falta de chuva, principal factor de movimentação das terras na direcção dos regatos, ribeiros e rios, em nada ajuda. Vimos aqui no blog a forma como a areia de forma e se dirige ao mar.
Se o circuito é interrompido por acção do homem, se a areia deixa de vir de terra para o litoral, então passamos a contar apenas com o efeito da erosão da rocha da costa, o que é manifestamente pouco. As areias vão e vêm, mas cada vez vão mais e vêm menos.


As praias como hoje as conhecemos, irão desaparecer. Um dia, estas fotos serão apenas uma saudade.


Sendo Portugal um país onde o turismo representa uma fatia significativa da entrada de receitas, ficar sem praias pode ser dramático. Transportar areia de locais onde existe para sítios onde já desapareceu, custa muitos milhões de euros. Para além disso, é sempre uma solução transitória, já que inevitavelmente o mar irá continuar a roubar essa areia. As marés vivas levam com elas metros e metros de areia, deixando à vista calhau e rocha.
O cordão dunar, ao sofrer erosão, deixa à mercê dos elementos zonas frágeis, onde muitas construções humanas estão implantadas. Falamos de zonas de passeios marginais, edifícios, restaurantes, e tudo aquilo que, criado pelo homem e tendo em consideração “a vista”, veio alterar a paisagem e estrutura da nossa costa. De um ou outra forma, ou por demolição deliberada, ou por demolição provocada por intempéries, muitas construções irão sucumbir.
A desordenada criação de marinas, portos e abrigos artificiais, as intervenções feitas nas arribas para a criação e campos de golfe, habitação, espaços turísticos, captação de areias para construção civil, veio alterar parte do equilíbrio ancestral que existia.


As praias de Setúbal têm vindo a perder inertes a cada ano. Vejam a imagem de baixo, deste local.




Definitivamente, as nossas praias estão mais “magras”, e a paulatina subida do nível das águas não vai ajudar muito.
Para terem uma ideia de valores em euros, as entidades responsáveis pela praia de Armação de Pêra prevêem uma despesa de 1 milhão de euros para reforçar a linha de areias.
Mais acima, na Caparica, roubar ao Bugio 2,5 milhões de metros cúbicos de areia e depositar nas praias para reforço, irá custar muito dinheiro: 22 milhões de euros já foram enterrados neste processo.

Os sistemas dunares têm um papel decisivo no travamento deste avanço das águas. As alterações climáticas vão acelerar a erosão a níveis dramáticos.
Prevê-se que cerca de 40% das praias de todo o mundo possam vir a desaparecer. Em Portugal, podemos perder até 60 metros de praia, o que em muitas delas significa perder….tudo!
A reposição artificial apenas mascara o problema, que não vai desaparecer. Entre duas tempestades, podemos colocar areia, mas mais dia, menos dia, …ela vai desaparecer de novo.

De que forma isso afecta os nossos peixes? Terá alguma imediata vantagem para eles visitar uma zona de pedra rolada em vez de uma extensão de areia?
Sabemos da importância dos fundos de areia para muitas espécies que pescamos. A sobrevivência de peixes como os linguados, os pregados, as solhas, as raias, mesmo de outras classes, como por exemplo os chocos, estará irremediavelmente afectada.
Já aqui vimos que a movimentação de areias é bem-vinda pelos nossos peixes. Este “baralhar e dar de novo” das mudanças provocadas pelas tempestades é muito importante para a manutenção o equilíbrio entre predador / presa.
Sem areias, muito se vai perder.


A seguir a um momento de agitação marítima, os sargos juntam-se em cardumes numerosos para vir aproveitar aquilo que ficou desenterrado. É o momento de lançarmos as nossas iscas, de darmos uso às canas.


Esta estrela-do-mar aproveitou uma navalha desenterrada. Tudo lucra com a exposição dos moluscos que normalmente vivem enterrados.


Reparem como os sargos procuram avidamente comida nas zonas de areia, quando há mexidas de mar.


Para os chocos, um caranguejo desenterrado é uma presa fácil, e eles aproveitam muito bem estes períodos de mudança de areias.


Outros preferiam certamente que as areias nunca se movessem de sitio...


Uma vinagreira-negra, “Aplysia fasciata” de seu nome científico, também conhecida por lesma do mar, seguramente muito incomodada pela agitação das areias.


Para estes bichinhos, com muita dificuldade de locomoção sobre o leito marinho, os dias de mar mexido são sempre dias de sofrimento.


Como em tudo na vida, e sempre que há alguém que perde, por contra-balanço, há alguém que ganha. A vida sabe adaptar-se, mas efectivamente muito daquilo que conhecemos hoje será diferente daqui a uns anos. Vamos ter de mudar muita coisa, nomeadamente as nossas técnicas de pesca.



Vítor Ganchinho



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