Socorro! Voltei a sair à pesca com o Carlos Campos...

Não vão acreditar, mas voltei a sair à pesca com o Carlinhos. Percebo no semblante de quem me lê alguns laivos de preocupação, mesclados de um ligeiro traço de decepção.
Pelos vistos, estavam à espera que eu saísse à pesca com uma dúzia de modelos de 28 anos em lingerie curta, daquelas mocinhas loiras da Victoria`s Secret. Dessa pelagem não me tem aparecido…e também não teria coletes de salvamento para todas, para as mandar todas borda fora, ao mar, antes de me agarrarem.
Ele não é assim tão má pessoa, tem cadastro comprido, mas não é tão ruim quanto o de Hannibal Lecter, o Canibal, o tal do “Silêncio dos Inocentes”. De resto isso mesmo foi reconhecido por grande parte dos carcereiros do Estabelecimento Prisional do Linhó, que logo ao fim de dezasseis anos de bom comportamento do Carlos, tiveram a clemência de o passar para prisão domiciliária, com pulseira electrónica.
Agora o assunto está resolvido e quase esquecido, as restrições à sua vida social praticamente já não existem, tirando o facto de ter de se apresentar numa esquadra de polícia a cada 10 minutos.

Procurei saber algo sobre o vento para esse dia. As previsões eram muito boas, segundo o meu dedo. Provavelmente não sabem fazer, mas eu ensino-vos a calcular a direcção do vento: põem um dedo na boca e lambusam com cuspe. A seguir, esticam o braço bem alto.
A aragem sopra e seca a parte da frente. É calcular a resultante e não precisam de máquina calculadora, é ainda mais simples: a parte que ainda tem saliva, é a abrigada do vento. É assim que se faz.
A actividade prevista do peixe era máxima, o vento era mínimo, a nossa vontade de pescar era máxima, a força da corrente era mínima e a lua quarto crescente. Estava certo e seguro que nada podia falhar, e já estava a ver as nossas geleiras cheias de peixe fresco, aos saltos.
Até porque tínhamos condições para ir ao nosso cantinho secreto, o tal pesqueiro especial. Sigilo máximo, tenho as marcas de GPS guardadas num cofre do Banco BPN.

Ao chegarmos à zona, o vento estava mesmo parado, não soprava uma brisa. O Carlinhos começou a montar a cana dele e como de costume, um nevoeiro espesso começou a formar-se.
Isto acontece-lhe muito. Normalmente começa por ser uma pequena nuvem sobre a sua cabeça. A seguir alarga para o diâmetro dos ombros, a nuvem de repente muda de cor para cinzento chumbo, estoiram uns trovões, relampeja, e descarrega água a valer sobre ele.
Para onde vai o barco, vai a nuvem, não adianta fugir. Depois escampa, e vem uma neblina rasteira que começa a alastrar a vários metros por segundo. Normalmente é aí que já não o podemos nem ver.


O nosso pesqueiro dos sargos veados. A pedra fica exactamente no meio do nevoeiro, uma zona pouco conhecida, …pensávamos nós…


Vários especialistas do IPMA já tentaram decifrar este estranho e extremo fenómeno meteorológico, até ao momento sem sucesso.
Algumas pessoas mais velhas atribuem a causas relacionadas a mau-olhado da pessoa, a falta de uma benzedura com água e azeite.
Mas os especialistas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera acham que fazer uma lipossucção do mau-olhado pode não solucionar.
Segundo eles, o tema é de tal forma complexo que teriam de lançar as cartas de tarot cigano …e ver.
O meu amigo Carlos não sabe explicar o porquê de isto lhe acontecer só a ele, mas mesmo no Verão passou a andar de gabardine impermeável e guarda-chuva.


O Carlinhos tirava fotos à concentração de barcos. É natural que não vejam aqui os 122 barcos carregados de gente, porque estão ocultos pela névoa.


Embrenhados neste nevoeiro denso não percebemos que afinal já não estávamos sozinhos. De todo o lado chegavam barcos. Daqui e dali começámos a ouvir vozes, uma ou outra tosse com catarro de fumador. Com o barco à rola enquanto montávamos os equipamentos, passámos porventura perto demais de alguns deles. O Carlos a todos deu os bons dias.
Fomos saudados pelos nossos colegas de pesca com gases lacrimogéneos, arremesso de garrafas com gasolina e torcida de pano a arder, e muitas balas de borracha. O pesqueiro é bom, é natural que o defendam com unhas e dentes.
Sabemos o quanto é tentador lançar as linhas numa zona de saimas grandes e ali, antigamente, havia muitas. O pessoal sabe que ainda anda lá uma saima e aperta com a pedra. São barcos e barcos cheios, com comandantes aos gritos e resmas de lançadores de âncoras esforçados.
Ouviam-se coisas de fazer corar o menino Jesus.


Isto acontece muito: por vezes o Carlos tem nuvens negras com poucos centímetros sobre a cabeça. Só chove à volta dos ombros dele e as pessoas à roda estão em manga curta e com muito sol. Pode até dar-se o caso de  estar a cair uma tormenta de raios e trovões a bombordo, e do do outro lado do barco, a estibordo, estar um sol de abrasar.


Queríamos tentar uma saima de 2 kgs, mas tínhamos 36 pessoas à nossa frente para o mesmo peixe.
Só me apetecia atirar-lhes pedras da calçada, mas nem isso tínhamos à mão. Estávamos obviamente ali a mais. Precisávamos de uma espécie de “habeas corpus” instantâneo e por isso combinei com o meu colega em sair dali de imediato.


O bicho andava afogueado, sem saber em que direcção podia escapar daquele tormento. Eram centenas de âncoras e chumbadas a cair, todas ao mesmo tempo.


A saima era esta, mas havia 36 pessoas à nossa frente para a pescar...


Acabámos por ir tentar a sorte para um pesqueiro mais a sul, conhecido pelo Pesqueiro da Agonia.
Lançámos ferro numa zona que, curiosamente, na sonda, nunca marca nada. Não há registo de qualquer sonda ter lá marcado um peixe, mas isso não desanima quem sabe esperar.
Pescas para baixo e muita fé. O passar dos minutos desenganou-nos. Infelizmente o peixe estava a dieta rigorosa, e num imobilismo atroz.
Não tocavam nas nossas iscas. Já nervoso, dei uma facada no lombo da sardinha, fiz um filete de palavra de honra, e lancei de novo.
Nada. Dei por mim a pensar que qualquer dia ainda temos peixes com intolerância à lactose e ao glúten. Sem paninhos quentes: aquilo estava mau. Não picavam.
Quando a pescaria começa desta forma, são de prever tempos de miséria, fome e grandes calamidades.

Olhei para o meu colega Carlos. A princípio pareceu-me estar de cabeça baixa, pensativo, por estar desanimado. Mas não. Reparei que, dada a inactividade dos peixes, fazia origamis de papel. Dobrava cuidadosamente cada cantinho da folha.
Para alegrar, foi à caixa dos medicamentos e começou a tomar as caixas de aspirinas às colheradas, com colher de sopa. Nitidamente estava a tentar fazer a pior pescaria da sua vida, o que, entre tantas e tão ruins, não seria nada fácil.
Os peixes completamente parados, e nós sem termos uma ganza para fumar. Para estar à pesca nestes dias assim tão difíceis, antes prefiro fazer colonoscopias.

Nisto, um estranho acontecimento veio dar-nos uma restea de esperança. Tal D. Sebastião, do meio do nevoeiro apareceu-nos uma jovem gaivota.
Isto num dia normal de pesca não tem nada de esotérico, é até corrente, mas ali pareceu-nos ser uma luz ao fundo do túnel, uma chama viva de esperança. Algo tinha acontecido.
Será que havia algum cardume por baixo dela? Se ao menos houvesse um cardume, por pequeno que fosse, …de cavalas.
Sempre podíamos iscar com uma cavala viva. Com cavala viva ao fundo é mais certo que mulher com mama de fora. Vocês sabem disso.
Mas não, a gaivota apenas olhava para nós, na esperança de lhe virmos a lançar um peixe. Mas que peixe?...os nossos baldes estavam como tinham saído de casa, limpos.
Tal como o mar não recusa nenhum rio que nele queira desaguar, também nós já aceitávamos qualquer coisa, nem que fosse uma margota.

Carlos Campos olhava sorumbático para a ponteira da cana. Dava-me a ideia de ter sido atingido por um dardo tranquilizante. Teve, em idade jovem, um convite de uma farmacêutica que o queria.
Podia ter começado ali a ganhar a vida como cobaia humana para testes de medicamentos e não aproveitou. Por vezes deixamos passar estas oportunidades. Eu, tirando os rendimentos da pesca, sempre vou ganhando a vida raptando pessoas e pedindo resgates.




Aos poucos, veio a aproximar-se, segura de que algo haveria para lhe matar a fome. Os ossos das costelas apareciam espetados por baixo das asas.
Era um caso evidente de subnutrição, de anorexismo não voluntário. Embora a gaivota não o propalasse aos ventos, sentia-se que os sintomas iam muito para além de um simples regurgitar de comida para conseguir um emagrecimento compulsivo.


A gaivota nem queria acreditar! “ Mas nem uma boga, uma reles boga?! Não têm nada?! …uma sandes de torresmos…uma pecinha de fruta?”...


Voltámos para casa, o mais lento que nos foi possível, para poupar na gasolina. Quando chegámos ao porto de Sesimbra, havia seis brigadas da ASAE, reforçadas de um destacamento de atiradores especiais, os chamados “snippers”, colocados nos telhados da lota.
Como de costume, iriam investigar minuciosamente as nossas arcas do peixe, não fosse o caso de termos excedido os 10 kgs máximos por lei…
Acabámos por não ser presos por isso, mas sim por posse ilegal de erva. Tínhamos uma alga agarrada ao hélice.

Com tanto que escrevo, bem que podiam fazer uma petição nacional para me comprarem uma sandes de mortadela...



Vítor Ganchinho



4 Comentários

  1. Acho que me estou a identificar com o personagem, o melhor é continuarmos fortíssimos👍

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    1. Boa tarde Carlos O meu amigo, por quem tenho uma estima muito grande, não merecia isto!
      É verdade que o mundo está cheio de injustiças, mas uma pessoa de coração bom como o Carlos não merecia tanta desconsideração.
      Na verdade, depois de escrever estas coisas, eu chego a arrepender-me, embora não muito, sem ser em excesso, digamos que sem muito pesar. E reconheço que mereço que o Carlos vá ao fundo do baú, procurar aquela caçadeira de canos serrados, os cartuchos vermelhos de zagalotes de bago grosso, e....

      Um dia ainda levo um tiro à queima-roupa à conta dos meus escritos.
      Entretanto, ....vou escrevendo. Não queria ser demasiado mau para uma pessoa que só me tem feito bem, e de quem não tenho nem um pontinho para dizer mal, mas.....parece-me que já há outro artigo escrito, para sair um destes dias. Acho que tem a ver com a história de o Carlinhos ter andado a apanhar caranguejo pilado, para vender aos turistas como se fossem santolas e sapateiras.....


      Abraço!
      Vitor

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  2. Rui Alves15 maio, 2021

    Mais um excelente texto. É um prazer seguir as suas histórias e partilhas de conhecimento.

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    1. Boa tarde Rui Alves Eu até me custa dizer mal do Carlinhos. Sinto-me até constrangido por aquilo que lhe faço, porque ele é mesmo muito boa pessoa. A última vez que ele saiu à pesca comigo foi ...ontem. E ainda por cima, estou a "prever" que vá sair mais uma coisa destas, a desfazer no moço, daqui a umas duas semanas.
      Isto desfaz-me o coração, e reconheço que é uma tremenda injustiça que lhe faço, mas a acidez da escrita é algo que não se consegue travar. Ele não merece e a única forma de parar isto é mesmo prender-me no Linhó, sem acesso a papel, caneta ou qualquer outra forma de utensílio de escrita...

      Obrigado por ler o blog Peixe pelo Beicinho.....


      Abraço
      Vitor

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