É verdade que os japoneses veneram imenso a qualidade do peixe que comem. Assim sendo, criam condições para maximizar as suas qualidades, e obrigatoriamente isso passa por terem nos barcos tanques com água corrente, onde introduzem os peixes capturados.
A água entra nestas caixas através de um sistema de bombagem que está em constante recirculação. O sistema de limpeza contínua possibilita que, após a captura, se mate o peixe e se faça um corte nas branquias.
Em Portugal bem sei que as 6/7/8 horas de pesca vos irão parecer sempre poucas. E que acham que até o tempo para comer é tempo de pesca desperdiçado. Mas sejamos realistas e conscientes: serão os 60 segundos que podemos levar a matar e sangrar um peixe que irão fazer tanta diferença no resultado final da pescaria? Querem saber onde podem facilmente poupar mais tempo? Preparando as iscas do lance seguinte, …no momento em que a vossa chumbada desce. É um tempo morto, e poupa-vos os segundos que são utilizados para executar estas operações. E se quiserem que eu vos diga onde gastam ainda muito mais tempo inútil, aí vai: ao escolherem uma linha trançada mais grossa que o devido, estão a atrasar a chegada ao fundo da chumbada. Ao fim do dia, são muitos minutos de pesca perdidos, a troco de nada. Basta baixarem o diâmetro do multifilamento e já ganham tempo para tratar o peixe. Ou pelo menos, para o matarem e deixarem a sangrar.
Não é necessário mais, e nem tem de ser feito a todos os peixes, apenas àqueles que se julga poderem vir a ser consumidos alguns dias mais tarde. Ou apenas aqueles que servirão para fazer um sashimi. É tudo uma questão de criar as condições certas e o resto vem com a prática.
Em suma, ter um viveiro de peixe é o suficiente para manter o peixe a sangrar, já morto, e sempre a libertar sangue, com renovação de água fresca do mar.
Os japoneses fazem da preparação e limpeza do peixe toda uma arte. Ou não fossem os maiores apreciadores mundiais de peixe comido em cru. |
Teorizando, é algo como isto:
Começamos por matar o peixe. Isso pode ser feito com um estilete introduzido num ângulo de cerca de 20º, de forma a atingir o cérebro. Caso não tenha esta ferramenta, uma faca afiada pode fazer o mesmo efeito, e aí a penetração é feita lateralmente. Conforme vimos ontem.
Repete-se algumas vezes, para que não fiquem dúvidas de que o peixe está morto. |
A seguir, fazemos um corte profundo nas branquias. O sangue irá jorrar abundantemente logo de imediato. |
O corte das branquias está aqui acima retratado, e é um factor muito importante no êxito da nossa missão de extrair o sangue na sua quase totalidade.
Segue-se a colocação do peixe num recipiente com água salgada, para que possamos manter o peixe fresco. O peixe é deixado num reservatório com água salgada, a sangrar. |
Procedemos ao corte da cauda, e ficamos com os dois canais bem visíveis. |
A vareta passa repetidamente, num e noutro sentido, para garantir a completa desvitalização do sistema nervoso. |
Estes são os acessórios a utilizar, para além da vareta de desvitalização. |
Bem sei o quanto acham tudo isto absurdo. Afinal, esta não é a nossa cultura. Mas porque falamos em qualidade de peixe, …o peixe que vocês comem em casa, com a vossa família, penso que poderia ser feito um esforço.
Para os apreciadores de sashimi, ou sushi, a minha sugestão vai no sentido de experimentarem a tratar desta forma um único exemplar. E testam em casa o efeito prático deste vosso trabalho. Tenho a certeza de que irão concordar comigo: o sabor do peixe é outro, e muito melhor. Eu comi muitas vezes peixe no Japão e aquilo que o torna diferente do nosso é apenas a forma de o tratar. O peixe português não é seguramente inferior em nada. Mas pode ser melhorado.
Digamos que um processo sensato seria o de aproveitarmos alguns tempos mortos para o fazermos, nem que sejam os períodos em que nos deslocamos de um para outro pesqueiro.
Ma se isso é pedir muito, então há que encontrar outra forma de o fazer. Podemos pelo menos caminhar no sentido de criar condições para manter os peixes vivos até perto do fim da pescaria.
A dada altura, e um pouco antes do retorno, procede-se à morte e sangramento do peixe. Já aqui vimos da forma de utilizar o estilete.
E dessa forma já estaremos mais próximos de poder trabalhar o peixe em casa, com melhores condições.
Estou a tentar conciliar o método ike jime com os nossos hábitos de pescadores. Por vezes, parece-me impossível, mas não há que desanimar, há sim que dar mais informação.
O resultado é algo como isto: um peixe limpo, sem sangue, com um aspecto perfeitamente apresentável. E muito saboroso. |
O sr. Tsumoto, uma pessoa interessada na preservação do seu peixe (ele é um pescador assíduo e também dono de uma peixaria onde também vende o resultado das suas pescarias), aprimorou um método que pode ser seguido por qualquer pessoa.
Na eventualidade de não sair tão bem da primeira vez, seguramente sairá melhor a seguir. Não desista de ter uma experiência gastronómica ao nível daquilo que se pode obter num bom restaurante japonês!
Aspecto de peixe morto, limpo e tratado com o estilo “Ike jime”. É isto mesmo que o leitor pode reproduzir em casa. |
Nota: o prof. José Carlos Rodrigues não se limita a ser uma mente culta do Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa. É também um pescador português informado, conhecedor, que vai muito fundo nos assuntos ligados ao fenómeno da pesca. Pertence àquele lote restrito de cérebros nascidos no nosso país que empurram, motivam, inspiram e fazem brilhar os outros.
Se encontraram alguma utilidade a este artigo, digo-vos que eu apenas o escrevi. O professor José Rodrigues “forçou-me” a redigir estas palavras, e se o não fiz da forma eloquente a que teríamos direito caso o artigo fosse por ele escrito, caso tivesse saído do seu punho, é pelo menos algo melhor que nada. Vou continuar a pressioná-lo, a tentar que ele pegue na sua pena e nos escreva algo sobre pesca. Vão ver a qualidade.
O meu amigo José Rodrigues é alguém a quem, numa situação de muitos meses de seca prolongada, pedimos que faça chover. E chove.
Vítor Ganchinho
Mais uma vez parabéns pelos capitulos pormenorizados que explicam na íntegra esta belissíma e única técnica a meu ver, de tratar o peixe. Os japoneses são o exemplo a seguir, exceptuando no gasto de água que fazem para conseguir limpar o peixe. Esse também terá de ser um tema por eles a ser equacionado, pois o planeta precisa que todos possamos poupar um pouco nos recursos naturais. Obrigado Vítor
ResponderEliminarBoa tarde João Mugeiro
EliminarFico feliz que tenha gostado. Há aqui trabalho de muita gente, desde logo da produção, o António Marques, o Hugo Pimenta, que põem o blog no ar, as pessoas japonesas que deram ajuda, com informação muito útil, o prof José Rodrigues, que me incentivou a escrever sobre o tema.
Todos são importantes e sem eles nada estaria feito. E um blog é isto, é cada um a adar o seu melhor para que o resultado final seja positivo.
Tivemos muitas reacções de agrado, felizmente.
Há mais ideias! Vá acompanhando o blog, porque todos os dias trazemos aqui algo mais.
Abraço
Vitor
Parabéns pelos artigos e pelos detalhes, muito bom.
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