Semana Sushi - Arranjar peixe para sushi ou sashimi - Capítulo 3

O povo japonês gosta de comer o seu peixe com sabor a fresco. Ainda que tenha 4 ou 5 dias de ter sido pescado. Parece uma incongruência, mas não é.
Para isso, desenvolveram ao longo da sua história um processo que não deixa de ser engenhoso: retiram ao momento da morte do peixe tudo aquilo que o iria estragar muito rapidamente.
Sabendo de antemão que em Portugal, por razões culturais, apenas concebemos a ideia de cozinhar e comer peixe fresco, (ou que julgamos fresco, já que o peixe de supermercado será tudo menos isso), ainda assim corro o risco e vou argumentar algo a favor de preparar o peixe para que possa ser comido daí a alguns dias.
Deixem-me fazer um a parêntesis: em minha casa, o peixe é consumido no dia em que eu o pesco. Como costumo dizer, na minha linguagem de caçador submarino, peixe fresco é peixe que foge de mim.
Porque vou à pesca vários dias por semana, não congelo peixe. O que faço é oferecer a amigos aquilo que trago em excesso para o dia, e que poderia guardar para o dia seguinte.
Mas isso não significa que não proceda ao tratamento do peixe. Mesmo peixe em fresco, tratado, ganha apresentação quando é servido em sashimi aos amigos.
Avancemos. No Japão, existem dois métodos de preparar o pescado: o vulgar “No jime”, que corresponde ao que fazemos por cá, e consiste em pescar o animal e deixá-lo morrer por asfixia prolongada. Em suma, não fazemos nada.
Deixamos durante horas e horas o peixe no nosso barco, dentro de uma caixa. Dizem os japoneses que essa é a forma errada de o tratar. O peixe que morre em stress, em agonia, seca a carne, perde qualidade no seu sabor e prejudica inclusive o seu cheiro.

O princípio de funcionamento Ike jime é o oposto, e é simples: quanto menos trauma o peixe sofrer antes, durante e depois do processo da sua morte, melhor será a sua carne.
Isto porque, à medida que o peixe se debate, aumenta o seu stress, produzindo ácido láctico e cortisol. Ambos são produtos que inevitavelmente vão parar aos músculos, aquilo que designamos por “carne”.
A interrupção brusca da actividade cerebral e da espinal medula limita o envio de irrigação sanguínea e hormonas a estes tecidos.
Embora existam muitas variações do método, e vamos vê-las em detalhe neste trabalho, a maioria aponta para quatro etapas básicas, sempre executadas rapidamente.
O objectivo final é o de conseguirmos peixe limpo de sangue, o componente mais perecível do nosso peixe.
Os bons manipuladores, pessoas especializadas nesta arte, podem fazer estas operações em poucos segundos, como irão ver nos filmes que vos vou apresentar amanhã.

Sabemos que no Algarve alguns Chefes de Sushi tentaram junto de alguns fornecedores (pescadores…) implementar o Ike jime. Por cá já existe quem faça isto.
Passo-vos o contacto de uma empresa açoriana que já está a utilizar este método, para que vejam que também em Portugal já seguimos esta prática: https://www.fattuna.pt/pt/

Vamos então executar a morte do peixe. A primeira operação é a de matar o animal.
Isso faz-se com o estilete ou faca afiada, a entrar no cérebro. Não pode haver dúvidas: se o peixe vibra em convulsões, encontrámos o sítio certo.
Vão ver amanhã nos filmes como isso é simples. Para aqueles que me lêem e fazem como eu caça submarina, sabem exactamente onde é.
Quando estamos sobre uma fresta de sargos e queremos ser rápidos a actuar, a morte do peixe é algo que tem de ser feito em 2 segundos, com a ponta do arpão.
Neste caso, o pescador de linha utiliza o utensílio que mostrámos ontem o estilete, e faz o mesmo. A partir deste momento, o peixe está morto, ainda que possa apresentar aqui ou ali um espasmo.


Apoiando a ponta da faca com firmeza, penetramos decididamente no cérebro do peixe.


Vejam a zona de penetração, acima.


O passo seguinte é o corte das branquias, um corte profundo, que fará sangrar abundantemente, retirando do corpo inerte do peixe o sangue que não queremos ver na carne.
É um momento importante, pois grande parte do sangue sairá a partir deste instante.


A seguir, cortamos com um golpe profundo as branquias.


Reparem que o sangue sai de imediato em esguicho.


A parte menos humana da questão está feita, o peixe está morto. Repito, o peixe está morto, e o que estamos a fazer a seguir é o mesmo que qualquer peixaria faz diariamente ao peixe que comemos num restaurante. Para pessoas mais sensíveis isto pode fazer muita confusão, mas é a vida na sua realidade.


Passo seguinte: cortar a cauda, para chegar aos canais de ligação do sistema nervoso com o cérebro.
Há um protocolo para isso, como podem ver:


O local perfeito para isso é sensivelmente aqui. De resto, em termos de aproveitamento para alimentação, a parte restante nem é de considerar.


Já cortámos a cauda, para chegar à espinha.


Aqui, num instante seguinte, iremos cortar as vértebras da espinha, aplicando um golpe seco com a parte mais larga da faca, com o auxílio da outra mão. Vão vê-lo fazer na perfeição amanhã, em filme.


Trabalho executado. Já temos os dois canais bem visíveis, basta abrir o corte e espreitar para dentro. 


Fizemos o seccionamento dos músculos, a seguir cortámos a coluna.


Por cima e por baixo das vértebras, temos dois canais que são importantes para aquilo que vamos fazer. São os dois pontos escuros abaixo e acima da vértebra. Um vai ter ao cérebro, e temos de desactivá-lo quanto antes. O outro irá ter ao estômago e demais órgãos, e pode ficar para ser tratado a seguir. No centro da espinha não entra nada, é osso maciço, não tentem utilizar.


E vamos agora ao passo seguinte, a desvitalização dos nervos ao longo das vértebras.


Introdução da vareta de aço pela narina do peixe. Não podemos fazê-lo de qualquer forma! Como está a ser feito acima, não resulta de certeza!


Vamos pressionar várias vezes, até chegarmos à cauda. O sistema nervoso fica destruído desta forma simples e rápida. Necessariamente temos de orientar a entrada da vareta no ângulo correcto, no sentido de encontrarmos o canal nervoso. O sentido é este. Se executarmos bem, a vareta irá passar suavemente até à cauda, sem oferecer demasiada resistência.


Aqui uma perspectiva geral do trabalho a executar.


Neste momento, a vareta está a chegar à cauda. Reparem que o corpo do peixe ainda tem reacções nervosas, a barbatana dorsal está tensa, em cima. Vejam o frame anterior e comparem o posicionamento da dorsal.


Inverte-se o sentido da vareta, desta vez da cauda para o cérebro. Para garantirmos que fica a 100%.


E concluímos aqui a desvitalização.
A partir deste momento, vamos começar a limpar. É aqui nesta fase que entra o jacto de água que irá limpar o peixe por dentro.
Recordam-se de vos ter mostrado ontem a torneira: Este equipamento pode ser importado do Japão, sob encomenda, pela GO Fishing Portugal.


Introduz-se a agulha correspondente ao tamanho do peixe, e vamos começar pelo canal superior, aquele que nos pode causar mais problemas. Pretende-se ter o corpo do peixe limpo de sensores nervosos o quanto antes. Com isso, conseguimos que o sangue remanescente deixe de circular.


Vejam como o operador do sistema introduz a agulha de injecção de água no canal nervoso. É o que fica por cima das vértebras.


Reparem como a água sai pelo orifício feito no acto de matar o pargo. O canal percorre toda a linha de vértebras, até ao cérebro.


Agora fazemos a injecção de água nos intestinos, partindo do canal de baixo. Vamos ficar com a barriga do peixe cheia de água. 


O pargo irá ficar rígido, inchado, com toda a água de limpeza dentro. Gostaria de vos chamar a atenção para um detalhe: os japoneses irão fazer este peixe em finas fatias, que darão origem a um sashimi, ou a um sushi. A diferença é que enquanto uma técnica pretende servir à mesa um prato com lâminas de peixe, o outro servirá de cobertura a um pequeno bloco de arroz. Em momento algum é referida a fase de escamar o peixe. Porque eles irão rejeitar a pele deste. Só numa fase de cozedura, aí sim, a questão escamar é pertinente. Para nós, que cozinhamos o peixe no forno, grelhamos ou cozemos, a questão coloca-se. Caso não queiramos comer o peixe “à japonesa” temos mesmo de executar uma fase adicional. Mas mesmo aí, termos o peixe com o interior ocupado com água, mais rígido, só nos pode facilitar o serviço, escamamos melhor.

Aqui, cortamos e retiramos as guelras. Verão fazer isto nos filmes de amanhã.

Fase do corte das guelras, à frente.


Corte feito.


E aqui a parte posterior, uma operação que dura menos de 15 segundos.


E retiramos as vísceras do peixe. Podemos fazê-lo introduzindo água pela abertura que fizemos ao retirar as guelras, isso só vai ajudar a remover tudo aquilo que não quereremos encontrar no prato.



Detalhe da saída de vísceras. Nota: sermos nós a fazer este trabalho dá-nos a possibilidade de ver aquilo que está dentro do estômago do peixe por nós capturado. Isso significa informação. Saber o que comem ajuda a pescar...


Deixamos alguns minutos a escorrer, dentro de uma caixa. E temos o nosso pargo limpo e preparado para ser embrulhado em papel vegetal.




Saltamos aqui a fase de embrulhar o peixe, por razões de espaço, mas o resultado final é este:





Amanhã vamos ver tudo isto em vídeo, vários exemplos, para que fiquem com a noção de que concluir estas operações é caso para pouco tempo.
Quem vão ver a executar são “peixeiros” profissionais, que fazem isto durante todo o seu dia de trabalho, peixe a peixe. Esta gente não é nem mais nem menos que a versão asiática das nossas queridas peixeiras, que em cada mercado mostram todos os dias a sua perícia a arranjar o peixe que o país consome. Apenas o fazem de uma forma diferente.

Espero que tenham gostado deste trabalho. Até amanhã.



Vítor Ganchinho



6 Comentários

  1. Espectacular. Com exemplares maiores já faço o acto de matar e sangrar e é suficiente para notar diferença no peixe. O que me deixa curioso é o sistema de jacto de água que limita imenso quem o pode utilizar, mas é de facto a cereja no topo do bolo.

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    1. Boa tarde Gradeiro! Fico feliz por estar a gostar desta série de artigos. Amanhã vai ver os profissionais a utilizar os equipamentos, na prática. Como disse num artigo anterior, este trabalho tomou-me cerca de 6 semanas, mas penso que o resultado final vai ser do agrado dos leitores habituais do blog. Os restaurantes japoneses utilizam todos este sistema, certamente nunca viu um prato de peixe com sangue. Se quer que lhe diga, o tempo que demora pode ser inferior a um minuto. Eu faço, quando a ideia é apresentar um shashimi aos amigos, ou para a família.

      Abraço!
      Vitor

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  2. Excelente trabalho, na descrição pormenorizada de um processo que defendo e tento aplicar da melhor maneira possível no local de captura.

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    1. Boa tarde João Mugeiro!

      O sistema em si é muito mais simples do que parece. Penso que amanhã terá uma percepção mais exacta do método, quando visualizar pessoas a trabalhar, que o fazem por rotina.

      Obrigado pelo seu comentário, acredite que é um estimulo importante e ajuda a acreditar que vale a pena trabalhar nestes assuntos.

      Este blog será sempre algo mais que um balde de peixe e uma frase curta...

      Agradeço o facto de se dar ao incómodo de comentar.

      Espero que amanhã siga os detalhes que irei apresentar.

      Obrigado!
      Vitor

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    2. Carissimo Vitor...este tipo de trabalhos, valem sempre a pena, nem que seja para atingir 2 ou 3 alminhas que mostram interesse e vontade de aprender sempre mais. Como disse anteriormente, eu já realizo o ikijime nos peixes que capturo, dentro do que consigo fazer nesses momentos. Dependendo so tipo de pesca...às vezes tem-se mais ou menos tempo...mas mato sempre oa meus peixes (o minimo respeito pelo animal) e sangro-o. A parte da introducao do arame ainda nao faço, mas farei assim que receber o kit que encomendei. Só nao realizarei a lavagem....pela logística que isso implica. Mas sei notar perfeitamente as diferenças dum peixe morto na hora e sangrado. Ja fiz várias menções a eata tematica em videos que publico no youtube e em publicações no facebook. Temos de alargar esta técnica a todos....para que respeitem o animal e tenham o melhor peixe à mesa possível. Mais uma vez obrigado pelo artigo muito detalhado e bem descrito. Abraço

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    3. No final desta semana teremos todos uma percepção mais exacta do potencial da técnica.
      Hoje já vamos ver alguns filmes interessantes. Amanhã teremos um resumo final, e acabamos uma semana dedicada ao tema Ike jime. Mais tarde, para meio de Julho, irá sair um último artigo sobre preservação de peixe, mas tem mais a ver com o Verão, e a obrigatoriedade de o acondicionar correctamente, por causa do calor.
      Na próxima semana vamos ter uma bomba: um pargo de 11 kgs capturado no passado dia 10.06.21, com linhas muito finas, PE0.6 e baixada de fluorocarbono 0.33mm, e um jig de 30 gr. Vou explicar como fiz, materiais, técnica, etc. Penso que irá ser interessante.

      Abraço!
      Vitor

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