O Peixe-Galo, um boca de “Manuela”, um alien das nossas águas.

Chama-nos à atenção a sua estranha fisionomia. Tudo no peixe galo é um exagero, um autêntico grito de revolta contra os peixes fusiformes, aqueles que chamamos de peixes 12 meses depois de nascermos. Um peixe-galo não é uma boga. Não se parece com uma boga, nem com uma cavala, um robalo ou uma sarda. O peixe-galo é muito mais que isso, é um excesso da natureza! 

Fixemo-nos nos detalhes que são mais estranhos: desde o comprimento e diâmetro impossível da sua boca protráctil, à sua mancha negra lateral, dos raios alongados da sua dorsal ao seu perfil invisível. Caros leitores, apresento-vos aquele que para mim é um dos melhores peixes para comer à mesa no nosso país: “Zeus faber” de seu nome científico. 


Também conhecido por “Peixe de S. Pedro”, por se dizer que o apóstolo Pedro colocou a ponta do seu dedo no seu flanco, onde ficou tatuada essa marca para sempre.


Ou como diriam os ingleses, este John Dory tem este ponto sombrio, negro, em cada um dos lados, também conhecido por “olho do demónio”, para se defender de grandes predadores. O peixe fica com um aspecto agressivo, maior, e na verdade, porque se apresenta às suas presas de frente, o ponto não é visível. O seu corpo ovalizado é-nos estranho. De resto, tudo nele é estranho. Encontrei-os pontualmente ao mergulho, a fazer caça submarina, e são sempre uma surpresa. Literalmente de frente são…invisíveis. O seu corpo achatado, as suas barbatanas longas, a sua cor verde azeitona, acastanhada, fazem-nos desaparecer contra o fundo. Esse é um dos factores de sucesso da espécie, que se aproxima lentamente das suas presas. Ao chegar a uma distância suficiente, …”absorve-as” com a sua enorme boca. Esta. faz as vezes de um tubo, por onde entra água e o pequeno peixe que se deixou aproximar demais.

Não tentem escamá-lo: possui escamas microscópicas, não visíveis a olho nu.  Cresce mais do que se pensa. Embora se considere grande um peixe desta espécie com 5 kgs, a verdade é que há registos de exemplares com 90 cm de comprimento, para um peso de 8 kgs. Estes peixes, tendencialmente solitários, vivem pressupostamente apenas 12 anos. Reproduz aos 3/4 anos, no fim do Inverno, princípio da Primavera. Podem ser pescados no continente, Madeira e Açores, desde zonas costeiras baixas até aos 400 metros. Alimenta-se preferencialmente de peixes de pequeno porte, lulas, chocos, e tem uma predileção especial por sardinhas, bogas e carapaus. Vivos. A água flui através das brânquias e sai, ficando o peixinho aprisionado dentro desta goela imensa. Trabalha a seguir o osso pré-maxilar, o único osso portador de dentes neste peixe, e que é usado para moer a presa.

Muito provavelmente a razão pela qual é apelidado de “peixe-galo” terá a ver com a sua crista, as suas barbatanas dorsais, que lembram a crista pendida de um galo.


Adoro pescá-los! Fico sempre feliz quando consigo um destes peixes. Aqui, utilizei um jig de 38 gr. Vejam atrás de mim umas quantas canas de pesca ligeira. Para pescar bons peixes não precisamos de canas compridas nem pesadas.

Na foto acima, é perfeitamente visível uma linha de espinhos cortantes situados lateralmente à barabatana dorsal. Atenção, estes espinhos existem e são responsáveis por cortes profundos nas mãos. A utilização de luvas quando manipulamos estes peixes é essencial. De resto como em muitos outros tipos de pesca. Proteger os nossos dedos liberta-nos de penosos dias de incapacidade. Mais importante ainda quando vamos regularmente ao mar e por isso necessitamos de estar no máximo das nossas capacidades. Pescar …é sempre com luvas!...


Isto é um exagero! Esta boca de “Manuela” tem espaço para qualquer tipo de isca que lhe seja lançada. Engole carapaus vivos, …inteiros.


De resto, falar do equipamento bucal dos peixes não é algo de tão insignificante assim. Mesmo em termos de pesca, é o formato da boca que determina a atitude do peixe perante as nossas iscas. O peixe-galo vive preferencialmente em zonas com algas ou corais, e a sua boca protráctil serve-lhe para aspirar peixes que se escondem no meio de estruturas, nomeadamente corais.  

Poderíamos pegar neste tema e tentar definir “boca”: 

No seu sentido “latu sensu” é todo o aparelho bocal, os maxilares, os ossos faringianos, a língua, os músculos que consolidam os ossos e parte do crânio. Segundo alguns autores que leio atentamente, a evolução das espécies e a sua divergência de ocupação de espaços no meio ambiente deve-se precisamente a diferenças no tipo de aparato bucal. É a boca que determina aquilo que o peixe pode ou não fazer. A seguir, vem a selecção dos indivíduos, através da escolha das fêmeas, que ao preferirem este ou aquele tipo de macho, com estas ou aquelas características, acaba por determinar a evolução dos indivíduos disponíveis em cada habitat.  Mas é a boca que induz ao sucesso, ou insucesso, de uma espécie em determinado ambiente natural. Digamos que este factor anatómico evoluiu no sentido de dotar cada tipo de peixe de argumentos para ser bem sucedido perante as suas presas. É a boca a responsável pela captura, pelo morder, arrancar, amassar a comida. Isso é aquilo que determina a capacidade de sobrevivência da espécie. Se tem a capacidade de perseguir ou emboscar presas, se estas cabem dentro e se o peixe as consegue engolir, ou seja, se consegue empurrá-las ou induzi-las esófago dentro, há grandes hipóteses de ser bem sucedido.   

Gostaria que entendessem este ponto porque é de facto muito mais importante do que parece. Eu já aqui vos trouxe um dia destes um artigo em que vos falei de bocas, na perspectiva da dentição. Hoje falo-vos do posicionamento da abertura bucal. Não é indiferente se ela é virada para cima ou para baixo. Nem sequer para a pesca que fazemos, para os iscos que utilizamos, ou o tamanho e formato das nossas amostras. 

Vejamos a questão do posicionamento da boca na estrutura da cabeça do animal. Se consideramos três níveis de posicionamento, alto, médio ou baixo, teremos que: 

a) Alto: quando a boca se abre para cima. Um bom exemplo é o rascasso, ou o mero. Normalmente a mandíbula inferior é mais longa que a superior, podendo indiciar predadores de emboscada, que estão sob o fundo, e desferem os seus ataques de forma fulminante, aspirando as suas presas. São peixes que normalmente têm a cabeça a ocupar cerca de um terço do tamanho total do corpo. Estes peixes precisam de um grande “reservatório”, onde caiba um peixe inteiro, e uma goela larga, que possa rapidamente engolir a presa. Posso dar-vos uma excepção, o nosso peixe-aranha, que embora cace de emboscada, semienterrado na areia, ainda assim tem um corpo bastante longo. Mas o normal é que sejam peixes de pouca mobilidade natatória, que apostam na imobilidade absoluta para deixar chegar a si as suas vitimas.  

b) Médio: boca que abre na zona intermediária da cabeça, com as mandíbulas superiores iguais às inferiores. Podemos subentender aqui tratar-se de um peixe que persegue, que captura as suas presas em corrida, que é mais rápido que elas, ou pelo menos que as consegue morder por ter mais mobilidade, mais rapidez de reflexos. Ou que aproveita melhor situações de grandes movimentações de águas, correntes, rebentações. Sim, estão correctos ao pensar nos robalos, nas bailas, corvinas, sardas, sarrajões, atuns, etc. 

c) Baixo: boca que fica situada abaixo de uma linha central, indicando-nos que o peixe se alimenta no fundo e que a mandíbula inferior é menor, menos proeminente que a superior. São nitidamente peixes que se alimentam preferencialmente no fundo, que encontram a sua alimentação enterrada. Normalmente têm como adjuvante a questão dos barbilhos, que actuam como sensores tácteis, que dão ao peixe informação fina sobre algo que possa estar enterrado. Poderíamos incluir aqui os salmonetes, os ruivos, as raias, etc. 

O posicionamento da boca determina de per si o comportamento do peixe, limitando-o a um determinado tipo de fundo, a um determinado tipo de comida. No caso do peixe-galo, o nosso herói do dia, é nitidamente um peixe de emboscada, que aguarda a passagem de um cardume rente ao fundo, sardinhas, carapaus, bogas, para “sorver” um deles. Ou para encurralar um pequeno peixe dentro de uma teia de corais. 


Pescar um peixe-galo é sempre um bom motivo para um grito de alegria.

Possui um corpo plano e redondo e é muito mau nadador. Porque não faz perseguição mas sim emboscadas, nem precisa de ser rápido a nadar. Na foto, o meu amigo turco, o Dr Reha Yavuser, um proeminente médico cirurgião que por vezes vem pescar comigo. Foto feita em maio de 2021.


Os olhos situam-se no topo da cabeça. Fornecem ao peixe visão binocular e percepção de profundidade, factor importante na detecção de predadores.O peixe galo é um assassino silencioso, que sabe desaparecer de cena quando lhe convém. Na presença de predadores, encosta-se ao fundo e é mais uma alga no meio das algas, a balouçar. 


Os filetes de peixe-galo são uma iguaria, algo de delicioso, panado e frito. É efectivamente um peixe muito fino.


Espero que tenham gostado deste trabalho. 



Vitor Ganchinho



2 Comentários

  1. Bom dia Vitor e restante equipa,

    Este é dos poucos peixes que eu ainda não tive o prazer de comer. Fiz uma espécie de jura, ou seja, o primeiro amigo "Zeus Faber" a ir jantar comigo, teria que ser obrigatoriamente "embeiçado" pela minha mão.

    Pelos vistos os meus dotes de sedução andam pela rua da amargura!

    Muito bom artigo... mais um!

    Abraço,
    A. Duarte

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    1. OI António Duarte! O peixe galo é um peixe relativamente comum, quando pescamos na sua zona de acção, com os iscos/ amostras certas. Eu pesco-os com jigs, mas aquilo que funciona melhor são mesmo os vinis. São loucos por morder os vinis que deixamos cair ao fundo.
      O peixe-galo é muito bom em filetes. Eu trago para casa os filetes já feitos, não sou de aproveitar os ossinhos todos. Caso pesque com mais frequência com jigs, eles vão aparecer.


      Nunca se perde a fé, e um dia....pensa que está a puxar um pargo e é um S. Pedro.


      Abraço
      Vitor

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