Não fazemos parte do seu mundo.
Por mais interferências negativas directas e indirectas que tenhamos sobre eles, e temos mesmo, não somos reconhecidos como seres do seu planeta. Acham-nos estranhos e somos isso mesmo: estranhos.
Os peixes olham para nós com a curiosidade natural de quem procura entender aquele estranho ser, grande, desajeitado e incapaz de se deslocar fluidamente dentro de água.
Quando comparados com um peixe, nós seres humanos somos algo de estranho, pela nossa deficiente mobilidade, pela nossa incapacidade em respirar naquele meio, e ainda por sermos absurdamente lentos de movimentos. Somos estranhos e fraquinhos.
Já vi concentrações de badejos com muitas dezenas deles em espaços muito reduzidos, em pedras muito pequenas. O Senegal tem uma população muito numerosa, sendo possível encontrá-los a poucos metros da praia, em profundidades de menos de uma dezena de metros.
Trata-se de um peixe que tem um comportamento típico de predador, de serranídeo, assumindo uma atitude de comando, de quem controla a situação, mesmo quando isso parece impossível.
O badejo tem uma confiança tão grande nas suas capacidades físicas que prescinde daquilo que o poderia manter a salvo de contratempos: a distância para os humanos.
Eu sei bem o porquê dessa confiança: são extremamente rápidos. Num mundo em que o meio líquido poderia indiciar uma menor capacidade de locomoção, (e para nós é um verdadeiro entrave), o badejo move-se como um relâmpago. Para além da sua forma bastante hidrodinâmica, beneficiam de uma ferramenta poderosíssima: a sua cauda. Trata-se de um propulsor que cai a direito, em linha recta, e que permite atingir velocidades instantâneas que ultrapassam em muito aquilo que os nossos olhos conseguem percepcionar. O badejo dá um estalo com a cauda e já está a dois metros do sítio onde ouvimos o ruído. Mais que isso, não só consegue fazer deslocações horizontais como também as faz no plano vertical.
Conto-vos que este incrível peixe tem tempos de reacção tão rápidos que pode acontecer isto: estão frente a um caçador submarino, a uma distância de 2 metros do seu arpão. Apontamos bem, visando a sua cabeça. O indicador direito curva-se sobre o gatilho e pressiona-o. As ogivas soltam-se e os elásticos, de 20mm de diâmetro, esticados ao limite das nossas forças, impulsionam o arpão para a frente a uma velocidade de um projéctil. Numa fracção de segundo, o arpão passa pelo ponto preciso onde estava o badejo.
Mas que já lá não está. Excitado, nervoso, olha-nos num plano superior, a alguns metros de distância, com os seus olhos fixos nos nossos olhos. Fomos lentos demais! O badejo conseguiu antecipar o minúsculo movimento do nosso dedo sobre o gatilho, e saiu do sítio onde estava, graças a uma cauda que tem um efeito de remo. Este é um peixe movido a pura energia nuclear, numa minúscula fracção de segundo consegue estar e …já não estar.
Os badejos podem atingir pesos máximos na ordem dos 14 kgs. Aparecem nas nossas águas continentais, de forma muito pontual, com tamanhos na casa dos 6 a 7 kgs, pouco mais. |
O maior que vi ultrapassava os 13,5 kgs, e foi arpoado por um amigo francês, David Courseaux, ao largo das ilhas Madalenas, numa baixa em frente a Dakar, a 18 mts de fundo.
Nesse dia, a totalidade dos badejos que caçámos teriam seguramente mais de 7 kgs, sendo a maior parte na casa dos 10 kgs. Foram oferecidos a um orfanato, para a alimentação de crianças e pessoas idosas carenciadas.
No Senegal, são catalogados em duas famílias diferentes: os badejos “turistas” que chegam do largo, de zonas mais profundas, eventualmente menos conhecidas pelos caçadores, e que encostam às pedras da costa para reproduzir. São peixes com poucas atitudes de defesa, e vêm à morte, porque não têm medo. E os badejos “residentes”, aqueles que sobraram de épocas anteriores e que, por força de serem perseguidos e de escaparem a tentativas de arpoamento e a redes de emalhar, ficaram a saber o suficiente para nos evitarem. Há uma diferença abismal de comportamento entre uns e outros, que nos indica de imediato quais são os …”turistas”….
Nestes, são feitas mortandades incríveis, sendo os peixes exportados quer para a Europa, França e Bélgica em primeiro lugar por razões linguísticas, e para os Estados Unidos.
A designação “garoupas” serve-lhes de nome. Tanto quanto serve aos meros açorianos, que nos chegam aqui com a mesma designação. São todos, …”garoupas”.
Este é o momento em que o badejo resolve enfrentar-nos. Já virou a cabeça. Por um misto de desafio e de curiosidade, resolveu olhar para nós. Mais que tudo, é a curiosidade que o faz virar a cabeça. |
Uma veja macho, “Sparisoma cretense”, resolveu atravessar a cena. Nesta altura, é como haver um intruso que resolve correr desbragado num campo de futebol, a meio de uma partida televisionada. |
Vítor Ganchinho