OS OURIÇOS E A SUA IMPORTÂNCIA ECOLÓGICA

Temos, em zonas com pedra, e sobretudo nas primeiras camadas de água, nos primeiros metros abaixo da linha de superfície, na nossa costa portuguesa um estranho e singular habitante: o ouriço-do-mar.
De seu nome científico “Paracentrotus lividus”, esta “bola de espinhos” tem, para o meio ambiente (e também para a nossa pesca à linha) muito mais importância do que nos parece à primeira vista.




Responsável por alguns dos piores pesadelos de quem se atreve a caminhar descalço sobre as rochas da beira mar, o ouriço é um invertebrado marinho sem olhos, mas com células sensíveis à luz espalhadas por todo o seu corpo.
À sua escala, este “monte de picos” é relativamente rápido! Bem sei que isto vos parece estranho, vocês olham para eles e não os veem andar, mas eles movem-se, e conseguem fazê-lo de forma a conseguirem esconder-se da acção dos predadores.
Não é num segundo, os seus pés ambulacrários não dão para isso, mas pode ser numa hora…e isso pode ser suficiente, se o predador for uma estrela do mar.
Tem uma boca circular, com cinco dentes, os quais utiliza para raspar as pedras, retirar delas as algas e alguns invertebrados, dos quais também se alimenta. Mas é a dieta de algas aquilo que verdadeiramente conta, são vegetarianos.
Podemos saber quais os machos e quais as fêmeas, abrindo o seu interior: os machos têm as gónadas brancas, enquanto que as fêmeas apresentam-nas laranjas. São entendidas como um manjar dos deuses, e trabalhadas por chefes de cozinha com estrelas Michelin.
O seu corpo é estranho o suficiente para merecer uma breve descrição: possui um endosqueleto composto por ossículos calcários, uma espécie de bola de rugby, achatada nas pontas, coberta por uma pele onde estão incrustados espinhos móveis, que lhe protegem o corpo. Não tentem esmagá-lo com a mão nua, porque estes espinhos irão penetrar na nossa pele e entrar fundo no músculo. E pior que isso, irão partir-se lá dentro, provocando dor, e um incómodo tremendo. Em caso afirmativo, preparem-se para dias de amargura. Colocar azeite na mão ajuda a que saiam mais depressa, o nosso organismo encarrega-se de expulsar a maior parte deles. Um corpo de carapaça calcária e não muito rígido, diria até frágil, teria de ter alguma defesa. E no caso vertente são os espinhos. Não são todos os peixes que lhes pegam, apenas aqueles que estão preparados com maxilares fortes, aptos a partir e esmagar, e que assim conseguem desmobilizar os ditos apêndices. Estes, para além de criarem uma barreira exterior e protegerem o animal de ataques de inúmeros potenciais predadores, têm também a função de permitir que o ouriço…ande.

Anda, mas não anda muito quando comparado com os peixes que avidamente os procuram: as douradas, os sargos, adoram estes bichinhos. Basta analisar os conteúdos estomacais e constatar que os ouriços constam daquela massa triturada.
Mas também são perseguidos por alguns tipos de caranguejos, estrelas-do-mar, os bodiões, etc. Na verdade, os ouriços são comidos em todos os estágios do seu crescimento, desde muito pequenos até que se tornam adultos. Os dentes de um pampo não receiam mordê-los a sério, quando não há mais nada à mão. O difícil é mesmo provocar uma fragilidade, partir alguns espinhos. A partir desse momento, o ouriço está liquidado.


É hábito vermos os ouriços escondidos, e com algo por cima, algas, pedras, e mesmo conchas de bivalves. A ideia é simples: procuram qualquer tipo de protecção.


Aquilo que vos queria deixar é uma mensagem de que os ouriços mudam a paisagem marinha, e são muito mais importantes para os fundos marinhos do que pensam. Vejamos porquê:
O ouriço desbasta as algas macrófitas, deixando espaço livre para que outro tipo de vegetação, de crescimento mais lento, possa prosperar. Muitas algas e espécies de invertebrados necessitam destes espaços abertos, destas clareiras nas rochas, para poderem sobreviver. O milímetro quadrado de pedra junto à costa tem um preço elevadíssimo, e é disputado tanto quanto uma vivenda com vista para o mar em Cascais. O facto de os ouriços desbastarem algas predominantes promove, a médio e longo prazo, o aumento da biodiversidade das comunidades marinhas. Isto dentro dos limites quantitativos que serão os normais, sem excessos, que também acontecem e iremos ver mais à frente.
Em zonas de muita pressão de peixes predadores, a selecção natural faz com que os ouriços que escavam buracos circulares no substrato rochoso consigam sobreviver. Os outros são facilmente comidos.
Também em zonas com muito mar, este fenómeno acontece, traduzindo uma necessidade de se protegerem das ondas. E perguntam-me: “como fazem os buracos…?”. Pois bem, a sua boca, armada de cinco dentes duros chamados de “lanterna de Aristóteles”, (dureza de 3-4 na escala de Mohs), mais rijos do que o substrato onde assentam, arenito, calcário, granito, basalto, ardósia não muito dura, são o suficiente para “ratar” a pedra e abrir pequenas crateras, onde se enfiam. Os espinhos ajudam a raspar e desbastar a rocha, por contacto prolongado. Talvez não saibam, mas os dentes de um ouriço crescem entre 1 e 1,5 mm por semana, o que os obriga a raspar pedra para que mantenham o seu comprimento normal.
E isso faz com que os ouriços, ao alimentarem-se ou ao criarem esconderijos para si próprios, mudem a paisagem, provocando erosão biológica. Para que tenham a ideia do quanto é significativa esta acção dos ouriços, na Irlanda foram feitos estudos que comprovam existir uma taxa de bio erosão de calcário intertidal que pode atingir 15 mm por ano. Em elevada densidade, esta espécie de ouriço-do-mar pode reduzir drasticamente a cobertura de algas folhosas moles de fundos rochosos, de que se alimenta, e, consequentemente, transformar grandes extensões de complexas e produtivas áreas em zonas chamadas de “urchin barrens”, dominadas apenas por algas incrustantes duras e diversidades biológicas reduzidas, compostas apenas por algumas espécies, tendo isso repercussões na estrutura e no funcionamento de todo o ecossistema. Digamos que, em suma, se não forem controlados pelos peixes, os ouriços são responsáveis por alguma devastação e empobrecimento do habitat onde evoluem. Será sempre uma questão de conseguirmos mantê-los num meio termo, sendo que a falta é prejudicial, e o excesso, a sobrepopulação, altamente danosa para o habitat.


Em zonas com poucos ouriços, as algas podem cobrir toda a pedra. Se houvesse ouriços, estariam …peladas.


Acontece um fenómeno curioso: quando o bicho homem dá largas à sua capacidade destruidora e pesca em excesso, ou seja, quando captura os peixes de grande porte que se iriam alimentar de ouriços, dá-se uma explosão destes sob a forma de um surto que cobre todas as pedras. Consequentemente, estes equinodermes, sem o controlo da sua predação natural, podem alterar a dinâmica de consumidores de algas folhosas para algo de devastador. Quando uma espécie prevalece, tudo o que está ao seu alcance acaba por sofrer. Em zonas protegidas, nomeadamente em reservas naturais, onde os peixes predadores estão mais protegidos e podem exercer a sua actividade de controle de proliferação, a quantidade de ouriços está limitada. Mas em zonas abertas onde a actividade piscatória extractiva é permitida, e por isso são retirados os peixes, o número de ouriços pode subir exponencialmente.

Os ouriços-do-mar adoptam estratégias de vida diferentes conforme o contexto ecológico em que se encontram. Em zonas de águas paradas, são normalmente de maior tamanho, pois têm muito mais algas disponíveis para se alimentarem. Menos hidrodinamismo, maior crescimento de algas, mais comida, este é o princípio. Mas a sua capacidade de protecção é menor. Por isso, adoptam critérios de protecção e sobrevivência que podem passar por um aumento da grossura da carapaça, o acumular de substâncias químicas que afastam pretendentes, concentração de toxinas que injectam na pele dos seus predadores, ou mesmo por se concentrarem em grande número, dificultando o ataque, sempre mais fácil quando a um individuo isolado. Já vimos acima que para além de tudo isto, também escavam buracos, o que os torna uma fortaleza inexpugnável. Isso acontece muito mais em zonas de grande agitação marítima, com correntes fortes ou rebentação, e é fácil tentar imaginar a dificuldade de um peixe, um sargo, uma dourada, uma juliana, ao tentarem retirar da sua toca um ouriço “entalado” no seu buraco. Não será fácil para os peixes, nem para outros predadores, como os polvos, as estrelas do mar, as navalheiras, etc.

Mas os ouriços têm inimigos que vão muito para além dos peixes: o homem captura-os de forma intensiva, para os comer. Procuramo-los em zonas baixas, aproveitando a altura da maré vazia, quando os temos à mão.


São famosas as “ouriçadas” que se fazem em determinadas alturas do ano, e que correspondem exactamente ao período mais crítico: a altura em que os ouriços estão ovados. Aquilo que comemos são basicamente as suas ovas.


Segundo um registo de uma reportagem da RTP, em Castelo do Neiva, Viana do Castelo, durante a época de apanha e sempre que as marés o permitem, um grupo de nove mulheres arregaça as mangas, pega na foice e num cabaz e mete-se nas ondas geladas para arrancar o sustento das rochas.
Numa manhã chegam a apanhar mais de mil e quinhentos quilos de ouriços. São sacas e sacas cheias que carregam às costas pelas rochas, entre a beira mar e a estrada, para depois as vender a um intermediário espanhol.
Por época, chegam a retirar do mar vinte mil quilos de ouriços que vendem a 87 cêntimos o quilo.
Mas, se o Estado exige licenças e que a comercialização dos ouriços do mar passe pela lota, ninguém se dá ao trabalho de controlar se isso é feito. Não há levantamentos científicos sobre as populações de ouriços nem sequer um conhecimento real sobre o que apanha quem tem licença.
Em França, por exemplo, de tanto apanhar ouriços na "Côte d`Azur", estes chegaram a ficar ameaçados de extinção. Um risco sério, uma vez que a apanha só se realiza no período da desova, e que levou a que esta agora esteja sujeita a regras rigorosas.
Nunca este blog irá incentivar a destruição do ambiente marinho. Porque acreditamos que cada um de nós é responsável por uma pequena parte do equilíbrio ecológico de um mar que é de todos, parece-nos pertinente chamar a atenção para o facto de a apanha dos ouriços estar regulamentada por lei. Passo-vos uma notícia da Autoridade Marítima, para que vejam de que forma acontecem e são tratadas as infrações deste tipo:
O Comando-local da Polícia Marítima de Viana do Castelo desencadeou várias ações de fiscalização na orla costeira, no período de 21 e 22 de março, com o objetivo de combate à apanha ilegal de ouriços-do-mar. Destas ações, resultou a identificação de 1 indivíduo em infração e na apreensão de cerca 300 Kg de “ouriços-do-mar”, a norte da praia de Paçô.


Pelo facto de os ouriços-do-mar terem sido apanhados no âmbito da pesca lúdica e não poderem, por essa razão, ser comercializados, foram devolvidos ao mar.


Em termos legais, qualquer cidadão pode apanhar até 2 kg desta espécie, no entanto, para valores acima, é necessária a obtenção de licença. Estas licenças preveem apenas a apanha até 50kg por dia, conforme definido na Portaria n.º 1228/2010, de 6 de dezembro.
Os ouriços-do-mar são uma iguaria muito procurada no mercado espanhol. De acordo com o que foi possível apurar, são vendidos pelos apanhadores a 4€ o quilo aos comerciantes espanhóis, pelo que se torna um alvo muito pretendido.
A quantidade de ouriços-do-mar apreendida no exemplo acima traduz-se num valor de 1200€, na primeira venda no mercado.


Devolução dos ouriços capturados ao seu meio.


Para que tenham uma ideia dos valores que atinge esta iguaria em mercados gourmet, digo-vos que 300 gr de ovas de ouriços do mar custam no Japão cerca de 120 euros. Em França, milhares de pessoas juntam-se nos meses de Janeiro e Fevereiro para comer ovas de ouriços.
No nosso país, a captura e degustação dos ouriços é quase um exclusivo dos pescadores. Trata-se de uma espécie ignorada, tanto quanto as lapas. Temos na nossa cultura gastronómica outras possibilidades, os caracóis, os burriés, as canilhas, as ameijoas, etc, mas os ouriços não fazem parte do rol de petiscos que entram no nosso dia a dia. Os números de resto demonstram isso mesmo: dado que é necessária uma licença específica para a sua captura, acima da quantidade de 2 kgs, bastaria referir que no nosso país estão atribuídas apenas 76 licenças, a maior parte sem qualquer registo de actividade. Desde a década de 90 do século passado que esta apanha está regulamentada, sendo os meses de Outubro a Abril os mais produtivos. Correspondem obviamente ao período em que vale a pena apanhá-los, pois estão ovados. Temos aqui uma situação de difícil compromisso: se por um lado estaremos a capturar indivíduos saudáveis, em plena fase reprodutiva, o que inevitavelmente irá fazer baixar o número de efectivos na zona, por outro lado estamos a compensar a actividade predatória que a falta de peixe regista nos dias de hoje. Menos peixe, menos comedores de ouriços, logo mais reprodução. Não será de todo uma equação fácil. Bom mesmo seria podermos ter uma solução natural, um equilíbrio entre o número de peixes e ouriços, mas para isso seria necessário deixar de retirar de lá os peixes. E nós homens não fazemos isso. De resto, como vimos acima, nas reservas integrais, onde não é permitido pescar, o número de peixes é superior, e aí não há muitos ouriços. Também a relação entre estrelas-do-mar e os ouriços merece referência: quando há muitas estrelas há poucos ouriços, e vice versa. As estrelas do mar comem-nos.


As estrelas-do-mar são grandes comedoras de ouriços.


Falta-nos apenas saber que os ouriços, para quem pesca de costa, podem ser um isco de primeira qualidade. Sabem isso os antigos, os velhos lobos do mar que têm a paciência de enrolar as suas ovas numa meia de vidro de senhora, e com isso fazer uma bola, que iscam no anzol. Os sargos e douradas ficam loucos com isso. Nós também, mas com ligeiras nuances: talvez começando pelas meias de vidro das senhoras, por aí, …talvez.
Mas sempre dispensando os ouriços...



Vítor Ganchinho



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