Todos já as pescámos! A bem ou a mal, querendo ou não querendo, a verdade é que estes scombrídeos da mesma família do atum, fazem parte do leque de capturas usuais nas nossas águas. Tratam-se de peixes migradores, que aparecem mais no Verão, e fazem as delícias de pescadores novatos, que neles vêem um opositor complacente, fácil, voraz, e que lhes toleram todas as faltas de técnica e saber fazer.
Basicamente pescam-se com tudo! Podem atirar-se a um sabiki, um conjunto de penas e anzóis, podem interessar-se por um jig, um anzol com isca, uma amostra de superficie, até mesmo um popper.
O facto de não possuírem bexiga natatória faz deles uns irremediáveis viajantes. Também não têm músculos para fazer acionar as branquias. Os atuns sofrem do mesmo, e felizmente para eles, parece ser esse um dos factores que mais pesa no facto de não serem demasiado …“acessíveis” em termos de pesca. Hoje encontramo-los por mero acaso aqui, sem o equipamento adequado para eles, e amanhã vamos ao mesmo local e obviamente já lá não estão, poderão estar a dezenas de quilómetros de distância.
Há três semanas encontrei um banco de atuns de peso respeitável. Eram algumas dezenas de peixes, a comer cavala à superfície. No dia seguinte poderia ter ido procurá-los, para tentar pescar um peixe de 100 kgs. Não fui.
Movimentam-se para poder viver. A sua fisiologia obriga-os a nadar em permanência.
Uma cavala de respeito. |
Não é de todo um peixe nobre, algo que queiramos enviar orgulhosas fotos aos amigos, mas é um peixe que tem os seus atributos culinários.
E já pessoas famosas se interessaram por este peixe. Van Gogh dizia deles ”O meu Mediterrâneo tem a cor das sardas: muda de cor conforme o ponto de vista”.
Na verdade, podemos encontrar cambiantes de cor, reflexos de azul, preto e até de lilás, na pele da sarda. Van Gogh viria a pintar uma natureza morta em que as sardas constavam.
A simbologia cultural deste peixe, ficou bem patente na arte japonesa do século XIX, constando até dos seus selos. Também a pintura renascentista flamenga olhou para a sarda com atenção.
Por contra, os povos nórdicos tinham uma severa imagem deste peixe: provocava horror! Na idade média, por toda a população marinheira norueguesa havia a firme convicção que as suas riscas escuras dorsais eram nem mais que formas copiadas do esqueleto humano.
Estavam convencidos de que as sardas se alimentavam de corpos dos marinheiros que caiam dos barcos e desapareciam no mar.
Um “especialista em monstros marinhos” norueguês, Erik Pontoppidan, no século XVIII, afirmava mesmo que as sardas não se limitavam a comer os mortos, mas também alguém ainda vivo que tivesse a desgraça de cair ao mar. Ou que ousasse ir tomar um banho de mar…nú.
Se os marinheiros noruegueses da época acreditavam nisso, pouco podemos fazer. Sabemos hoje que será um absurdo pensar dessa forma, mas na altura acreditava-se em…sereias, em serpentes marinhas gigantes, etc.
Hoje em dia, e passados esses medos, ainda assim ficou um sentimento de relutância, de desprezo, por um peixe que o não merece. Todavia, há algo que podemos esclarecer, e chamar a terreiro: a possibilidade de haver complicações gastro-intestinais decorrentes da ingestão de sardas.
Há um risco inerente para quem as consumir em estado não absolutamente fresco. Já todos cortámos a cabeça a uma sarda, ou a uma cavala. Sai um jôrro de sangue escuro, quase negro. De facto, o seu consumo retardado, pode provocar um tipo de envenenamento a que se chama de “scombro-tóxico”.
Conforme muitos outros pelágicos que rodeiam a nossa costa, estes peixes têm uma carne rica em histidina, um ácido aminado que, ao degradar-se, se transforma em histamina.
A histamina é uma molécula indispensável a numerosos processos fisiológicos do nosso organismo. Nomeadamente ao despertar do nosso sistema nervoso, e à nossa resposta imunitária. Consumir a histamina da sarda e da cavala, (quando não fresca), em excesso, pode provocar uma intoxicação grave.
Isso não se aplica apenas a estes, mas a um número bem superior de peixes, que produzem/ contêm histidina em excesso nos seus músculos.
Sabe-se disto já há muito tempo, não é nada de novo. O processo terá sido descoberto em 1874, por isso, temos anos de experiência e testes suficientes. Um estudo de Albrecht Kossel sobre este tema valeu-lhe o Prémio Nobel da Medicina em 1910.
Nada de dramas: o envenenamento provocado pela ingestão da carne da sarda e cavala é raro, e um mínimo de respeito por um processo de conservação em frio, afasta o menor risco. É consumir cavalinhas e sardas, sem problemas.
De resto, tanto a sarda como a cavala fazem parte das nossas conservas nacionais, e não há registos de problemas de maior. Os japoneses, que veneram o sushi, aplicavam sobre a carne da sarda alguma quantidade de vinagre, que teria segundo eles o efeito de evitar a sua degradação rápida.
Na altura, o transporte de pescado era difícil, diria dramático, já que as populações do interior, mais carentes do produto, e por isso que por ele pagava mais, não o poderiam comer caso isso lhes provocasse distúrbios alimentares. O vinagre resolvia.
Em França estima-se que o consumo anual per capita seja de 400 gramas deste peixes. Também em Portugal a consumimos sem reservas. E mais que isso, também os nossos predadores costeiros as procuram avidamente. Pescamos com elas, e sempre com bons resultados.
A nível europeu, consomem-se cerca de um milhão de toneladas destes peixes/ ano. Com um potencial de reprodução enorme, este peixe tem aguentado firme a sua sobre-exploração. Um eminente investigador de biofísica francês, Bill François, dedicou a estes e outros peixes menores, nomeadamente a sardinha, um livro muito interessante, de nome: A eloquência da sardinha.
Gustavo Garcia com mais um ”torpedo”, uma das milhares e milhares de cavalas grandes que passam pelas nossas águas em Setembro. |
Os números valem o que valem, mas estou convicto de que poderemos facilmente bater os recordes franceses de captura de sardas e cavalas. O peso de 600 gramas, muito longe do recorde europeu, 2.790 kgs, não deixa de ser curioso.
Em Portugal temos cavalas que avizinham os 2 kgs, e são pescadas com alguma frequência.
Acredito que estes recordes sejam apenas o resultado de uma preguiça instalada, pois dão de facto muito trabalho a registar. São dias e dias, procedimentos atrás de procedimentos. Mas um recorde europeu tem de ser rigoroso, quer quanto ao peixe quer quanto ao material utilizado, e implica esforço.
Não tenho dúvidas de que podemos facilmente trazer o recorde europeu para Portugal…. o que não nos falta, e sobretudo nos meses de Agosto e Setembro, são peixes destes com tamanhos …respeitáveis.
Vítor Ganchinho
Belos torpedos e bem bons escalados sobre uma cama de brasas para ficarem no ponto...
ResponderEliminarPara quando uma reflexão sobre as douradas e sua pesca ... Elas já ai andam será o lote melhor esta época ?
Boa tarde Gomes Numa cama de brasas, ...tudo fica bem. As cavalas grandes já passaram, irão voltar no final do Verão que vem. Isto funciona por ciclos. Saem uns e entram outros.
EliminarSobre as douradas: se for para trás no blog, vai encontrar alguns artigos sobre elas, e ficar a saber que, se as pescamos com a facilidade que o fazemos isso se deve a factores tão insuspeitos quanto....a Barragem de Sta Susana, em Alcácer do Sal. Tem o processo todo num artigo, embora eu me refira ás douradas em muitos outros.
Em condições normais, aquilo que irá acontecer será que as douradas serão mais pequenas, e menos, que as dos anos precedentes. Nós não damos aos reprodutores a menor chance de sobrevivência. Pescamo-los quando eles estão mais frágeis, quando têm de alimentar as gónadas, as ovas.
Bastava interditar a captura de douradas durante 3 /4 anos e teríamos outra vez nas nossas linhas as douradas que eu pescava há 25 anos, com 4/ 5 kgs. Sem isso, é uma utopia pensar em fazer uma caixa de douradas com média acima de 2 kgs. O normal serão os deslavados ...500 gr. Ou menos.
Abraço
Vitor
Boa tarde Vitor,
EliminarMais um excelente artigo! Quem dira que a nossa tão abundante cavala, tivesse tanto para contar.
Já tem alguma data para workshops?
Grande abraço amigo Vitor,
A. Duarte
Boa tarde António Estamos com muita vontade de começar, mas a questão do aumento de casos Covid não é muito convidativa. Estamos com 1400 casos /dia e não nos parece que faça sentido convocar pessoas para uma reunião onde irão estar muito juntas, num espaço fechado. Essa é a limitação que sinto.
EliminarSobre as nossas cavalinhas: o António nem sonha aquilo que ainda falta dizer sobre os peixes que pescamos. O mar é muito grande e por isso mesmo é imensa a quantidade de temas. O que não me falta é assunto para escrever, o tempo é que me limita.
Quando lançar o meu livro, vou estar 3 meses em retiro, e vai ver que aquilo que vai sair vai ser interessante. Falta-me tempo...estou sempre pressionado entre aquilo que as pessoas querem que eu faça, (escrever todos os dias....) e aquilo que eu devia fazer: assentar as ideias e preparar algo em grande!
Abraço
Vitor