COMER ATÉ NÃO CABER MAIS

Sempre me interroguei sobre a razão de as aves marinhas terem uma capacidade anormal de ingerir comida.
Por aquele bico de queratina dura e goela elástica passam peixes com tamanhos insuspeitos. Todos já oferecemos pequenos peixes às aves marinhas que cercam o barco quando nos encontramos fundeados.
E elas comem, as nossas bogas, os piços, as infelizes garoupinhas que ficam à superfície, incapazes de retomar o seu lugar nas profundezas. Mas isso não é saber muito sobre aves marinhas. Provavelmente ficarão surpreendidos com a quantidade de detalhes que não sabem sobre todos esses pássaros que nos rodeiam. Bem sei que aquilo que é mediático são as caixas cheias de robalos, mas quem apenas sabe de robalos pouco ou nada sabe de mar.
Por isso, hoje falamos de aves marinhas, e vão ver que vale a pena saber um pouco mais.




O bico das aves é uma estrutura que nos habituámos a reconhecer, e nem sequer nos interrogamos como surgiu e qual o grau de especialização que implica para cada uma das espécies que nos acompanham a voar sobre o nosso barco.
Consideremos que o bico é constituído por um maxilar ósseo, superior e inferior, ou se quiserem maxilar e mandíbula, respectivamente. Esta estrutura é coberta pela ranfoteca, (estranho nome!), ou seja a camada de queratina que cobre ambas as partes do bico.
A camada queratinosa que recobre o bico superior é conhecida como rinoteca e a que recobre o bico inferior como gnatoteca. É na rinoteca que se encontra o par de narinas.
As aves marinhas, consoante o seu tipo de alimentação, assim têm bicos mais ou menos compridos, mais ou menos fortes. Falamos de adaptações específicas, necessárias, vitais, e que de uma forma evolutiva conduziram a ave a um determinado nível de capacidades.
Um alcatraz, “Morus bassanus”, vulgo “ganso patolas” entre nós, necessita de um bico longo e forte, pois utiliza-o para aprisionar os peixes de cardume sobre os quais mergulha. Os patolas mergulham todos os dias a mais de uma dezena de metros, impulsionados pela energia cinética que ganham na sua queda livre sobre a água do mar. É um espectáculo frequente, que podemos ver sempre que quisermos, a cada dia de mar. Possuem uma camada esponjosa na base do crânio que amortece o impacto, e impede a morte da ave, ao colidir com o mar.
São adaptações que tendem para a perfeição, exaustivamente testadas numa base diária, muito eficazes, e sem elas, obviamente que o pássaro deixaria de existir.
E quando surgiu o bico? Na história evolutiva, aconteceu várias vezes ao longo de milhões de anos a perda dos dentes em algumas linhagens de dinossauros. Sempre e sempre a especialização.
O processo evolutivo levou a que o rostro, assim se conhece anatomicamente o “bico”, se tenha diversificado imenso, de acordo com a necessidade que a ave teve de abocar isto ou aquilo.
Uma andorinha que come insectos tem um bico fino e curto, um papagaio que come frutos não poderia cortar e descascar estes com o bico da andorinha. E todavia, ambos são muito eficazes, na sua especialidade.
É o alimento que define o tipo de bico necessário à ave. O resto são asas, comprometidas com factores como o voo, são patas, dedicadas a aterragens e locomoção na água, mas nada disso integra o aparelho alimentar. É o bico aquilo que conta mesmo.


O bico é uma ferramenta terrivelmente eficaz na captura de peixe, arenícolas e outros invertebrados. Esta garça é um exemplo claro da adaptação específica a uma determinada forma de conseguir alimento.


As aves piscívoras, que comem peixes, como os gansos patolas, os martim-pescadores, garças, pinguins e gaivotas, possuem diversas adaptações que lhes são necessárias para capturar peixes.
Geralmente, estas aves possuem pescoços longos com bicos retos e pontiagudos para “esfaquear” a presa. A evolução das espécies fez esta arma evoluir consoante o contexto do nicho alimentar ocupado.
Se podemos dividir, de acordo com a especialização, as aves marinhas em dois grandes grupos, especialistas e generalistas, temos que o ganso patolas é um especialista e a gaivota um generalista.
Como devem calcular, para uma ave especialista é importante que exista disponibilidade de alimento. Do seu alimento. Se não há sardinha, cavala ou carapau, ….não há gansos patolas.




Confesso ter pena que não tenha conseguido filmar um episódio absurdo, passado comigo e com o meu amigo Gustavo Garcia. Estávamos a pescar os dois, estilo pesca vertical, e a dada altura chega bem junto de nós um ganso patolas.
O Garcia atirou-lhe uma boga, eu sacrifiquei uma das cavalas que tínhamos capturado para isca, o patolas comeu os dois, e daí para a frente, foi um excesso, uma carga de mais bogas e cavalas, até que nos pareceu que já seria demais, e que seria melhor parar por ali.
Na verdade, a ave não parava de comer e a dúvida que subsistia era, desde logo, saber até onde iria caber comida naquele corpo de 3 kgs de peso médio. A seguir, como iria o ganso patolas levantar voo, quando quisesse ir embora.
Na verdade, …não foi. Com cerca de 1,5 kgs de peixe dentro, e sendo os patolas particularmente desajeitados para levantar voo, este não conseguiu voar. Estava pouco vento, (e reparem quando saírem à pesca que eles levantam voo sempre contra o vento), e a carga de comida tinha sido excessiva.
Logo, zero possibilidades de deslocação, até digerir todo o conteúdo do estômago. O que para uma ave, é sempre perigoso….
Os patolas nidificam no Atlântico Norte, em grandes colónias, normalmente em penhascos rochosos ou ilhas remotas. Pode acontecer que existam mais de 60.000 aves num espaço relativamente pequeno. Quando os “pintos” acabam de ser criados e começam a voar, descem no Atlântico até à nossa costa, onde permanecem todo o Outono e Inverno. Temos comida que eles na sua zona de nidificação não conseguem obter. A perda de habitat, a morte de adultos e a remoção de ovos dos ninhos tem sido causadora de uma redução de efectivos. Mas continua a ser uma ave muito dispersa por toda a Europa.
Gostaria de vos surpreender com algo muito interessante: os patolas funcionam em rede, tal como a Internet que nós utilizamos. As aves espalham-se pela costa, e os seus olhos eficazes detectam quando uma delas descobre um cardume e cai sobre ele. A partir desse momento, gera-se uma corrente de aves que se dirige a um ponto único. Os golfinhos ajudam a trazer peixe à superfície, e os patolas aproveitam a benesse para mergulhar e capturar muitos desses peixes.
Nós podemos dar-lhes peixe quando pescamos, mas tirando alguma fugaz dependência, isso pouco conta. Em termos de regularidade alimentar, aquilo que damos a este ou aquele pássaro quando pescamos no nosso barco, nada representa em termos de espécie. As aves marinhas valem-se por si, e por isso mesmo é importante que tenham uma quantidade de alimento significativa à sua disposição. Haver comedia, ou seja, peixe miúdo junto à costa, é um garante de que continuaremos a observar as nossas aves, e porventura mais importante que isso, que continuaremos a ter os nossos peixes predadores por perto das nossas cavalas, das nossas sardinhas, etc, etc. Falamos de robalos, de corvinas, de atuns, etc.


As garças cinzentas são exímias pescadoras. Com o seu pescoço comprido e bico afiado, conseguem capturar peixes com enorme facilidade. A altura das patas permite-lhes entrar na água e chegar aos locais onde os alevins necessitam de estar, para fugir aos jovens robalos. Para os minúsculos peixinhos, se de um lado chove, do outro faz vento...



Vítor Ganchinho



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