Quando saímos a pescar, colocamos um foco muito especial em peixes grandes, em grandes troféus, porque são esses que nos fazem sonhar, é para esses que nos preparamos, é por esses que adquirimos canas e carretos, linhas e amostras, sacos e barcos, e gastamos rios de combustível.
Mas não são os peixes de grande tamanho que contam verdadeiramente quando falamos de manutenção de uma cadeia alimentar equilibrada. Esses são quase o fim da história, e se a quisermos entender na sua plenitude, somos forçados a ir à procura das razões de existirem predadores como os robalos, os atuns, os meros e as corvinas, os sarrajões e os espadartes.
A história começa bem mais atrás, e de forma bem menos mediática, bem menos visível.
No princípio de tudo são as águas, os seus sais minerais, as algas que vivem de fazer fotossíntese a partir dos raios solares. Segue-se todo um desenvolvimento de pequenos seres microscópicos que irão alimentar outros um pouquinho maiores. E a seguir, o primeiro elo da cadeia alimentar visível: os peixes forragem, a comedia dos nossos predadores. São estes que, com a sua presença, ou ausência, condicionam a existência ou não de todos aqueles que se seguem no topo da pirâmide.
Parece-me hoje ser oportuno falar-vos sobre as razões de termos, ou não termos, cavalas, sardinha e carapaus, na nossa zona de acção. Porque acreditem, sem eles, não teríamos a possibilidade de poder pescar os peixes que tão religiosamente guardamos nos arquivos dos nossos telemóveis.
Temos na nossa costa um palco privilegiado para assistir a algo que passa em cena todos os dias: a movimentação dos cardumes. |
Não deixa de ser um espectáculo tremendo, o de ver cardumes de milhares de peixes miúdos à superfície, com a água a burbulhar de actividade. É mais normal que se vejam quando nos encontramos no mar à noite. Com efeito, e pelo menos aqui, no Atlântico Nordeste, a rotina de vida destes pequenos peixes assenta sobretudo na permanência a cotas mais profundas, até aos 100 metros, durante o dia, e é à noite, a coberto da escuridão, que vêm a águas mais rasas, na ordem dos 20/ 30 metros, para se alimentarem de algas e pequenos crustáceos.
De manhã bem cedo é, ocasionalmente, possível encontrar sardinhas ainda em águas baixas. Se apoquentadas por predadores, podem ter de subir mesmo à superfície, e é aí que as encontramos ao raiar do dia.
Por vezes, algumas dezenas desses peixes espirram fora de água, sobressaltados por algo que passou perto, ou está em baixo, a dar-lhes caça. São sardinhas, carapaus, cavalas, as espécies mais comuns.
Sofrem um ataque, abrem alas fazendo um espaço vazio à volta do predador, perdem alguns efectivos, reagrupam-se e seguem no seu caminho. Para onde vão estes pequenos peixes? Que estranha migração é esta?
Tudo e todos se alimentam destes pequenos seres. Não há piedade para um cardume de sardinha. Por baixo têm os pargos, os robalos, os atuns, as sardas, ao lado aparecem-lhes os atuns, as tintureiras, os espadartes, os golfinhos, as baleias.
Do céu chovem aves que os engolem. Os gansos patolas, as gaivotas, os cagarros. Tudo aquilo que tem boca, escamas, patas e bico quer comer sardinhas, cavalas e carapau. E por fim, uma rede de cerco traiçoeira chega e leva quase todas.
E a solução é reproduzir mais e mais, pôr e fecundar mais e mais ovos. Porque os predadores não mostram nem um laivo de piedade.
A reprodução destes peixes é feita em grupo, entre os meses de Outubro a Abril, e os óvulos levam algumas semanas a eclodir. Uma fêmea pode depositar cerca de 50.000 a 60.000 óvulos. Irão nascer larvas que são transportadas pelas correntes, aparentemente sem rumo definido. Dessas larvas, desses milhões e milhões de larvas, irão resultar alevins, de minúsculo tamanho, mas já com formato de peixe. Nesta fase, estes pequenos seres estão muito dependentes de questões como a temperatura e salinidade das águas. À medida que as nossas águas aumentam de temperatura, pode acontecer que os cardumes de comedia tenham de migrar para outras paragens, nomeadamente deslocando-se para norte, onde encontram temperaturas médias mais frias. Dêem-se conta de que tudo isto implica adaptações metabólicas, mudanças no próprio peixe. Quando acelera o metabolismo, altera também o nível de consumo de oxigénio.
Os equilíbrios são muito ténues, e há, felizmente, quem se ocupe de entender as razões de o peixe estar aqui ou ali. Portugal está bem servido de técnicos especializados, que sabem bem o que fazem.
Qualquer diferença na temperatura mínima da água do mar implica mudanças na taxa de oxigénio dissolvido, e isso provoca câmbios a nível molecular nos nossos peixes. E eles são obrigados a reagir a isso. A capacidade adaptativa dos nossos peixes miúdos, (e também, por consequência, de todos os outros…) está a ser posta à prova. O caso é tão mais importante quanto o nível de stocks existentes esteja mais ou menos baixo. Assistimos há bem pouco tempo a uma limitação de capturas e a ao estabelecimento de tempo de defeso para as nossas sardinhas. E sem dúvida, tudo é mais complexo quando se tratam de espécies pelágicas, não sedentárias, e cujas migrações ultrapassam as fronteiras nacionais de um país. De pouco adianta estabelecer níveis de capturas sustentáveis, se do outro lado, no país seguinte, esses critérios não são respeitados.
Tudo isto nos afecta, porque estamos umbilicalmente dependentes da existência de peixe miúdo para conseguirmos pescar aquilo que come esse peixe miúdo. Por isso é tão importante compreender os mecanismos de adaptação das nossas cavalas, dos nossos carapaus, aos impactos que as alterações climáticas provocam no meio ambiente.
Iremos continuar a pescar, com melhores ou piores resultados, mas não nos é indiferente que exista mais ou menos comedia.
Porque os nossos alvos, os peixes predadores, dependem em absoluto da existência, ou não dessa comida. Ou terão de ir embora, à procura de alimento noutras paragens.
Vítor Ganchinho