UM MARLIN RECORDE!

Trago-vos hoje um artigo que me deu algum trabalho em termos de recolha de imagens, e dados. Espero que gostem, e que entendam que aquilo que aqui está é uma pérola de pesca.
Porque é Natal, entendam-no como uma prenda, algo que vos passo com muito carinho, com muita estima, de pescador para pescadores.

O Senegal sempre foi um lugar com muito peixe. Está situado numa zona absolutamente privilegiada pela natureza, uma placa giratória por onde todo o peixe de águas frias, e quentes, tem de passar ao longo de todo o ano.
As águas do mar oscilam entre os 12ºC e os 31ºC, mudando tudo, baralhando para voltar a dar as cartas. As migrações sucedem-se e trazem com elas peixe novo, peixe fácil.
Os últimos anos têm sido penosos para quem vive do mar, para quem depende da quantidade e qualidade de peixe que povoa as pedras, pois os caçadores furtivos mataram muitas toneladas de peixe com armas de pressão equipadas com arpões.
Os locais até aos 80/90 metros de fundo são passados a pente fino por estas pessoas, de armas e garrafas, numa demonstração de brutalidade, de falta de respeito pelo meio ambiente e por si próprios.
Há um artigo publicado o ano passado sobre este tema, precisamente a 20.07.2020, que podem revisitar, para terem a noção do quanto é grave e lastimável a situação criada. E de como é difícil inverter a situação num país que pouco mais tem para explorar que a sua costa marítima.
Ainda assim, e por terem de vencer menos burocracia e requisitos, os senegaleses são muito proactivos na forma como exploram as possibilidades de ter peixe junto à costa. Recordo-me da primeira vez que visitei os destroços de M`Bao, um cemitério de navios afundados. O cenário é dantesco, com algumas centenas de petroleiros e barcos diversos, um criadouro de peixe como nunca vi. Há milhões de peixes que circulam em torno de estruturas de barcos que não teriam outra utilidade que não a de ser uma estrutura inerte.
Mas criadora de vida. Ao longo dos anos, perceves, mexilhões e uma infinidade de microrganismos fixaram-se a tudo o que eram superfícies disponíveis e a partir daí, foi uma explosão de vida incrível.
Recordo-me de ter metido a cabeça dentro de uma escotilha de um desses navios e ver lá dentro de um compartimento centenas de saimas, com pesos acima dos 4 kgs. Há garoupas gigantes a deambular pelos cavernames, protegidas da pesca com redes e aparelhos por algo que não dá hipóteses a nenhum humano: as chapas metálicas cortam tudo aquilo que as poderia sujeitar. Não há fios de nylon, redes, nem nada que as retenha. E por isso, crescem e aos poucos acabam por sair da reserva e ir povoar outras zonas.
Uma outra ideia humana aprovada pelos peixes, são os DCP`s. Trata-se de um simples objecto afundado, uma bóia, presa ao fundo por uma corrente e um peso. Sabemos da atracção que os peixes sentem por se encostarem a objectos flutuantes, vejam os chernes com objectos a flutuar, um tronco, uma palete, um contentor (sim, caem contentores ao mar dos navios cargueiros!...), um molho de canas, etc. Pois a ideia é simples, é recriar essas condições num ponto fixo, que é marcado com GPS, e que passa a servir de referência para as deslocações dos cardumes de peixes.
E atrás da presença de pequenos peixes, temos os outros, e os outros maiores.
Venho hoje ao blog com a firme intenção de vos mostrar algo que vos vai impressionar: o tamanho dos peixes que é possível capturar naquelas paragens!


O meu amigo Mohamed Sow, um senegalês típico, com 1,90 mts de altura, parece pequeno ao lado deste peixe, mais um dos marlins regularmente capturados em N`Gor.


Gostaria de vos poder transmitir com exactidão o sentimento que esta gente tem por uma captura que é recorde do mundo: é apenas trabalho.
Não deixa de ser impressionante a frieza com que encaram estes casos de bichos com pesos estratosféricos, acima do padrão. Enquanto que para nós um feito destes seria celebrado durante dias, para esta pessoa que, sozinho, a bordo da sua piroga de madeira adentra o mar e vai em procura de algo que possa vender e fazer algum dinheiro para a família, não é mais que o resultado de uma saída de pesca.
E que fica por ali, pois no dia seguinte volta a ser necessário sair, sozinho, e capturar algo mais que dê para fazer algum dinheiro. Não há tempo para desfalecimentos, para cansaços, porque a vida continua e há que trabalhar no mar.
Deixem-me dizer-vos que não estamos apenas a falar de uma captura de um peixe com mais de 900 kgs. É muito mais que isso! É uma captura feita a bordo de uma embarcação de madeira, extremamente instável, a qual, por experiência própria vos digo que abana por todos os lados, que mete água com muita facilidade, (o casco é basicamente um triângulo de madeira, e quando nos inclinamos para um dos bordos, o casco acompanha, até ficar colado à água, ou seja, a deixar entrar água que tem de ser escoada com um vertedouro), e que em termos de segurança oferece apenas o facto de flutuar.
Dada a baixa altura das pirogas, as “almadias” como lhes chamaram os portugueses que naquele país traficavam escravos a partir da ilha de Gorée, o risco de acidente é omnipresente. A cada instante pode acontecer uma desgraça!
São inúmeros os casos em que o pescador acaba trespassado pela lança de um destes poderosos peixes. Não são raros os momentos de aflição vividos ao largo, a muitos quilómetros de terra, em que um destes corajosos pescadores acaba por ser projectado à água por um marlin.
Nem nos vossos piores pesadelos poderão sonhar com aquilo que de mau pode acontecer a um pescador de marlins senegalês. E todavia, para eles isso, é trabalho. Morrem todos os anos algumas pessoas, mas isso são custos de “produção”, os casos de falecimentos são encarados como sendo o preço a pagar por uma existência que, em terra, não é mais fácil. A ausência de empregos, de perspectivas de vida torna a pesca, o risco do mar, como sendo algo aceitável.


Foi este o pescador, e esta a piroga. Aquilo que está em jogo a cada instante é mesmo a vida da pessoa. Eu sei o que digo, porque durante muito tempo pesquei num destes barcos, no Senegal. Tive mesmo uma com o nome de pessoas da minha família, uma gentileza de um amigo local.


Um marlin é um bicho perigoso, e tem zero dificuldade em saltar para cima, ou para dentro de uma embarcação tão baixa. Vê-lo aproximar-se do barco de madeira será algo de …aterrador.
Os acidentes mortais sucedem-se, sendo a consequência imediata e inevitável de tamanho risco. Não será o único. Sair ao mar sem GPS ou sonda, procurando no horizonte sinais de peixes a saltar, será tudo menos fácil.
Não vale a pena procurar por caixas de primeiros socorros, meios de comunicação, comida, água, o que seja, porque dentro de um barco de madeira que mete água pelos bordos, … nada resiste.
É Hemingway no seu estado mais puro, o homem e o mar, e nada mais.


Reparem bem no tamanho deste peixe, e tentem imaginar o esforço que é necessário fazer para o trazer a terra.


A técnica de pesca é de tal forma rudimentar que parece absurda: o pescador segura na mão uma linha de nylon grosso de onde pende um peixe agulha, armado de um anzol. Faz-se corrico, e cruza-se a zona onde é expectável que se passeiem estes senhores dos mares. Ao contacto, ferra-se bem forte, à mão, e a seguir a linha de pesca é passada na proa do barco, enrolada no espigão da frente.
O peixe irá durante algum tempo arrastar a embarcação, e perder parte da energia inicial. Ao aproximar-se da piroga, o pescador firma-se com ele, puxa-o a jeito de um cacete, e dá-lhe com ele na cabeça até o arrumar.
O procedimento é tão carregado de riscos, que é bom que os meus leitores nem sonhem em fazer igual. Puxar um marlin do tamanho da piroga e tentar acertar-lhe na cabeça com um pau é algo de suicida, porque ao menor descuido, o peixe entra pelo barco, e mata ou projecta borda fora o seu único ocupante. O que, a 40 ou 50 km da costa, vai dar ao mesmo.


Neste momento, o que “está a dar” é pescar nos DCP`s, objectos afundados ao largo da costa, onde se concentram os predadores marinhos. A cadeia alimentar forma-se à volta das bolachas submersas, e permitem capturas invulgares.




Foi feito um recorde do mundo, com um marlin de 936 kgs, comprimento total 6.05 mts. Poucos dias depois, mais um outro exemplar de respeito, e a vida segue o seu ritmo, indiferente ao facto de ser, ou não, um recorde do mundo.
Até porque as possibilidades de homologar um recorde de pesca feito com linha de mão, zero grosso, sem marca, sem equipamentos de aferição, é pouco menos que nula.
Para estes marinheiros isso conta muito pouco, eles apenas querem saber do valor que irão obter ao chegar à praia. E que costuma ser pouco, porque quando há fartura o preço baixa a valores indigentes.
Estou certo de que poucos portugueses aceitariam dar a sua vida por tão pouco.




Também nesta altura do ano os turistas chegam para tentar a sua sorte. Mas o enquadramento é outro, os barcos são outros, os meios técnicos bem diferentes.
Desde logo porque se pesca com cana e carreto de Big Game, com o pescador sentado numa sela de combate, com ajudantes, com água fresca para beber.
Estes combates são morosos, implicam perseverança e braço firme. Mas nada como a pesca do marlin feita pelos senegaleses, à senegalesa, com linha de mão. É para eles, para todos os meus amigos do Senegal, que eu envio hoje um grande abraço, carregado de amizade e admiração. São eles quem encarna a verdadeira essência da pesca, do risco extremo, da necessidade de pescar.


Absolutamente incrível! Em terríveis condições de mar, sozinhos, longe da costa, lutam muito duro por um peixe.


Vejam o filme:




Estes pescadores, não obstante verem morrer os colegas semana a semana, saem para o mar, para ir em busca do seu sustento e da família.
Com uma linha e um anzol.



Vítor Ganchinho



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