Pintam-nos de preto! Se nos descuidamos, levamos uma borrifadela de ferrado e ficamos com o barco, as roupas, e a alma completamente negras. Este líquido negro era utilizado na antiguidade para …produzir escrita.
Depois de deixarmos secar, é francamente difícil de remover. Daí a inexistência de dúvidas relativamente aos barcos que se dedicam a esta pesca. Espreitem no Clube Naval de Setúbal e vão ver quais são, sem margem para erros.
E no entanto, a pesca do choco é algo cada vez mais popular, mais praticado nas zonas onde habitualmente este cefalópode costuma ocorrer.
Verdade que a evolução da sua pesca, e também a pressão inusitada que sobre ele exercemos, cada vez maior, levam a que os tempos de facilidades já sejam algo do passado.
A distância entre a pesca de há um século e a de hoje é tremenda (não perca o artigo de amanhã sobre este tema) e a única semelhança é mesmo o choco. Quem o pesca já não é o velho varino setubalense, mas sim o pescador desportivo. Por equipamentos já não se usa a toneira e o “radar”, mas sim um palhacinho em plástico, coberto com uma capa de cores coloridas. Tudo mudou.
No blog de hoje, cumpre fazer uma análise detalhada do nosso protagonista destes últimos dias, o choco. O que é um choco, afinal?
Não é de todo um peixe. Ele, as lulas, os polvos e os náutilos fazem parte de uma linha de invertebrados a que damos o nome de cefalópodes.
Enquanto as lulas fazem a sua vida em águas abertas, encostando pontualmente a terra para desovar, o mais normal é que possamos encontrar chocos junto à costa, em águas rasas.
Zonas estuarinas servem-lhes na perfeição e isso explica o enorme sucesso da pesca ao choco na região onde vivo, Setúbal.
Surpreendentemente há muito mais machos que fêmeas, a relação pode ser de 11 para 1. Isso explica as lutas titânicas que os chocos machos travam para conseguir conquistar os favores das suas escassas parceiras.
A prioridade vai sempre para os chocos maiores, mais fortes, que conseguem afastar os mais débeis. Como em quase todos os aspectos da vida, também aqui os mais fortes vencem e ganham o direito a procriar.
Em termos anatómicos, a sua pele é extremamente complexa, e é usada para trazer enormes benefícios ao seu portador.
De facto, poder mudar de cor, contraste e textura a cada instante pode ser muito útil num mundo em que é predador e presa no espaço de uma fracção de segundos. Isso pode fazer a diferença entre a vida e a morte.
Chamam-se cromatóforos, as células presentes na sua pele, que mais não são que pigmentos que reflectem a luz, e que lhe permitem esconder-se de quem os quer comer, ora misturando cores claras com a areia onde se escondem, ou chegando a tons escuros quando por cima de uma pedra.
Por estranho que vos pareça, os chocos estão perfeitamente desenvolvidos antes do acto de nascimento. Mais que isso, mesmo dentro do óvulo já acusam mudanças de cor na pele como reacção a algo que ocorre nas imediações. Não deixa de ser espantoso!
Com um sangue à base de cobre, a cor natural deste é verde, ao contrário da maior parte dos animais habitantes do nosso planeta, cujo sangue à base de ferro lhes dá uma coloração vermelha.
O bico - Parecido com o bico de um papagaio, é extremamente afiado, e não tenham dúvidas de que, pese embora esteja muito bem disfarçado entre os tentáculos do animal, está lá e é usado sempre que necessário.
Pode servir para matar uma presa, para abrir uma fenda na carapaça de uma caranguejo, ou para... nos morder. Cuidado com a sua dentada, porque normalmente deixa marcas. Também o fará com os seus rivais directos, quando se trata de lutar por uma fêmea.
O cérebro - Sem dúvida, o choco tem uma das maiores proporções cérebro-corpo dos invertebrados, eventualmente até maior que o polvo.
Consegue lidar com a entrada de uma enormidade de informação, e coordena os sentidos do animal, a visão, o olfacto, e ainda o som, este sob a forma de ondas de pressão. Há imensos cientistas que se dedicam ao estudo dos chocos, e todos são unânimes em admitir que em termos de inteligência animal, poderá estar lado a lado com o polvo.
Os olhos - Embora daltónicos, (ver artigo anterior sobre a forma como os chocos veem os nossos “palhacinhos”), os chocos têm dos olhos mais desenvolvidos do reino animal. Não só podem ver muito bem com pouca luz, leia-se inclusive à noite, como podem também detectar luz polarizada, aumentando a sua percepção de contraste. Se nós humanos ajustamos as lentes graduadas dos nossos óculos para ver os objectos bem focados, eles conseguem, mercê do tamanho desproporcionado dos seus olhos face ao corpo que têm, fazer a ampliação da imagem na retina, enquanto a pupila em forma de W ajuda a controlar na perfeição a intensidade da luz que entra no olho. Podem eventualmente ver melhor de noite que nós de dia...
Detalhe do aspecto de um olho de choco. |
A casca de choco - Sem dúvida uma das características mais definidoras do animal que estudamos hoje é sua casca branca em formato oval.
Trata-se de uma concha porosa interna, que é utilizada para controlar a flutuabilidade. Em termos funcionais, é algo muito próximo da bexiga natatória dos peixes, e serve para algo mais que um suplemento alimentar, uma dose de cálcio, para o canário que as pessoas têm em sua casa. Serve por exemplo para controlar o seu posicionamento na coluna de água, quando o choco tem de fazer migrações verticais.
Se é verdade que podem decorrer horas antes de essa concha poder ser uma ajuda efectiva à flutuabilidade, (o choco tem em permanência a parte da frente da sua concha com as câmaras cheias de gás, e as câmaras da parte traseira cheias de água), as pequenas diferenças que isso possa provocar são facilmente compensadas pelas suas barbatanas natatórias laterais. Vejam-nas abaixo:
Barbatanas - Estas barbatanas especializadas, que a nós nos parecem tudo menos isso, dão-lhe o suporte de mobilidade básica, pequenas tarefas de mudança de direcção em qualquer sentido, alteração de nível de profundidade, etc.
O jacto de água expelido pelo sifão apenas é útil em situações de fuga a predadores. Na verdade não é utilizado com muita frequência.
Em condições de vida normais, sem predadores à vista, esta saia lateral chega e sobra para as tarefas a desempenhar. Pode servir para andar para trás, para a frente, e até descrever círculos.
Não esqueçam que os ataques a potenciais presas são feitos a partir de uma posição estática, lançando os tentáculos a grande velocidade, e agarrando as vitimas com as ventosas. Nada de corridas pois, e por isso, a saia lateral serve perfeitamente.
Guelras, corações e sangue - Espero que tenham reparado que não escrevi “coração” mas sim “corações”. Sim, o choco tem 3 corações, dois deles bombeando sangue para as suas brânquias, e um circulando o sangue oxigenado para o resto do corpo. Este sangue é de cor azul esverdeado, porque possui hemocianina, uma proteína contendo cobre, típica dos cefalópodes. O sangue vermelho dos mamíferos, com proteína hemoglobina, rico em ferro, faz a mesma coisa.
Saco de tinta - Estes bichinhos sofrem agruras com predadores e por isso têm diversos mecanismos de defesa. Se a camuflagem é aquele que mais procuram utilizar, por razões óbvias, pois o não serem vistos liberta-os de ter de encetar fugas violentas, ainda assim nem sempre resulta.
E quando chegam a esse ponto, os chocos socorrem-se de um saco de tinta que pode protegê-lo de adversários que caçam à vista. O choco tem duas formas de poder ejectar a sua tinta:
1- Pode criar uma cortina densa de “fumaça” que impede o predador de ver para onde escapou.
2- Pode ainda libertar tinta sob a forma de “pseudomorfos”, ou seja de bolhas de tinta cercadas por mucos, que dão a ideia ao predador de haver vários chocos à sua frente. Estas bolhas são do tamanho aproximado do choco, e podem actuar como distração do agressor, que passa a ter vários pontos onde focar a sua atenção. Esta tinta, que contém dopamina e L-Dopa, um percussor da dopamina, também pode paralisar temporariamente o olfacto dos predadores que caçam pelo cheiro.
Linhas laterais - Embora o choco não possa ouvir, ele pode no entanto perceber e detectar o som sob a forma de ondas de pressão. Para isso, utiliza as suas linhas epidérmicas laterais. Vistas sob um microscópio electrónico potente, essas linhas consistem em milhares de células ciliadas.
São extremamente sensíveis a sons que variem entre 75 e 100 Hz, sendo estes 100 Hz semelhantes à frequência de um motor de automóvel standard, funcionando em velocidade máxima. Estudos fisiológicos demonstraram que, na mais completa escuridão, em negro total, um choco saudável, na posse de todas as suas faculdades, pode capturar cerca de 50% das presas disponíveis em seu redor. Caso estas linhas epidérmicas estejam comprometidas, danificadas por algum motivo, esta percentagem desce abaixo de 30%. Estas células ciliadas, para além de serem utilizadas na procura de alimento, também são úteis em termos de defesa, pois são capazes de detectar a presença de predadores.
Manto - Já vimos acima que os chocos, em caso de perigo podem escapar muito rapidamente de cena. Garantir a sobrevivência implica ter armas de defesa que sejam eficazes, e isso é feito da seguinte forma: o choco literalmente escapa por ter capacidade de propulsão a jacto!
Para fugir a um predador, o choco suga água para o seu interior, e em seguida usa os fortes músculos do manto para expelir o líquido com o máximo de força possível. Isso projecta-o na direcção contrária, no sentido posterior ao da sua cabeça. A água sai por um funil, ou sifão, que controla o ângulo da pulverização. Esta cavidade do manto também auxilia o animal na sua respiração, trazendo água para as brânquias, que por sua vez filtram o oxigénio da corrente sanguínea.
Órgãos reprodutores - Durante o acasalamento, o choco utiliza um braço modificado para transferir o seu material genético para a região bucal da fêmea. É aí que a fêmea armazena os espermatóforos do macho, até que esteja pronta para os utilizar na fertilização dos seus óvulos.
Vimos atrás que a futura progenitora é pouco séria, aceita mais do que um macho, pelo que os machos, antes de procederem a esta transferência de espermatóforos, utilizam o seu jacto de água para injectar líquido na boca desta, e assim conseguirem retirar e lavar material de reprodução de outros machos.
Quando a fêmea está pronta para depositar os seus óvulos, normalmente num local considerado seguro, mas que até pode não o ser, (redes lançadas nesse dia, algas à deriva, covos de polvos, depressões na areia …), ou sítios bem mais seguros, tais como conchas abandonadas, pedras, estruturas portuárias, tubagens, etc, a fêmea usa os braços para cuidar dos espermatóforos armazenados em cada ovo. O objectivo é o mesmo de sempre, garantir o máximo número de potenciais crias.
Pele - Quando se trata de mudar de pele, o choco não dá possibilidades nem a um camaleão! A sua pele possui até 200 cromatóforos (células de pigmento) por milímetro quadrado, permitindo que o animal obtenha cores que estão muito próximas do padrão do ambiente em que se encontra.
Para além disso, ainda consegue reproduzir texturas, rugas, picos, que o assemelham a uma pedra, uma alga, etc.
Espero que tenha sido útil.
Amanhã à mesma hora, com um trabalho interessante para fechar esta série dedicada aos chocos.
Vítor Ganchinho