APRESSAR A PESCA, FORÇAR O PEIXE

Vivemos um momento civilizacional em que queremos que tudo se passe de acordo com os nossos interesses, e depressa, de forma imediata. Temos pressa de viver.
Porque nos parece bem que tudo aconteça da forma mais conveniente para nós, arranjamos estratagemas de viver várias vidas no mesmo dia. Um comando de televisão permite-nos voltar atrás e ver o jogo de futebol que não vimos porque a esse momento estávamos a pescar. A vida corre rápido, porventura depressa demais, e ainda assim queremos incluir mais experiências, mais vida dentro da vida de um só dia.
E por isso não espanta que essa sede de dar mais tempo ao tempo, chegue à pesca.
Queremos ter certezas, queremos não ter de esperar pelo peixe que achamos merecer. No fundo, queremos pegar num comando, cortar os tempos mortos e forçar o peixe a morder. Depressa!


Em zonas de rebentação, o tempo é algo de importantíssimo. A cadência das ondas marca o ritmo, tudo se passa de acordo com aquilo que a força do mar deixa fazer nos intervalos da pancada de água.


Muitos de nós esquecem que do outro lado da linha, o nosso opositor, é um ser que tem interesses próprios, que se defende, que vive se não fizer aquilo que exigimos que faça: comer sem qualquer tipo de cuidado ou desconfiança, e a qualquer hora do dia.
Os peixes também contam, também têm “agenda própria” e muito poucas vezes coincide com a nossa, com aquele dia que tirámos da nossa citadina rotina para sair à pesca.
Pretender que o momento em que lançamos a nossa linha coincida com o momento em que o peixe está com a boca aberta e faminto, é desde logo um exercício de “pontualidade horária” que apenas nos nossos sonhos é possível. Os peixes comem por ciclos, por espaços de marés, por períodos em que a alimentação lhes chega de forma mais fácil, num mundo aquático em que tudo lhes é difícil. Têm um timing de alimentação que é deles.
Isso nada tem a ver com os ponteiros do nosso relógio.


Desfrutar do contacto com a natureza deveria ser só por si uma motivação suficientemente forte para irmos pescar.


Meditei sobre este assunto um destes dias em que me vi a braços com várias contrariedades ao mesmo tempo. Explico-vos quais para que possam seguir o meu raciocínio:
Com o topo da maré cheia a dar pelas 13.00h, em condições óptimas eu teria de estar a pescar no local por volta das 10.00h, para poder fazer as últimas 3 horas de enchente. Era aí que queria lançar os meus jigs e tentar um bom pargo, com peso, em pedras a 60 metros de profundidade.
Quando deixo descansar uma pedra por um período mais longo, digamos 4 a 5 semanas, espero sempre que esse tempo tenha sido o suficiente para a pedra poder estabilizar, para que os peixes ganhem confiança e repouso, para que exemplares de maior tamanho possam ter entrado e feito a sua fixação nos pesqueiros. Uma pedra que é pescada com regularidade apresenta um gráfico de capturas em decrescendo, de mais a menos, tendendo para zero, e isso não tem a ver apenas com a escassez cada vez maior de exemplares pescáveis, mas sim, e sobretudo, com o desinteresse dos peixes nas nossas amostras. O peixe que fica, entende o engano e deixa de reagir aos estímulos que lhes apresentamos.
Mas esta pedra a que queria ir estava suficientemente descansada para poder dar algo de bom. Todavia, a previsão meteorológica era desfavorável para aquilo que pretendia fazer.
Por volta das 11.00 horas iria entrar vento de sudoeste, vento bastante forte, e que me limitava o período de pesca útil a pouco mais de uma hora.
Era necessário ser suficientemente rápido a executar, obrigava-me a fazer as necessárias deslocações sem ruídos desnecessários, e a aproveitar muito bem as oportunidades.
Ainda assim, estava mentalizado de que nada daquilo que mentalmente desenhei podia falhar. O objectivo era que um bom peixe viesse para cima, o meu sogro vinha jantar a casa nessa noite.
Levantei-me, como habitualmente, pelas 6.00h da manhã, para poder ter o barco pronto às 7.00h e sair. E assim aconteceu. O que depende apenas de nós deve ser zelosamente cumprido dentro dos horários previstos.
O equipamento estava perfeito, havia um plano, sabia perfeitamente como e quando iria começar e acabar de pescar.
Azar dos Távoras! Ao chegar ao local, deparei com uma traineira a levantar redes, precisamente na pedra que tanto me interessava trabalhar. Desânimo absoluto. Fora de questão ficar à espera que saiam da zona, pensei.
Nunca sabemos quanto tempo os profissionais vão estar num determinado local. Mas eu tinha a certeza de que era ali, naquele dia e àquela hora, com aquela maré, que iria conseguir o meu pargo. A força da corrente, a hora, a água na cor certa, não demasiado lusa, a quantidade de peixe miúdo a sobrevoar a pedra, tudo perfeito. Sentado no flutuador do barco, com a cana preparada, esperei pacientemente a saída do barco de pesca profissional.


Por melhores que sejam os equipamentos, (e a Daiwa tem materiais espectaculares), convém pensar que a pesca tem um ritmo próprio que não convém tentar ultrapassar.


À partida, e partindo do princípio que as redes tinham afectado a vida normal dos meus peixes, as perspectivas não eram animadoras. Quando saí de casa, a exiguidade das horas de pesca possíveis não animavam. Estando lá, e olhando para a traineira, tudo me parecia ainda mais sombrio.
Mas nisto de pesca não há impossíveis. Tenho para mim que os peixes aprendem a viver com os seus medos, que, como de resto quase todos os animais selvagens, não dedicam demasiado tempo a “meditar” sobre o que poderia ter acontecido. Vão em frente, pela inutilidade de olhar para trás.
Uma rede de centenas ou milhares de metros é efectivamente um instrumento de morte. Muitos peixes batem na rede, a coberto da noite, e ficam por lá. Mas, para todos os que escaparam, o momento seguinte continua a ser um acto de zelar pela vida, de comer e não ser comido.
Os peixes aproveitam todas as oportunidades, e por vezes mesmo as que nós achamos que nem o são. As redes já fazem parte da vida dos peixes, desde pequenos, fazem parte da sua paisagem quotidiana.
Estou a recordar-me por exemplo da nuvem de peixe que segue as traineiras de Setúbal, aquando do arrasto à navalha. Se tiverem a possibilidade de passar na esteira de uma destas embarcações, não deixem de colocar um olho na sonda.
Os peixes seguem as ganchorras, que deixam muita comida descoberta, ameijoas partidas, navalhas, búzios, caranguejos, etc, e aproveitam a oportunidade de terem à vista muita comida fácil.
Voltando ao assunto da traineira e das suas redes: acabei por ficar até que terminassem os trabalhos, o que ocorreu passados uns 15 minutos. Estava a ficar sem tempo.
Deparei-me com a clássica situação de querer “apressar” o peixe. Tinha menos de uma hora para fazer algo, antes do vento começar a soprar com força e impossibilitar a acção de pesca. Senti que estava a fazer uma corrida contra o relógio.
Nada pior que estar a pescar condicionado pelo tempo. Quando sabemos que o espaço para “brilhar” tem a curta duração de uma hora, passamos a fazer apenas aquilo em que acreditamos muito. É aí que dispensamos todo o tipo de experiências, e vamos directos ao assunto.
O peixe, infelizmente, não reage às nossas tentativas de lhe dar pressa. Têm o seu ritmo, a sua vida, e não necessitam de mais do que seguir as marés, esperar pelas melhores condições.
Nos pesqueiros ao largo, é a corrente que lhes traz a comida à boca. Junto à costa, é a maré alta que lhe permite subir às pedras para mariscar. O tempo deles não é o nosso, e assim sendo, de pouco adianta “empurrar” o peixe a morder. A sequência dos dias e noites passam ao ritmo certo, e o momento de comerem é definido pelo espaço de tempo em que podem obter o máximo proveito, gastando o mínimo de energia.
E se havia peixe por baixo do barco, a verdade é que eu queria-o a colaborar muito mais que o habitual, e o mais rápido possível. Não resulta.
A dada altura comecei a praguejar comigo mesmo porque ao meter o enxalavar por baixo de um pargo fiquei com os assistes presos na rede. Sinal de perda de controlo. Quando estamos pressionados com tempo, todos os contratempos nos incomodam.
Consegui alguns peixes mas não o “tal peixe” que ambicionava. Os sinais do tempo eram muito negativos, a mareta que se estava a formar deixava adivinhar algo de muito ruim.
Cada manobra do barco era mais e mais penosa, as vagas batiam contra o casco e não davam descanso. O vento soprava cada vez mais forte e eu sabia o que estava a preparar-se. O silvo do vento a passar pelas canas de reserva colocadas nos caneiros não dava possibilidade de enganos, vinha aí um temporal dos bons. O retorno a terra seria penoso, sem dúvida.
A cada minuto as probabilidades de ferrar o peixe aumentavam, (o peixe torna-se mais activo quando um temporal surge, pois tira benefícios imediatos disso. Entende todas as alterações como uma oportunidade de encontrar comida), mas a minha permanência ali estava a ser contada ao segundo.
E foi aí que a picada surgiu, em condições que não eram de todo favoráveis. Teria vaga de vento com cerca de 1,5 metros, empurrada a vento cada vez mais forte. O para-quedas já não era suficiente para manter o barco estabilizado, e os pés já não estavam assentes no barco a tempo inteiro.
Percebi que a operação de levantar o para-quedas da água, arrumar as canas, dar à chave e fazer os quilómetros que me separavam do porto de abrigo e chegar em segurança, não se coadunava de todo com aquilo que faltava fazer: puxar um peixe para cima, cheio de força, com peso e vitalidade suficientes para me fazer gastar mais uns 15 minutos do meu precioso tempo. E cometi o erro clássico: forcei o peixe.
Ao fim de uns 6 a 8 minutos, tinha-o já bem acima de meio na coluna de água. Uma bátega de água mais alterosa bateu contra a amura do barco, dando-me pressa. Equilibrar o corpo naquelas condições era um flagelo.
Ajustei o drag do carreto para forçar mais um pouco. Apertei o que podia e o que não podia: o peixe, já a metade das suas forças, ainda era um peixe com capacidade para fazer estragos. A cana, ligeira, pouco mais tinha para dar perante um peso pesado daqueles.
Deixei-o virar a cabeça para baixo, e ele, num último esforço, apoiou-se na cauda, desceu mais uns metros e…partiu a linha.
Perdi um excelente peixe, por querer encurtar o tempo de combate.


Num total anacronismo com a vida moderna, há muita gente que prefere largar amarras e sair para o largo, num veleiro. Aí, o tempo não passa, flui devagar, ao ritmo do vento, das vagas. Sem pressas... como a vida deve ser vivida.


Pescar a correr é algo que não deve ser feito. Porque não é pesca, é recolha de peixe. Neste caso, e porque não tinha na linha um peixe pequeno, a missão era difícil demais.
Peixes com tamanho necessitam de tempo. O tempo, quando estão ferrados, corre a nosso favor. Ter a paciência para saber esperar, para deixar correr o peixe, sem pressas, resulta em grandes capturas. Se forçamos, o risco de falha de equipamento sobe bastante, a níveis que podem ser duros. Neste caso, um pargo na casa dos 10 kgs pode ter ido embora. Outros virão, porque o mar é imenso, e as oportunidades também.


No dia seguinte, outros peixes voltarão a morder o nosso jig, a dar-nos uma nova oportunidade de medirmos forças com eles.



Vítor Ganchinho



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