A maior parte das pessoas passa dias, por vezes semanas, a antecipar uma oportunidade de sair à pesca. À medida que a data se aproxima, o “nervoso miudinho” apodera-se do pescador, o tempo não passa.
Não há forma de pegar no sono. São voltas e mais voltas na almofada e nada resulta. À cadência cada vez mais lenta do ponteiro dos segundos, corresponde um aumento do ritmo das batidas cardíacas, antecipando a descarga de adrenalina de uma picada forte.
Quando finalmente o corpo é vencido pelo cansaço, sonham-se peixes e grandes cometimentos.
Quem gosta, vive a pesca antes, durante e depois de ela terminar, mas é o ANTES o momento certo. Porque aí tudo é perfeito, tudo irá correr bem, porque sim.
É o “ANTES” que nos eleva o moral, é ele que permite, sem qualquer falha, antecipar o nosso sucesso, o momento em que fomos sublimes a reagir, a conseguir concretizar, a merecer as correspondentes fotos de glória para a posteridade.
Porque nada pode falhar em mar alto, verifica-se o material vezes sem conta, preparam-se linhas e anzóis, espreita-se se a barbela estará perfeita. A partir do zero, arruma-se a mala novamente, metem-se e tiram-se caixas, panos, alicates, amostras, passa-se o fio da baixada pelas mãos.
A mais pequena dúvida ou imperfeição leva a que se prepare tudo de novo, porque a oportunidade de um dia perfeito, (e o próximo é sempre esse dia perfeito), não permite erros.
E todavia, as expectativas quase nunca, ou nem sempre se concretizam. Grande parte dos dias de pesca acabam por não corresponder aos anseios de cada um. Porquê?
Uma das principais razões que leva ao desapontamento, é precisamente o nível elevado de expectativas que se criam à volta de uma saída de pesca. Queremos que naquele dia tudo seja perfeito e por vezes isso significa querer perfeição a mais.
Porque preparámos com tanto cuidado todos os detalhes, porque fomos minuciosos ao milímetro, porque demos tudo o que tínhamos dentro de nós para obter um dia memorável, achamos que merecemos o melhor.
E no entanto, …quase nunca aquilo que foi sonhado acaba por se concretizar. Porque as saídas de mar nunca são perfeitas. Nem sempre as condições de mar são as melhores, é o mestre da embarcação que não sabe onde está o peixe, é o lugar que nos coube em sorte que afinal não é bom…e por vezes é a nossa aselhice que não nos ajuda. O erro humano é porventura o factor mais decisivo no momento de garantir uma captura.
Sei de pessoas que elevam as suas expectativas a um nível tal que, quando chega a tal picada, quando o peixe morde a sério, ficam completamente bloqueadas e sem reacção.
Nada lhes sai bem. Os gestos tornam-se pouco naturais, pouco mecanizados, e aquilo que fica é um desespero vidrado nos olhos: aquela pessoa vive uma ansiedade tremenda, e a sua única preocupação é que o peixe acabe por fugir. Naquele momento, daria tudo para que isso não acontecesse, mas nada do que faz é tecnicamente correcto. Abre totalmente o drag do carreto, solta a linha para que esta não rompa, afrouxa a tensão da cana, deixa de fazer pressão sobre o peixe, teme que algo parta e não consiga sequer ver o que está do outro lado da linha. Por fim, …o peixe descrava, solta-se do anzol e vai embora.
Esta pessoa foi vencida pela ansiedade.
É muito natural que isto aconteça, e sobretudo com pessoas pouco rotinadas na pesca, pouco habituadas a ter êxito. Tudo começa na expectativa criada dias antes, e acaba naquele momento, aquele fatídico momento, em que o pescador se vê ultrapassado pelos acontecimentos.
Já não é ele que ali está, é a sua sombra, alguém que não o próprio.
Sabemos que os níveis de ansiedade de um pescador sobem à medida que os níveis de confiança baixam. É das leis da psicologia: de forma proporcional, se um factor sobe, o outro desce.
Quando se pesca, ter medo que o peixe escape, que vá embora, é o primeiro elemento de uma cadeia de vários acontecimentos que, todos conjugados, levam mesmo à possibilidade de perda do peixe.
Aquilo que em terra era confiança e saber fazer, quando chega o momento decisivo, falha.
O click que irá despoletar aquele nervoso “borboletas na barriga”, aquele insuportável sentimento de dúvida, é o momento em que o pescador percebe o tamanho do peixe.
Quando o peixe dá o primeiro arranque, quando mostra o seu peso, começa a ruir todo um castelo de confiança antes aparentemente sólido. Tudo pode acontecer: o anzol vai abrir, a linha vai roçar na pedra e rompe, a cana não vai aguentar a carga. A cada instante teme-se o pior, os movimentos começam a ficar descoordenados, a dúvida sobre a possibilidade de o peixe desferrar aumenta a cada segundo.
Nesta guerra de nervos entre o “vai embora de certeza” e o “fica, porque eu sou capaz de fazer”, aquilo que verdadeiramente pode ajudar é a qualidade dos materiais, a técnica de combate, e a experiência, algo que se aprende e melhora com os anos. Pescadores consagrados sofrem muito menos, mantêm o controlo sobre o que estão a fazer, e sabem que, pese embora a margem de risco exista sempre, as probabilidades de sucesso estão muito mais do lado do pescador que do peixe. Afinal de contas, o peixe já está ferrado, já está num plano de água acima do fundo, e a partir daí, é uma mera questão de paciência. E de não cometer erros.
Quando se atinge esse estágio, a segurança impera sobre o nervosismo. Mas, se é verdade que um pescador treinado a lutar com peixes de bom porte consegue passar por estes momentos sem tremeduras, também é verdade que aquilo pode desfrutar tem incomparavelmente menos valor.
O stress e nervoso “miudinho” do pescador novato leva-o a patamares de satisfação incomparavelmente mais elevados. Os primeiros peixes grandes são sempre um marco, algo que não se esquece.
Infelizmente, essa carga de dúvida e entusiasmo esbate-se com a rotina de pesca, com a captura de centenas de peixes de bom tamanho. Os gestos estão condicionados por aquilo que é a experiência prévia da pessoa. Aquilo que produz resultados negativos é eliminado, o que resulta bem é apurado ao limite. O resto é treino, é a repetição exaustiva de processos que tornam a pesca mais eficaz, mas também, indiscutivelmente, menos interessante.
Dou por mim a executar gestos automatizados, que resultam, que normalmente colocam o peixe do lado errado, do lado que perde, e isso não é necessariamente bom. A pesca tem muito mais interesse quando até ao último segundo o peixe mantém intactas as suas possibilidades de fuga. Não temos de executar mal, porque não faz sentido, mas podemos reduzir o leque de vantagens de que dispomos. Podemos reproduzir essa situação quando baixamos o diâmetro da linha para algo que seja acessível, que permita guardar uma réstia de esperança ao peixe.
Com a qualidade dos materiais de pesca que existem hoje, o mais normal é que, após o momento de contacto, as hipóteses de êxito pendam muito mais para o nosso lado. Se não cometermos demasiados erros de palmatória, o peixe entra na caixa.
Dir-me-ão: “mas não é exactamente para isso que lá vamos?”...
Não necessariamente. Essa é uma intenção de quem vê na pesca um mero acto extractivo, de recolha de pescado para alimentação. Em exclusivo.
A ideia não tem de ser ir pescar para ver os peixes dentro da caixa, mas sim para os pescar. Grande parte do peixe que morde os nossos anzóis deveria ser libertado, e... não é. O acto de pesca vale muito mais do que a simples morte do peixe.
Pescar pode ser um momento de abraço com a natureza, um espaço de paz, de harmonia. E isso não implica a morte daqueles que desafiamos. Vamos lá pelo “nervoso miudinho” que nos provocam, pela possibilidade de jogarmos um jogo em que podemos perder.
Ficar nervoso com a possibilidade de um peixe nos escapar é a grande essência da pesca. Pescar é isso tudo, a falta de sono na noite anterior, a preparação dos materiais, a excitação de lançar uma linha abaixo do nível dos nossos pés, os batimentos cardíacos descontrolados quando de repente algo acontece.
E sim, esse nervoso incrível, esse medo, quando achamos que o peixe pode acabar por nos fugir.
Pesco há 53 anos. Dou por mim a já não ficar demasiado nervoso quando tenho um peixe grande na linha.
O que é pena...
Vítor Ganchinho
entre pescar e apreciar os golfinhos... que venham os golfinhos
ResponderEliminarBoa tarde! Temos uma responsabilidade acrescida para com estes bichinhos. Proteger os golfinhos é um dever de todos nós. Eles já têm muitos problemas para terem ainda de se haver com todos os que os barcos de curiosos lhes causam.
EliminarRespeitar as distâncias, deixá-los aproximar se eles se quiserem aproximar.
Uma boa tarde!
Vitor