E POR FALAR EM SERES MARINHOS OSMOCONFORMANTES...

O nosso amigo Reinaldo Piloto lançou o desafio: então e os caranguejos?...
A propósito da publicação recente de um artigo sobre a osmoregulação dos peixes, datado de 01.03.22, recebemos a mensagem de que seria interessante analisar o processo de libertação de sais por parte de um animal que todos julgamos conhecer, mas que efectivamente apenas algumas pessoas no nosso país conhecem a fundo: o caranguejo.
Passando por cima da quantidade de espécies que existem nas nossas águas, por não ser esse o âmbito da pesquisa, vamos ver hoje como estes estranhos seres lidam como o seu processo homeostático de manutenção do equilíbrio de água e sais minerais no interior do seu corpo.
Os caranguejos, por exemplo aqueles verdes, de estuários de rio, a quem cortamos as patinhas, arrancamos a carapaça, cortamos a metade, ou em quartos ou o que seja, para pescar às douradas, …são seres incríveis em termos de resistência a um meio ambiente hostil.
Têm a capacidade de controlar os mecanismos de osmoregulação, e com eles equilibrar a sua pressão osmótica interna de forma a conseguirem viver onde nós, seres humanos, não conseguiríamos viver. Cortamo-los aos pedaços com tesouras, espetamo-los nos anzóis, mas sabemos pouco sobre eles.


Alguns caranguejos especializaram-se em escapar dos predadores entalando-se em frestas muito estreitas. Têm por isso corpo muito achatado.


Talvez valha a pena começar por ver como fazemos nós, seres humanos e partir daí para a viagem pelo mundo dos outros seres.
Um homem não chora, mas por vergonha, não que não tenha a necessidade de o fazer de tempos a tempos. As lágrimas humanas sabem a sal por uma razão muito simples: são sal. Os fluidos que as constituem são semelhantes à composição química da água do mar, contêm sódio, potássio, cálcio, cloro, etc. Todos os animais são constituídos por grandes quantidades de água, sendo esta nos humanos algo como 65 a 70% da sua constituição total.
Sem água não poderíamos sobreviver, dado que é ela a constituinte de fluidos intra e extra-celulares, é ela que permite reacções químicas que conhecemos bem, como a digestão, etc. É através dela que os sais minerais chegam aos nossos tecidos, permitindo o funcionamento do nosso metabolismo.
Por isso é tão importante que o ser humano tenha mecanismos que lhe permitam regular a quantidade de água no seu organismo, pois em caso de perda de água, de imediato a sua vida está posta em causa. Podemos passar sem comer alguns dias, mas não podemos ficar sem água por muito tempo. É fundamental que a quantidade de água e dos sais minerais presentes no nosso corpo se mantenham num equilíbrio constante, de forma a assegurarem o bom funcionamento de todas as células. Dependemos disso para viver, e daí a importância de beber água em quantidades suficientes todos os dias. É imperioso que exista um equilíbrio permanente entre a água e sais minerais que entram e saem do nosso corpo. Nós e todos os outros animais, adquirimos a água através da alimentação, da ingestão de líquidos, e da decomposição de alimentos que a contêm. Por sua vez, perdemo-la através da respiração, da transpiração, do choro, e também através das fezes e urina. Para estarmos de perfeita saúde, é necessário que estejamos balanceados no ponto certo. À regulação da quantidade de água e de sais minerais dentro de limites homeostáticos, de forma a não afetar o meio interno, ou seja, mantendo o equilíbrio osmótico, dá-se o nome de osmorregulação.


Muitos caranguejos vivem preferencialmente num espaço marinho que se situa na zona entre marés. Ter água e deixar de ter, no espaço de algumas horas, já é um desafio a muitos níveis.


O desafio que me foi lançado pelo nosso colega pescador Reinaldo Piloto foi o de “escaranfuchar” num tema que é absolutamente apaixonante, pese embora eu saiba à partida não ser do interesse de quem apenas se interessa pelas caixas cheias de douradas. Mas acontece que tudo isto está ligado, não há compartimentos estanques, as douradas existem porque há comida para elas. De resto, as próprias douradas também têm o seu equilíbrio interno de sais minerais, este processo é transversal a todos os seres vivos.
Voltando aos caranguejos e ao equilíbrio que é forçoso existir: a maioria dos invertebrados marinhos vive em perfeito equilíbrio osmótico com a água salgada do mar. Se vivem num meio que tem excesso de sais, chamemos-lhe meio extracelular, terão uma forma de conseguir um equilíbrio intracelular. Que nalguns casos até pode ser o mesmo do exterior, ou seja, a concentração de iões do meio externo é idêntica aos do meio interno. Chamam-se a estes seres osmoconformantes.
São eles organismos como as estrelas do mar, as medusas, anémonas, etc. Se não há capacidade interna de alterar ou regular a pressão osmótica, o meio interno varia em conformidade com a água do mar, chamemos-lhe meio externo.




Em suma, os osmoconformantes não são pois capazes de controlar a sua pressão osmótica interna, que varia com a pressão osmótica do meio externo. Estes organismos apresentam células que toleram uma pressão osmótica elevada e por isso não sofrem particularmente com o facto de existirem demasiados sais minerais no seu corpo. Mas há outros.
Tendo em conta o tipo de adaptações desenvolvidas no âmbito da osmorregulação, os seres vivos podem pois ser considerados osmoconformantes (poiquilosmóticos) ou osmorreguladores (homeosmóticos).


A urina e as fezes são meios utilizados de forma muito comum para gerar equilíbrios internos. Vejam na foto abaixo dejectos deixados no fundo do leito marinho. Em zonas de águas paradas, é possível que os dejectos permaneçam no mesmo local durante alguns dias.


Os seres que têm capacidade de regular a pressão osmótica dizem-se osmorreguladores. Estes seres vivos possuem mecanismos que lhes permitem manter inalteradas as concentração de sais, apesar de haver variações no meio ambiente externo. A maioria dos vertebrados aquáticos e terrestres são osmorreguladores e os seus órgãos excretores são também importantes órgãos de osmorregulação. Mamíferos marinhos como golfinhos e baleias, apesar de não beberem água salgada, acabam sempre por ingerir um pouco de água do mar quando se alimentam. O equilíbrio osmótico destes animais é conseguido por meio da eliminação de sais pelos rins, através da urina. Os productos químicos mais comuns nas fezes são os amoníacos, os azotos, e o ácido úrico.
Por sua vez, estes, os osmorreguladores, têm a capacidade de controlar a sua pressão osmótica interna, que se mantém constante, independentemente das variações da pressão osmótica do meio exterior. Os seres humanos inserem-se neste grupo.
Nós utilizamos os rins para efecutar este trabalho de equilíbrio homeostático. Não toleramos grandes diferenças, grandes variações osmóticas, por isso os nossos rins têm trabalho constante. Não serão apenas sais minerais, o corpo humano também expele substâncias tóxicas, venenos, etc.
Fazemos em permanência o controlo do nosso volume de água e sais minerais.
Os mecanismos osmorreguladores são diferentes consoante o habitat em que o animal se encontra, meio aquático, de água doce ou marinho, ou meio terrestre.
Nos ambientes de água doce, em que o meio interno dos organismos é hipertónico em relação à água, a osmorregulação deve opor-se à tendência da água passar, por osmose, para o interior do ser vivo e à perda de sais por difusão. Existem vários processos que permitem eliminar substâncias indesejadas. Nos peixes de água doce, por exemplo, os mecanismos de osmorregulação passam pela quase não ingestão de água, pela produção de grandes quantidades de urina diluída e pelo transporte ativo de sais para o meio interno, através das brânquias.
Nos ambientes marinhos o problema é o oposto. O meio interno dos seres marinhos é hipotónico em relação à água, pelo que a osmorregulação passa por evitar a excessiva perda de água por osmose e facilitar a secreção de sais. Órgãos envolvidos na excreção de sal permitem minimizar a perda de água em ambientes com grande salinidade. Os peixes de água salgada, por exemplo, que ingerem grandes quantidades de água salgada, excretam, expulsam por transporte ativo, o excesso de sal através das brânquias.
Também a urina produzida por estes organismos é muito concentrada, como objectivo de limpar o organismo o melhor possível. Nas aves marinhas, que também ingerem água salgada ao alimentarem-se, os mecanismos de osmorregulação promovem a excreção de sal, por transporte ativo, através de glândulas nasais.


Vamos então ver como é que isso se processa nos caranguejos com que pescamos às douradas.


Sabemos que os seres vivos apenas conseguem sobreviver entre parâmetros de salinidade controlados. Os caranguejos não são excepção, mas podem controlar valores de salinidade até extremos que nos ultrapassam a nós humanos, enquanto espécie. Os intervalos de tolerância dos caranguejos do rio, serão ligeiramente menores que os caranguejos de mar, por exemplo os conhecidos caranguejos pilados, um pelágico que por vezes nos aparece na coluna de água, desde a superfície até ao fundo do mar, e que raramente entra nos rios.
Mas ainda assim, para uns ou para outros, são limites de tolerância ao sal muito significativos. E como fazem?
Tenhamos em mente que a água é um meio líquido e, nela, vários elementos químicos estão dissolvidos, como o cloreto de sódio, magnésio, potássio, fósforo, carbono, hidrogenio e outros.
As concentrações destes elementos entre si dão características à água, por isso existem águas mais ácidas, mais alcalinas, com mais ou menos oxigênio e lugares mais ou menos salinos.
Estes elementos são chamados de iões, que também existem dentro e fora dos animais, sendo necessário haver um equilíbrio entre eles para garantir o funcionamento metabólico do organismo. Mas esse equilíbrio ocorre de forma desigual para cada tipo de seres. Nas áreas de transição de rios para mar, nos estuários, os principais decápodes que existem são os caranguejos e os camarões.
Para que suportem as variações salinas constantes, possuem um sistema de osmorregulação bem desenvolvido. Já vimos anteriormente o que é a osmorregulação: é a capacidade que os organismos possuem de manter quase constantes as concentrações iónicas internas em resposta às variações externas. Evolutivamente, os decápodes desenvolveram estruturas chamadas glândulas antenais, que ficam na base das antenas, no caso de camarões, ou nos pedúnculos oculares, no caso dos caranguejos, que controlam a pressão interna dos fluidos do animal.
Em síntese, conseguem controlar a quantidade de água que entra e sai do seu corpo.


Os pilados, um caranguejo pelágico excelente para pescar qualquer tipo de peixe.


Mas não fica por aqui. Os crustáceos também possuem um exoesqueleto, que é composto de carbonato de cálcio e quitina – a proteína impermeável que compõe as nossas unhas.
Por ser impermeável, esse exoesqueleto também limita muito a troca de água e iões entre o organismo e o meio aquático, e assim eles mantêm-se em equilíbrio, apesar das condições externas.
Os crustáceos são originariamente marinhos; ao longo da evolução, diversas espécies invadiram ambientes de salinidades menores, chegando por fim à água doce. A capacidade dos crustáceos colonizarem com sucesso o ambiente dulcícola ficou dependente do desenvolvimento de mecanismos eficientes de hiperosmorregulação. E eles conseguiram! A osmolalidade e a composição iônica da hemolinfa de um crustáceo, em meios diluídos, refletem o equilíbrio dinâmico entre a perda de íons por difusão e pela urina e sua reabsorção do meio externo, através das brânquias.
E porque não morrem se estiverem fora de água durante semanas? Nós guardamo-los num balde, em sêco, e não morrem facilmente. Mas também podemos deixá-los dentro de uma caixa, debaixo de água durante semanas, e também não morrem. Que estranha alquimia é essa, a de um ser que respira em qualquer lugar onde o deixemos?!
Os caranguejos realizam trocas gasosas nas brânquias. Eles conseguem manter um fluxo constante de água nestas estruturas com o batimento das alças branquiais. Além disso, muitas espécies também apresentam cerdas nas porções em que ocorre a entrada de água no corpo, evitando seu bloqueio por resíduos ambientais. Os gases são eficientemente guiados dentro do corpo através da hemolinfa, que possui a hemocianina, um pigmento respiratório com função similar à hemoglobina dos mamíferos.
Os caranguejos possuem um sistema nervoso desenvolvido, com um cérebro composto por um agrupamento de células nervosas na parte anterior da cabeça. Este gânglio cerebral liga-se aos olhos e antenas do animal, captando sinais visuais e de movimentação nas correntes de água. Nervos ventriculares dorsais partem da cabeça, atuando na estimulação nervosa do corpo e ligando o gânglio cerebral ao gânglio torácico, de onde partem os nervos periféricos laterais que estão relacionados com a movimentação das patas. Os caranguejos também possuem mecanoreceptores na base das antenas chamados estatocistos, que lhes concedem um sentido de equilíbrio gravitacional. Sabem sempre onde é o chão...




Já todos reparámos que não são todos iguais. Podemos distinguir facilmente os machos das fêmeas, pois têm dimorfismo sexual. As placas abdominais são bem distintas, triangulares e estreitas nos machos, sendo as das fêmeas bem mais largas e arredondadas. É aí que irão transportar os óvulos até estarem prontos para serem largados na corrente. A fertilização ocorre internamente, com a transferência de espermatóforos entre o macho e a fêmea. Os ovos fecundados ficam um tempo colados à fêmea até que as larvas (desenvolvimento indireto) sejam libertadas no ambiente. Depois de pelo menos 6 estágios de desenvolvimento, as larvas originam formas juvenis similares aos adultos que após dezenas de ciclos de crescimento (ou mudas, que envolvem a formação de carapaças cada vez maiores) se tornam adultos reprodutivamente ativos. Porque nessa altura já têm o exoesqueleto bem formado, e duro, os pescadores de douradas preferem pescar com os juvenis, mais macios. E de preferência com as fêmeas em fase de mudança de carapaça, quando está mole. Chamamos-lhes prosaicamente “caranguejos de carapaça mole”, e mais não são que os mesmos bichos, numa das suas intermináveis mudas de ”casa”. Os caranguejos mudam a sua casca até ao fim da sua vida, pois é isso que lhes permite o crescimento de tamanho.
Vamos continuar a matá-los, a esmagar para engodo, a usá-los como isca, mas é bom saber que este estranho ser tem capacidades que nós humanos não temos...



Vítor Ganchinho



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