Hoje, qualquer um de nós pega no seu barco e sai ao mar sem grandes dificuldades. Está nevoeiro cerrado? Perdemos o contacto visual com terra? Não é um problema: guiamo-nos pelo GPS, que nos indica a posição em que estamos relativamente ao porto de abrigo e ao ponto a que nos propomos chegar.
A que profundidade navegamos? Queremos saber se existe peixe no pesqueiro? Temos uma sonda que nos dá essa informação.
E como era antes de existirem estes equipamentos? Como faziam os antigos quando tinham de sair ao mar para governar a sua vida? Como pescavam, e como encontravam as suas zonas de pesca?
O “mar de pesca”, a zona escolhida pelo arrais, (a pessoa encarregada pela embarcação) iniciava a “turina”, (a faina da pesca) pressupondo estar exactamente no local certo.
Pescava-se com redes ou com aparelhos de anzol, dependendo das profundidades em questão. Chamava-se “largar a caça” ao lançamento da arte de pesca, qualquer que fosse a arte.
O local exacto era determinado pela experiência da pessoa, mas tinha como fundamentos um conhecimento muito preciso da profundidade do sítio e qual o tipo de fundo, (vaza, lodo solto, areia, pedra).
E como era adivinhado pelo mestre o local certo para iniciar a sua faina? Que dados tinha e que precisão podia incutir à sua decisão de largar as redes?
Nem todos os barcos tinham a sonda de fundos eléctrica, e por isso o modo de cálculo teria de ser bem mais “artesanal” que aquele que conhecemos hoje. Mas ao mesmo tempo igualmente eficaz, pois sem isso o risco de não conseguir peixe, ou de perder as redes enroladas em pedra alta seriam enormes.
Hoje no blog vamos ver como faziam os marinheiros antigos para determinar coordenadas. Vejam estes métodos à luz de um tempo em que a tecnologia existente não possibilitava aquilo que para nós hoje é algo de evidente: saber onde estamos.
Um peixe do azul, que vagueia a meia água sem pontos de referência, terá alguma forma de se orientar, de forma natural. |
O Mestre chegava ao pesqueiro recorrendo à agulha de marear (a bússola), e de um relógio. A uma velocidade constante (os barcos não eram muito rápidos porque os cascos não estavam desenhados para isso e os motores não imprimiam mais de que uma velocidade X…), ao fim de determinado tempo, o barco estaria no ponto P. Ao fim daquele tempo previsto, era pressuposto estar na zona. Dir-me-ão que tudo isto é muito aleatório, que dependia das correntes, do vento, da ondulação. O que não estão a considerar é que o tempo de ida, e também de vinda, era medido não uma vez, mas centenas de vezes. E ao fim de uma enormidade de saídas ao mesmo local, fosse com que condições de tempo, a média era algo de muito previsível. Continua a ser ingrato querer obter demasiada precisão, mas podia ser pior. Dir-me-ão: “mas se era só assim que faziam, não havia grande rigor, não era bem…ao milímetro ”!
É verdade que sim, mas havia algo mais: os pontos de terra.
Tirar pontos de terra era comum, e fazia-se de forma instintiva. |
Fazer triangulações era algo de muito corrente, as pessoas sabiam fazer, e digo-vos, para quem não acredita na precisão do sistema, que está enganado! Eu utilizei as marcas de terra durante anos para marcar, por exemplo, frestas de sargos, ou buracos de safios e abróteas, e chegava lá com uma precisão de 1 metro. Posso explicar-vos como funciona o sistema: tiramos dois enfiamentos de objectos fixos, em terra, (exemplo, postes eléctricos, casas, árvores altas bem definidas, rochas, etc). Isso marca-nos uma direcção, uma linha recta entre dois pontos.
A seguir, fazemo-lo de outro lado, ficando com duas linhas cruzadas. A intercepção dessas linhas dá-nos o ponto que queremos. Podemos testar várias vezes, verificando com exactidão e a partir daí, temos uma marca. Trata-se de um ponto perfeitamente definido.
No meu caso, e porque sempre tive amigos interessados em saber onde eram as frestas de sargos onde eu ia fazer as minhas pescarias de sargos de 2 kgs, optei por fixar mentalmente esses referenciais.
Tenho algumas dezenas deles, e posso assegurar-vos que, passados muitos anos de não utilização, consigo chegar ao local, tiro os enfiamentos, visto o fato de mergulho e à primeira descida estou em cima do ponto. O grau de precisão é tanto quanto aquilo que consigo com o GPS.
Ao fim de muitas dezenas de anos a colecionar pontos de pedras, rasgos nas rochas com abróteas ou buracos de safios, (estes tipos de peixes procuram refúgios muito específicos e quando retiramos um, é de esperar que dentro de dias esteja lá outro igual), aquilo que me acontece é que ao passar pelos locais acabo por reviver bons momentos de caçadas feitas. E terei, sem grandes dúvidas, mais de 200 pontos na memória, perfeitamente marcados, que um dia se irão perder, caso as minhas filhas não queiram seguir a minha paixão pelo mergulho. Estar em emersão a ver aquilo que se passa lá em baixo é uma sensação incrível. Quando se nos acaba o fôlego, quando os pulmões pedem ar novo, subimos e voltamos a descer com toda a rapidez, para não perder nenhum detalhe.
Somos portugueses. Isso não é melhor nem pior que ser de outra nacionalidade, mas cria-nos uma responsabilidade acrescida, pois descendemos de gente de mar, que deu mundos ao mundo, e que teve a coragem de largar amarras sem ter aquilo a que hoje nem ligamos em demasia: os GPS e as sondas.
Era utilizada a “estrela do Norte” (Estrela Polar), como forma de marcação de rumo para os locais de pesca. Se estivermos atentos e soubermos ler aquilo que escreveram pessoas com conhecimentos nestas matérias, chegamos à conclusão que há muito local que era bom, é bom e continuará a ser bom para pescar e que está perfeitamente marcado nos livros antigos. Se os pescadores trabalhavam com marcas de terra, era porque elas funcionavam. Falamos de profissionais, não de gente amadora a quem é indiferente se pesca mais ou menos. E os locais que davam peixe, continuam na sua maior parte a ter as características de habitat que convém a esta ou aquela espécie. Sendo verdade que os mestres antigos tinham um sentido de orientação particularmente desenvolvido (ou não seriam mestres de embarcação…mas sim marinheiros de apoio), bons olhos, e capacidade de decisão.
Sabiam utilizar as estrelas como nós sabemos ler um jornal. Sírio e as “Sete Irmãs”, que surgem a leste desde o “S. João” (Solstício de Verão) até às “marés do Levante” (fins de Setembro) eram estrelas muito usadas. As “Duas Guias” da Estrela do Norte indicavam pela sua posição a hora da noite. Muito sabem os nossos marinheiros, e mais ainda os que já se reformaram há anos. Falar com os antigos dá-nos informação preciosa.
Encontrar as balizas que sinalizavam o local onde o aparelho estava submerso, usando apenas a “agulha” e o relógio, é algo que faziam todos os dias. Navegar até um determinado ponto, apenas olhando à bússola e ao relógio, era trivial. Quanta sabedoria!
Até à década de trinta nem sequer os usavam; calculavam o tempo e recorriam-se do “prumo” ou sonda manual, (Brandão, 1980; Monteiro, 1973). Não tenham dúvidas de que o mar tem muito poucos segredos para quem nele trabalha.
Continua a haver peixe, para quem o sabe merecer. Para quem trabalha o suficiente para o saber descobrir.
Se o meu caro leitor pertence ao grupo de pessoas que sai ocasionalmente, sem qualquer preparação prévia, e que aceita pescar em qualquer lugar, sem pretender maçar-se demasiado a marcar pontos, então aceite também que outras pessoas tragam para terra caixas com peixe e que a sua caixa venha cheia de ….ar.
Trabalhar é preciso.
Vítor Ganchinho