Pesca de Alto
A arte de pesca do alto, praticada com aparelho de anzol, sempre foi considerada uma actividade artesanal, e todavia segue todos os princípios de uma pesca altamente profissionalizada.
Em termos ecológicos, não tenho dúvida alguma de que deveria ser a única autorizada.
As redes perdem-se no mar, presas a rochas e o resultado são panos com centenas de metros que ficam agarrados onde não devem, continuando a matar peixe mesmo depois de serem dadas como perdidas.
Quando mergulho, vejo-as com peixe apodrecido, por vezes com peixe emalhado, vivo, que ficou preso por tentar comer o que fica retido. Um flagelo.
Assim sendo, sem dúvida a pesca de linha, com anzol, por matar apenas o exemplar que engole a isca, não prejudicando todos os outros que passam ao lado.
Também designada de “espinhel” devido à configuração do aparelho quando armado no fundo do mar, esta arte vive essencialmente da eficácia da linha e do anzol, algo que a nós, pescadores lúdicos, não nos espanta. Sabemos bem da tremenda capacidade de captura das nossas canas, quando em boas mãos.
Vou tentar dar-vos uma ideia de como eram feitos os espinhéis. Dificilmente se poderia imaginar algo tão simples, eficaz, barato e tão ecológico quanto um aparelho de anzol.
Falamos de um rolo de cabo, (corda, em designação corrente de pessoal de terra), uma grande quantidade (centenas) de estralhos com anzóis, e algumas pedras.
Os cabos, hoje em dia de polietileno, muito mais duráveis, têm normalmente espessuras variáveis entre os cinco a doze milímetros de diâmetro. Destes cabos principais pendem as linhas, mais finas. Estas linhas medem-se em braças, não em metros, e se quiserem um detalhe mais é este: a cada uma linha correspondem exactamente onze braças. Tudo está padronizado, por anos e anos de utilização. É assim que resulta bem. As linhas, que eram até aos anos sessenta de algodão entrançado, são hoje de nylon, por exigirem muito menos manutenção. É das linhas que irão ficar pendidos os estralhos, com os anzóis. Estes serão iscados com peixe barato, mas atractivo: sardinha, cavala ou savelha.
A cavala, um isco fácil de capturar, barato, sempre disponível, e altamente atractivo para peixe grosso, é muito utilizado na pesca profissional. |
Cabos, linhas e estralhos têm diferentes espessuras, para que a resistência de cada um dos componentes seja a indicada para a sua função. O sistema funciona como as montagens de linha que fazemos nas nossas canas, sempre com um sistema de fusível, do mais grosso para o mais fino, para que, quando arrochados na pedra, possamos perder o mínimo possível de material. Não faria sentido deixarmos uma linha fina no careto, e uma grossa no estralho.
Aquilo que é substituído com regularidade são os estralhos, muito danificados pela luta demorada dos peixes que ficam presos. Neste aspecto, nós pescadores de linha temos vantagem, pois recuperamos o pescado logo de imediato à picada. Na pesca profissional, as linhas permanecem muitas horas com o peixe a debater-se. O resto do aparelho é utilizado durante muito tempo, não se danifica facilmente, sendo apenas desembaraçado, em terra, aquando de alguma captura de maior porte que o deixa enrolado.
Há toda uma ciência de montagem, e não pensem que por ser uma arte simples, é de fácil concepção. Tudo tem os seus termos técnicos, a “tralha”, os “calamentos”, as “talas”, tudo tem o seu saber. São os calamentos que ligam as linhas que vão para o fundo, com a ajuda de um peso, normalmente uma pedra com duas dezenas de quilos. Aquilo que vemos à superfície, são as boias (designam-se por cabeças) e servem para impedir que o aparelho se afunde totalmente e fique preso nas rochas. Ficar preso, em gíria de mar chama-se “ ficar fiche” nas pedras.
A ciência de uma arte deste tipo é imensa! Aconselho-vos a irem um destes dias a Sesimbra e escutem o muito que têm para dizer os marítimos que vocês veem a desenrolar cabos nos passadiços junto ao cais. É uma lição de fina arte de pescar! Falem-lhes nas “pitas estrovadas”, ou aramadas. E eles dirão que, consoante o tipo de peixe que se pretendia pescar, assim eram preparados os aparelhos. Com linha de algodão, aparelhos “estrovados”, para os casos de peixes macios, leia-se peixes que morrem rodopiando sobre si próprios, como por exemplo a chaputa. Ou com arame no terminal, se a pesca fosse dirigida a peixes com dentes cortantes, a pescada, o goraz, o peixe-espada. Estes, ao fim de horas, acabavam por cortar a “pita” com os dentes. Hoje em dia, com a generalização dos nylons grossos, isso caiu em desuso.
Contrariamente ao que a maior parte de vós pode pensar, os aparelhos não são largados em linha recta. Os mestres, que conhecem bem as pedras onde trabalham, sabem bem onde devem largar, e por isso, e no intuito de fazer o máximo possível de peixe, não deixam anzóis no limpo, onde não serão atacados.
Faz-se a largada do aparelho em círculos, ou em ziguezague, de forma a que a maior parte dos anzóis fique nas zonas onde está o peixe. E para que o aparelho não venha “ perdido”, ou seja, para que ao recolher, a maior parte dos anzóis traga peixe.
Os aparelhos são largados de noite, sempre impreterivelmente antes do sol nascer. Todos os dias estes barcos de 30 metros repetem os trabalhos, até encherem os porões. É necessário enquadrar esta actividade: para pesqueiros muito longe de terra, por vezes as viagens até ao local podem demorar... 5 dias!! Há que ter em conta que isto é pesca profissional, e os factores que a regem são a produtividade, acima do conforto pessoal dos pescadores. Nós pescamos a uma hora dos nossos pesqueiros, ou nem isso, e utilizamos carretos para recolher a linha. Eles trabalham com um alador, um pequeno guincho elétrico, é só assim lhes é possível recolher muito rapidamente o aparelho, que pode ter centenas ou milhares de anzóis. Diz-se de retirar os peixes dos aparelhos profissionais... “safar os anzóis”.
As traineiras mais pequenas que também se dedicam à arte do anzol, fazem-nos a pouco mais de 15/ 20 milhas da costa, em saídas que duram um a dois dias.
Quando damos à chave de um barco de pesca lúdica, sabemos que num espaço de tempo curto estaremos a desligar o motor, já em cima da pedra que elegemos para pescar nesse dia. Mas os barcos de pesca profissional não são feitos para “corridas”, são embarcações muito lentas, pesadas, e concebidas para carregar muita carga. Os motores são de tal forma lentos que os mestres têm necessidade de sair ao mar por volta das duas da manhã, para voltar ao final da tarde, a tempo de poderem vender o peixe em lota. No dia seguinte esse será o peixe fresco que as pessoas irão comprar. Por isso a qualidade do peixe pescado por nós será sempre superior, porque podemos consumir pescado capturado há poucas horas e não há poucos dias...
As traineiras saem de madrugada, sendo o “aviso” dado normalmente para a uma e meia da manhã. Provavelmente não sabem, mas em Sesimbra, havia o hábito de um dos pescadores que fazia parte da “companha”, ir de rua em rua, às portas dos seus companheiros, gritar os nomes dos “camaradas” bem alto, para os acordar. Na verdade, acordavam toda a vila!
Tentem imaginar que numa rua, poderiam morar vários pescadores, de traineiras diferentes, com horários diferentes de saída. Em função das horas de caminho até as pedras que iriam ser trabalhadas, assim seria necessário sair mais cedo ou mais tarde. Por isso mesmo, a vila de Sesimbra acordava várias vezes por noite. Este costume só acabou com o aparecimento dos relógios despertadores...
A pesca com aparelho mobiliza a maior parte dos pescadores de Sesimbra, e, com excepção da pesca de cerco com traineira, funciona de forma arcaica. Tem muito de artesanal. Vocês já viram como os pescadores preparam as suas linhas, no cais, esticando-as, retirando aquelas que perderam os anzóis, acondicionando em barricas de madeira, as celhas, aparelhos prontos a pescar. Este sistema, por estranho que vos pareça, é idêntico ao utilizado no século XV. Quer o aparelho quer a forma de organizar o trabalho e a própria divisão do producto da pesca, são idênticos.
O quinhão é repartido de igual forma por todos os “camaradas” participantes da “companha” (conjunto da tripulação do barco). O mestre, ou “arrais”, comanda as operações e é normalmente o proprietário. É ele quem decide onde e como largar os aparelhos e é sobre os seus ombros que assenta a responsabilidade dos resultados. A este respeito, é curioso dizer o seguinte: nenhuma empresa (embarcação) formada por gente de fora da vila teve sucesso. O sistema eficaz não oferece dúvidas: todas as embarcações pertencentes a gente de fora, que investe o seu dinheiro na mira de fazer lucros, oferecendo um salário mensal aos marinheiros, foram à falência em poucos meses. A razão tem a ver com o facto de os pescadores deixarem de se esforçar, pois têm o salário garantido no fim de cada mês, quer pesquem …quer não pesquem. E o esforço de trabalho é por isso calculado pelo mínimo.
A forma de fazer as coisas funcionar sempre foi, desde tempos idos, a de oferecer o “quinhão”, a parte que corresponde a cada um dos marinheiros, e que varia de acordo com os resultados obtidos nesse dia. E aí, se necessário, trabalham-se 16/ 18 horas sem parar.
A este respeito, digo-vos que a pesca longínqua do bacalhau era de natureza assalariada. Ainda assim, as pessoas sentiam-se livres. O conceito de “horário de trabalho” é algo que faz sentido quando se trabalha numa fábrica, num escritório, numa loja. A bordo, impera um tipo de organização em que aquilo que faz obter resultados não é o número de horas trabalhadas, mas sim o empenho que cada um coloca naquilo que faz, em conjugação de esforços com todos os outros. Aquilo que impera não é o escrito num contrato legal de trabalho, mas sim os laços de solidariedade, amizade, e código de honra. A bordo, aquilo que existe em termos de organização é algo de muito simples: o mestre manda porque sabe mais, os outros obedecem. Passam a ser iguais quando estão terminadas as tarefas de reparação e concerto dos aparelhos, e há tempo para um copo na taberna. Ajuda entender que estas pessoas têm como padrão comportamental algo que foi repetido de gerações para gerações, uma relação que tem muito de familiar, quantas vezes de parentesco directo. Os pescadores de um barco profissional são muitas vezes vizinhos, amigos próximos, e na maior parte dos casos sempre viveram juntos, tiveram uma infância juntos.
Essa é a grande diferença para quem trabalha num escritório, num emprego do Estado, em que a maioria das pessoas não tem sequer ideia de onde moram as outras. Depois de tudo, a dureza do trabalho, a submissão a uma vida extremamente exigente do ponto de vista físico e de robustez psíquica, quantas vezes mal remunerada, e sempre pouco compensadora, com muito poucas regalias. Também a imagem social de alguém que vai ao mar para “apanhar”, para “matar” peixe, para cercar com uma rede cardumes inteiros de peixes, quantas vezes prestes a reproduzir, no fundo para destruir o equilíbrio da natureza, num momento em que aquilo que é tomado como bom é a ecologia, a preservação dos stocks piscícolas, pouco ajuda a que exista reconhecimento pela profissão. Que obriga a inúmeros sacrifícios e deveria ser muito mais bem paga.
Cada vez menos peixe e de menor tamanho. Mas os aparelhos têm de continuar a ser lançados. |
Vamos continuar a espreitar os segredos da pesca profissional.
Amanhã vamos ver como funciona essa coisa das lotas, do remate de uma caixa de peixe.
Vítor Ganchinho
Buarcos. Era criança, 5 anos, mas lembro os meus primos e tios virem da faina nas traineiras e do seu regresso da Terra Nova vindos da pesca do bacalhau em navios iguais ao Crioula. Era muito duro e sem proveitos.
ResponderEliminarSim verdade que sim, a vida do mar, sob qualquer perspectiva, é sempre dura. Quando o trabalho é feito com gosto, cansa um pouco menos, mas no fim, o corpo paga sempre o mau tempo, o frio, a chuva, as horas não dormidas, etc.
EliminarQuando saímos para a pesca à linha, devemos ter a noção de que estamos lá porque gostamos e queremos ir. Mas outras pessoas são forçadas a gostar, porque não têm outras alternativas, e mesmo que não queiram ir, ...têm de ir.
Um bom dia para si.
Vitor