SABER DE PESCA PROFISSIONAL - CAPÍTULO 1

Há muita gente que pensa saber bastante de pesca à linha. Quando a bordo de um barco, são normalmente as pessoas que falam mais alto que todos os outros.
São eles quem determina aquilo que se vai fazer, e como, fazer numa jornada de mar.
Saberão eventualmente o suficiente para poder obter resultados satisfatórios numa ou outra modalidade de pesca lúdica, aquilo que fazem habitualmente na sua zona, e isso chega, até ver.
Mas quando falamos de mar e de captura de peixes, tratamos de um universo tão largo, tão abrangente, que quase me atrevo a dizer que não haverá muita gente que saiba sequer metade da metade de tudo aquilo que há para saber.
A actividade da pesca na sua globalidade é uma imensidão enorme de conhecimento. E eu estou absolutamente convicto ser impossível caber na vida de uma pessoa. É muito mar...




Hoje trago-vos algo que me parece importante sob a perspectiva de alargamento de horizontes de conhecimento. Parece-me importante sabermos um pouco mais da forma como pensam e executam os profissionais de pesca.
Sim, aqueles que utilizam redes, palangres, gaiolas, etc.
Parece-me ser interessante que vocês entendam a pesca pela perspectiva de quem está do outro lado, de quem não pode encolher os ombros se não pescar nada. Os profissionais não podem olhar para as suas caixas vazias da mesma forma que nós, pescadores lúdicos, olhamos. Eles não podem ter muitos dias maus... não podem encolher os ombros porque a sua vida e a dos seus depende disso.




As artes de pesca praticadas em Portugal são bastante diversificadas. Não se pesca da mesma forma nos Açores, no Porto ou no Algarve, porque os fundos e consequentemente as espécies que os habitam não são os mesmos.
Temos felizmente muita documentação produzida por pessoas que a esse trabalho dedicaram anos e nos ofereceram excelentes textos. Testemunhos esses que documentam essas artes, essas técnicas, e que as irão perpectuar no tempo, ainda que a sua aplicabilidade seja hoje nula.
Podemos começar por separar duas grandes vertentes da pesca profissional, a pesca costeira e a pesca de alto mar, analisando as diferenças entre cada uma.

Pesca Costeira

Caracterizando a pesca costeira, uma actividade muito local, de deslocações curtas, praticada por embarcações de pequeno calado, temos que a maior parte da faina é feita através de cerco, com redes de malha miúda, o chamado cerco americano, dirigida à pesca da sardinha, do carapau, e da cavala.
Na mesma linha, podemos situar as aiolas, pequenos botes de madeira, que se dedicam à pesca do polvo e do choco, em fundos baixos. Outras artes, como a arte xávega, os acedares, ou a armação valenciana, são técnicas que terão uma representatividade residual, e a maior parte delas tenderá a desaparecer, por falta de resultados. Outras existiram, já defuntas, a chincha, a arte do caneiro, tudo isso são memórias passadas. Aquilo que não rende é abandonado, deixa de se praticar.
Também os mares, à medida que os stocks de peixe desaparecem, acabam por mudar, mudando com eles as formas de capturar pescado ou marisco.
Recordo-vos que em Setúbal, os apanhadores de santolas corriam o paredão da cidade, com uma armação metálica rectangular, equipada de rede fina, a raspar as paredes. As santolas saltavam inevitavelmente para dentro do copo de rede. Isso já não é feito hoje, mas existiu e alimentou famílias.


Muitas espécies vivem nos primeiros metros de água, não tendo possibilidades de viver mais fundo.


Falamos hoje com frequência em sustentabilidade. Arrepiamo-nos quando a pesca é feita por arrastões, que devassam os fundos, e matam indiscriminadamente pequeno e grande, sem contemplações.
Matar um peixe é grave, mas arrasar o fundo onde esse e todos os outros peixes não capturados podem encontrar alimento é bem pior. Um arrastão faz mais mal num mês que todos os pescadores de linha e anzol portugueses em muitos anos.
Aquilo que obrigou os pescadores a sair para o largo e utilizar os aparelhos de anzol foi precisamente a degradação dos fundos costeiros baixos, que ocorreu a partir da metade do século XX, pelas embarcações do arrasto.
Foram destruídas largas faixas de vegetação aquática costeira, (as laminárias que tanto peixe metiam... desapareceram), e isso empurrou os pescadores para o mar alto. E essa pesca de aparelho continua a ser a mais praticada, e também a mais sustentável.


Em fundos intactos, há milhões de pequenos seres que se concentram em zonas costeiras com algas, e aí fazem as suas vidas. Todos são muito importantes.


Setúbal tem no seu rio o grande promotor de criação de peixe, e a pesca praticada e artes utilizadas reflectem muito isso, a dependência do rio, da sua foz e zona de influência das suas vazantes. Sesimbra vive das profundidades significativas logo à saída do seu porto de pesca.
Se os setubalenses têm a possibilidade de aplicar redes de emalhar que trabalham o peixe que se avizinha da foz, os sesimbrões apostam muito nos aparelhos que largam nas profundidades. E por isso as capturas são algo diferenciadas.
Já quanto à rentabilidade, gostaria de ser mais positivo. Desde a década de setenta do século passado que a quantidade de peixe tem vindo a ser menos, obrigando a saídas mais longas, inclusive a bancos de pesca a oeste do cabo de S. Vicente, o banco do Gorringe, Gorrinche, ou, como os pescadores o designam, “Garrincho”. As saídas a Marrocos, ao norte das Ilhas Canárias e à Mauritânia, verdadeiras minas de peixe nos idos anos 80, altamente rentáveis, deixaram de ser apelativas por revogação dos acordos de pesca com Marrocos, celebrados em 1976. Foi a entrada de Portugal na então Comunidade Europeia que acabou com essa possibilidade. Essas viagens, essas pescas do longe, eram feitas por períodos de 1 a 2 semanas, e as embarcações, com cerca de 30 metros de comprimento ainda hoje atracadas nos molhes de Sesimbra. Não faltarão motivos para considerar esta vila como uma das mais importantes do país em termos piscatórios, mas longe vão os tempos em que a maior quantidade do peixe capturado tinha a ver exclusivamente com recursos locais.
Por vezes, mais vale que o peixe venha de longe. Ao ser construído um emissário que despeja resíduos no mar, sabemos que os peixes irão passar a depositar as suas posturas nessa zona. Se não é agradável ter à vista um esgoto que corre pela praia, com tudo o que isso pode acarretar em termos de consequências para a saúde pública, saber que há peixe capturado nos emissários também não o será.
Não vem mal ao mundo que existam ribeiros a desaguar no mar, desde que com águas limpas, puras, sem detritos orgânicos, poluentes de fábricas, etc. E se tivermos a sorte de ter um desses locais por perto, sem poluição, pois estamos a um passo de poder pescar peixes de respeito, porque as saídas de água doce são muito procuradas por predadores. Os robalos sempre na fila da frente.




Esses são também locais onde invariavelmente as gentes do mar lançam as suas redes. Porque são precisamente zonas querençudas, com vida, e que atraem diariamente peixe às suas imediações.
A pesca com redes de emalhar é muito igual ao longo de toda a costa portuguesa, no continente. Sabe-se que o peixe procura zonas onde possa encontrar comida e outras onde procura sobretudo protecção. Estas são sobretudo zonas de rochas com esconderijos, com pedra lata, melhor se partida, com buracos, ou zonas de algas. Nem sempre é possível conseguir ambas as vertentes num só lugar. E por isso tem de se sujeitar a uma deslocação. É aí que as redes entram, aprisionando peixe que se deixa enrolar nas malhas das redes.
Numa entrevista a O Sesimbrense, em Fevereiro de 1971, o arrais Alberto Pitorra deu das algas uma curiosa e feliz imagem: “São a cama, os lençóis, e o cobertor dos peixes”.
As redes são colocadas por fora da mancha de algas, melhores se forem laminárias. Cada vez mais raras, estas eram e são um autêntico viveiro de peixe, quer miúdo em fase de crescimento, quer de peixe de enorme qualidade, robalo, sargo, corvina, etc.




A arte da rede de emalhar, antigamente com redes de tresmalho de algodão e mais recentemente com redes “albitanas”, em nylon, baseia-se num pressuposto muito simples: o peixe desloca-se, e ao não valorizar a resistência que pode oferecer o pano de rede e tenta atravessá-lo.
Este, disposto na vertical, assente sobre o fundo, com o auxílio de pedras e boias, as que vemos à superfície quando navegamos até aos nossos pesqueiros, e sempre colocados na perpendicular ao sentido da corrente, emalham o pescado que se envolve nas malhas da rede, ficando aí aprisionado. Será levantado no dia seguinte, pelo feliz pescador. Na maior parte dos casos, a rede volta a ser lançada, no mesmo local, se a pesca foi boa, ou noutro local, se as redes vieram vazias.
A “tresmalha” e a “albitana” são dois tipos diversos de rede e constituem aparelhos distintos. A primeira, de malha fina de algodão “encascado”, é largada sobre fundos arenosos, junto à costa, nas “bordas de dentro” – entre dez a vinte braças de profundidade. Destina-se à pesca do linguado, do pregado, do rodovalho, da solha, da tremelga e raia, do choco e do polvo. Também serve para outros peixes como o besugo, a marmota, a cabra, ou ruivo, a santola; A segunda, em malha de nylon larga, é usada para a captura de espécies como as abróteas, gorazes, pargos, tamboris, raias, salmonetes, pata-roxas, polvos, corvinas, cações, fanecas, etc. É lançada nas bordas de fora” – de quarenta a oitenta braças de profundidade. Antigamente, quando um pescador dizia que tinha apanhado X caixas de peixe, costumava referir-se apenas às caixas de pescada que tinha conseguido capturar.
Na gíria, havia nas nossas costas de Setúbal e Sesimbra, dois tipos de “mares” – os costeiros, ou “da borda de terra” cujas designações são as das “marcas de terra” e têm bordas “de dentro” e “de fora” ou “do fundo” (que estão mais afastadas de terra); há a Pedra do Barril, a Malha Grande, o Penedo”, a Pedra à Lagoa”, que vão do enfiamento do Cabo Espichel até à lagoa de Albufeira, mais a norte. Trata-se de vários “mares” pequenos e estreitos. Há também os “mares do alto” (são os mares das cem braças, que ficam entre as dez e as vinte ou mais milhas de Sesimbra), para sul, oeste e norte do Cabo Espichel, e que são limitados por várias bordas. Para norte, os pescadores de Sesimbra pescavam (e pescam) inclusivamente em mares do enfiamento do Ilhéu do Bugio e até às Ilhas Berlengas e, para Sul, até ao Algarve nas pequenas barcas de onze a quinze metros. Estes mares são referenciados pela conjugação das “marcas de terra” com a bússola, os astros e o relógio: a Entrumeoutra, a Afilhadinha (que fica depois, na “borda de mar”, da primeira), a Mé, o Poço da Morte, a Estradinha (que é a “borda de mar” do Poço da Morte), o Bugalhete, a Três Quitanas (a “borda de mar” do Bugalhete), o São Domingos, o Queimados (outra “borda da mar”), o Morre-à-Risca, a Fundura Nova, o Casal, o Mar Novo, o Farol ao Canto, a Malha Encarnada, o Altar e a Mar d’Ádega são mares que ficam entre o enfiamento do farol de Sines e o Cabo Espichel; o Protestantes, o Canto d’Água, o Chão da Regueira, o Maçados, o Mangão, o Bombas, o Graçone, o Cabo Raso e o Pai dos Gorazes são mares que prolongam os anteriores desde o mar dos Queimados para fora e para norte; do enfiamento norte do Cabo Espichel e até ao enfiamento do farol do Bugio (na barra do Tejo) existem o Rapapoitas, o Chapéu, etc. Quanto saber!
Não imaginam o que eu me divirto a ler os textos antigos, e a aprender com os nossos homens do mar já reformados, sobre estas coisas do mar. Com educação, com respeito, se perguntarmos, eles respondem e dizem-nos tudo. São lições que se sorvem, são horas que queremos que nunca acabem, porque são livros abertos prontos a ser lidos. A maior parte das pessoas não tem tempo para aprender e é uma pena. Tanto sabem os nossos marinheiros, e quanta cultura está presa em folhas amarelecidas pelo tempo, em textos escritos por quem nos antecedeu. Se hoje essas pessoas podem já nem estar vivas, temos ainda assim a agradecer-lhes o legado que nos deixaram, e que de tanto nos pode servir.
Os mares são os mesmos e só temos de adaptar os seus ensinamentos ao que existe hoje. E saber ler, saber retirar de cada texto aquilo que ele tem de bom. E há tantos textos bons!
Pela parte que me toca, agradeço sempre as críticas que são feitas ao blog. Gostaria que fossem feitas muitas mais, pois é daí que pode vir a oportunidade de melhoria, de aperfeiçoamento.
Em termos gerais quem produz algo sabe que tem sobre o seu pescoço a espada da crítica, e assume a possibilidade de alguém não gostar. Isso está de resto sempre inerente a qualquer acto de escrita, e não deve inibir quem se atreve a escrever, a dar a sua opinião.
Se alguma mágoa me fica em relação a opiniões contrárias, é apenas a de um leitor que comentou que eu escrevia sempre sobre o mesmo tema. Não consigo aceitar. De resto basta folhear as páginas publicadas e facilmente se chega à conclusão que há material publicado sobre equipamentos de pesca, peixes, técnicas de pesca, mar, etc. Custa-me pensar que não fui, para esta pessoa, suficientemente bom e capaz de a fazer interessar pelos meus textos.
Fiquei um pouco mais aliviado quando, depois de essa pessoa ser questionada sobre a razão de ser do seu comentário, (a razão de pensar que eu escrevia sempre sobre o mesmo tema), nos foi dito que apenas tinha lido um artigo. Ora há quase 700...

Amanhã vamos continuar a visitar pescas profissionais.



Vítor Ganchinho



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