O Atlântico, que nos parece uma imensidão de água salgada, nem é tão largo assim.
Não será um voo de pássaro para um dia, mas é de fácil travessia para os grandes senhores do azul, para aqueles que nadam sem parar dia e noite: os atuns.
Sempre em deslocação, os atuns do Atlântico (Thunnus thynnus), têm força suficiente para o atravessar e ainda lhes sobram energias para algo muito importante para a espécie: a reprodução. Na época certa, a partir de Março, juntam-se enormes cardumes que apontam na direcção do estreito de Gibraltar. É aí que passam e vão desovar no Mediterrâneo ocidental, em locais sobejamente conhecidos. E alguns deles passam na nossa costa, sendo o Algarve, por razões de força maior e proximidade, a zona mais privilegiada para os podermos observar. Um ataque de atuns à superfície é algo de devastador, uma imagem que não é fácil esquecer. Um atum adulto pode medir entre 2 a 2,5 m e pesar cerca de 150 a 300kg, não sendo ainda assim raros os exemplares com cerca de 4 metros e próximos dos 1.000 kg.
Também sobem um pouco, atraídos pela quantidade de sardinha, cavala e carapau que temos na nossa costa a rodos. Tenho vindo, ano após ano, a observar com mais e mais frequência atuns encostados junto a Setúbal. Há alturas do ano em que os encontro, são mesmo muito frequentes. E quando os sentimos próximos, a vontade de medir forças é mais forte que nós.
Ferrar um atum nem é o mais difícil, a luta que se segue sim, põe à prova as capacidades técnicas e físicas de cada um. Mas há quem tenha encontrado forma de os conseguir, e em bom número, sem se dar ao trabalho de lutar com cada um. Falamos da técnica ancestral da almadrava. A pesca do atum organizada e em larga escala, provavelmente era já desenvolvida pela importante colónia fenícia de Cádiz. A partir do século XIV existem muitas referências às almadravas do Algarve e da Andaluzia, que representavam uma importante fonte de receita para as cortes de Portugal e Espanha. É igualmente curioso notar que pelo menos no caso português, e num período inicial (até ao século XVII) as almadravas eram frequentemente exploradas por sicilianos e genoveses. Ao tempo do reinado de D. Dinis, essa era a regra. Não sabemos ao certo quantas almadravas terão funcionado em simultâneo neste período, provavelmente cerca de 40, nem qual a cifra das capturas anuais. No entanto por vias indirectas sabe-se que havia alguns milhares de homens envolvidos nesta actividade e, quanto às capturas, é elucidativo o facto de em 1499 ter sido emanada uma ordem régia a partir de Lisboa, para a construção em Lagos de pias de salga com capacidade para 3.000 atuns. É uma barbaridade de peixe...
A conservação de tamanhas quantidades de peixe exigia por isso enormes quantidades de sal, tendo as salinas do Algarve e Andaluzia conhecido um significativo acréscimo nesse período. Por essa razão a história das almadravas está também muito ligada à história do sal.
Sabemos da importância de Setúbal, (ler sobre ruínas das salgadeiras de Troia) e ainda mais de Alcácer do Sal, que à época era um polo importantíssimo de negócio. Alcácer era muito mais importante que Setúbal. O sal era de tal forma importante que o salário dos legionários romanos era pago em... sal. É necessário contextualizar, e entender que a preservação dos alimentos era feita dessa forma, não existiam frigoríficos. Há algumas dezenas de anos, a generalizada matança do porco tinha como elemento de preservação o sal. E também a carne do atum era preservada dessa forma.
Na Baía de Sesimbra foram instaladas por volta dos séculos XIII/XIV por iniciativa de D. Dinis. Mas nessa altura não tinham a configuração e desempenho das almadravas dos nossos dias.
De resto, nem pressupunham a pesca do atum em exclusivo. O espadarte de Sesimbra era uma espécie capturada com alguma frequência. O sistema consistia, à época, em manter vigias nas atalaias de terra, e que davam o aviso de que havia algo na zona. Eram lançadas redes quando se achava que valia a pena, o que em si já contrasta com a rede fixa que hoje conhecemos. A primitiva almadrava era constituída por duas redes, a sedal e a cinta. Quando, de uma das torres, o vigia assinalava a passagem do cardume, lançava-se de terra a sedal em semicírculo, de modo semelhante ao das xávegas modernas, e depois a cinta, envolvendo-a por completo a uma certa distância para evitar a fuga dos atuns que escapassem do sedal; as redes eram depois aladas para terra até os atuns poderem ser apanhados com croques ou bicheiros providos de ganchos de ferro.
As grandes armações do atum desapareceram do Algarve há mais de trinta anos. Por falta de resultados.
No final do século dezanove, uma armação algarvia pescou de uma assentada o número, hoje assombroso, de quarenta e um mil atuns.
Esta espécie migratória capturada à passagem era então frequente na costa portuguesa, de Maio a Agosto, desde Matosinhos a Vila Real de Santo António. E chegavam a apanhar-se regularmente exemplares com mais de dois metros e trezentos quilos de peso.
Por razões nunca completamente esclarecidas - "ninguém conhece nada do atum, que se pesca ao acaso e às cegas", já se queixava Raúl Brandão - os cardumes foram procurando outras águas, e até ao final dos anos sessenta a importância económica desta pesca foi gradualmente diminuindo.
Em 1898 existiam na costa algarvia dezoito armações; em 1937, eram já só seis ; e em 1968 aconteceu a última grande campanha do Arraial Ferreira Neto, em Tavira.
Registe-se no entanto a tentativa de uma empresa japonesa de reintrodução de uma forma modernizada desta pesca no Algarve em meados dos anos noventa.
A sobrepesca, aliada eventualmente a outras causas, levou a uma queda progressiva das capturas, tendo uma das últimas almadravas do Algarve capturado um único atum na sua última campanha (1972), quando essa mesma almadrava tinha registado capturas anuais da ordem dos 40.000 atuns no início do século XX. A situação dramática das populações das várias espécies de tunídeos do Atlântico e do Mediterrânio, levou à criação de um organismo internacional de regulação da pesca destas espécies, o ICCAT o qual recomenda que o total global de capturas das diferentes espécies no Mediterrânio (incluindo os migradores do Atlântico) se cifre na ordem das 15.000 toneladas / ano.
Neste momento, o horizonte é menos sombrio, e já há sinais de abertura da pesca do atum que não existiam há uns anos. As populações de atum recuperaram significativamente, e há zonas onde já se fala de serem em excesso. O atum tem uma voracidade muito grande, e isso pode não ser muito positivo para a preservação de muitas outras espécies. Como dizemos em Portugal, nem muito ao mar nem muito à terra...
Actualmente as almadravas não são mais que apenas uma recordação. Anualmente arma-se ainda uma no Algarve e quatro na Andaluzia, que perpetuam uma história e uma cultura ancestrais, e embora as capturas sejam bastante mais modestas o mercado é substancialmente mais exigente, pois o atum do Atlântico, outrora colocado em barricas e latas, é agora criteriosamente preparado, com destino sobretudo ao mercado japonês, para ser consumido num sushi considerado de superior qualidade, comparativamente ao atum do Pacífico.
Do método ancestral de conservação da parte nobre do atum (os lombos) – a chamada muxama – há ainda, felizmente quem lhe dê continuidade: as Conservas Dâmaso de Vila Real de Santo António. É uma iguaria rara e singular, com reminiscências árabes e levantinas, que pode encontrar na Parceria das Conservas.
Este trabalho é da autoria de Lucien Donnat. |
Na estação do Rossio em Lisboa, existe um conjunto de painéis de azulejos, datados de 1958, alusivos a produtos portugueses de exportação. Cada painel ilustra um produto, com recurso a diversas componentes temáticas relativas a esse mesmo produto. Lá estão os nessa época chamados, produtos ultramarinos – café e o sisal e os tradicionais produtos “metropolitanos”: os vinhos, a cortiça, os vidros e, naturalmente as conservas de peixe. Lucien Donnat, um homem que dizia dele próprio, ser “demasiado dotado”, é o autor desses azulejos. Um pouco de modéstia não lhe ficaria mal.
Vítor Ganchinho