Sair ao mar já foi difícil. Hoje não.
Nem nos damos conta das facilidades com que hoje executamos algumas tarefas que eram, apenas há alguns anos, francamente difíceis e arriscadas.
Temos barcos tecnicamente bem desenhados para suportar mau tempo, equipados com modernos meios tecnológicos, sondas, GPS, radares, e bons sistemas de comunicação VHF. Dispomos de toda a palamenta necessária para uma saída e entrada em segurança. Não podemos de facto reclamar muito. Temos é menos peixe! Podemos entender o fenómeno como algo cíclico, que, na minha zona de acção ou em qualquer outra, depende sempre muito das temperaturas das águas, e condições de alimentação que o pescado encontra para se fixar na baía de Sesimbra, Setúbal e Sines. Por vezes são pequenos detalhes, haver ou não caranguejo pilado, sardinha, cavala ou carapau, aquilo que pode fazer a diferença entre ter muito ou pouco peixe disponível.
Mas convém não perder de vista que tudo é relativo. Teremos eventualmente pouco peixe quando comparado com momentos mais abastados de recursos, mas quando nos queixamos da sua falta, convém não perder de vista que o nosso pouco pode ser considerado muito noutro país europeu. Ciclicamente há crises e também por oposição, anos de grande fartura. Verdade que quando o capturamos muito peixe, e porque se trata de algo que não se cria num abrir e fechar de olhos, fica a faltar. Onde havia, deixa de haver.
No final do século dezanove, uma armação algarvia pescou de uma assentada o número, hoje assombroso, de quarenta e um mil atuns. Tem algo de estranho que a seguir... não haja?!
Para que tenham uma ideia da riqueza de pescado que havia em Sesimbra há uma centena de anos, digo-vos que eram montadas armações fixas para a pesca de producto destinado às conservas, e que abasteciam fábricas diariamente.
Essas armadilhas de rede eram dispostas de forma perpendicular às trajectórias habituais dos cardumes, conduzindo-os através de um sistema de labirinto até um ponto de recolha.
Como sabem, este é o principio das almadravas, (do árabe almadraba, uma palavra composta por dois significados diferentes, alma, ou lugar, e darab, matar, numa tradução livre de hispano-árabe, “lugar onde se mata”).
Estas armações são paredes de rede instalada do fundo até à superfície. O peixe entra, segue um trajecto pré-definido e não tem retorno. O sistema é simples, funciona de forma passiva, sem acção directa do homem.
O cardume vai avançando até chegar a um copo terminal em rede que, quando se justifica, é levantado à superfície, manualmente, por uma companha de marinheiros, e permite a sua recolha. Vamos voltar a este tema muito em breve, vão ver que é muito interessante.
Não tem necessariamente de ser utilizado apenas para capturar atuns, tudo depende da medida de malha que seja aplicada, mas era o atum a grande peça, o target daquele tipo de pesca.
Coisas de árabes, que habitaram e exploraram a Península Ibérica antes de nós.
Hoje em dia, grande parte dos atuns capturados é exportada via aérea para os países do sol nascente. A Ásia consome atum em quantidades industriais, e os preços praticados compensam largamente os custos de expedição.
O negócio é de tal forma rentável que assistimos nos anos noventa a uma tentativa de ressuscitar a colocação de almadravas no nosso país. Mas os números já não os mesmos, os atuns passaram a preferir outras rotas e não encostam de forma tão regular que justifique o empenhamento de tantos meios. Mas já compensou.
Os aparelhos de Sesimbra, permaneciam a pescar durante toda a temporada, sempre activos. É bem revelador da quantidade de peixe que entrava na rede, o facto de, por volta do ano de 1930, as armações ficarem fundeadas durante todo o ano e serem feitas duas recolhas de peixe... por dia! Mesmo no Inverno, com mau tempo e mar picado, era recolhido peixe de manhã e ainda havia a possibilidade de, a meio da tarde, ser feita nova colheita. (Cruz, 1966).
Mas os mares mudam, as temperaturas podem ser mais ou menos favoráveis, a quantidade de alimento pode variar, e isso influencia a permanência do pescado.
À medida que a quantidade de peixe junto à costa diminuiu, as indústrias conserveiras começaram a ressentir-se, e muitas delas faliram. Outras limitaram o tempo da safra aos meses de Verão.
Foi o fim das fábricas alemãs e francesas, propriedade de investidores que foram embora, à procura de outros mercados. Ficaram as fábricas portuguesas, a laborar até 1950.
Sabe-se que nesses anos houve temporais particularmente fortes, em que morreram no mar vários pescadores da pesca do alto: 1933, 1935, 1937 e sobretudo no ano do ciclone, 1941. Foram anos que marcaram muito esta região.
Os homens não podiam sair ao mar e houve muita fome e pobreza na vila de Sesimbra. Às más condições naturais juntaram-se pequenas revoltas de pescadores que exigiam ainda assim trabalho nas indústrias de conservas e nas armações que fechavam, em protestos frente à Câmara Municipal.
Mas tal como os alcatruzes das noras, umas vezes por baixo, outras por cima. O peixe vem e vai, ao sabor das condições naturais que encontra, ou não encontra.
O rebentar da II Guerra Mundial e a construção do molhe de abrigo nos anos 40, melhoraram claramente a vida da comunidade de Sesimbra. E nessa altura, havia peixe.
Para as armações e fábricas de conserva que sobreviveram, este período foi de grande crescimento, graças aos pedidos de conservas de sardinha que eram exportadas para as nações em guerra.
Os exércitos necessitavam de doses individuais de comida transportável e sem prazo de validade curto. As conservas são isso.
A venda era feita tanto aos países do “eixo” (Alemanha e Itália), como aos aliados franco-britânicos (Cruz, 1966). Esta situação muito particular aumentou exponencialmente o negócio das conserveiras portuguesas.
O facto de sermos um país dito neutro, ajudou aos negócios com todos. Durante esse período da II Guerra Mundial, a região de Setúbal enviava toneladas de alimento para os combatentes, por comboio. As raias pescadas à saída do sado eram secas ao sol, salgadas, e enviadas em fardos.
Mas aconteceu algo que viria a mudar ainda mais decisivamente a agulha para o lado certo da pesca profissional: a construção do molhe de abrigo.
Este, veio favorecer sobretudo os pescadores do alto, que deixaram a partir de então de temer os temporais de Inverno.
Até aí, ultrapassar a linha de rebentação durante o “levante”, constituía um perigo para as pequenas embarcações, que tinham de ficar varadas em terra por largos períodos. Ou então navegar para Cascais, aí permanecendo até à Primavera seguinte, dado que nesta póvoa a barra era mais fácil de atravessar.
Ali existiu mesmo, desde o século XVIII, um pequeno bairro de pescadores ainda usado nos anos trinta do séc. XX, que para lá iam viver durante dois a quatro meses no Inverno, em casebres de madeira e estuque, situadas no terreno traseiro do actual Hotel Baía. Não era a Cascais que conhecemos hoje...
As mulheres dos pescadores atravessavam a pé a Península de Setúbal, atravessavam de barco pelo rio Tejo e juntavam-se aos maridos e pais. Este núcleo de casas era conhecido em Cascais pelo “Bairro dos Sesimbrões” (Monteiro, 1953).
Eram tempos duros, em que a vida do mar não era uma escolha, porque não havia outra opção. Os temporais enfrentavam-se com um encolher de ombros, com a inevitabilidade de quem tem contas para pagar. Com mau tempo não se trabalha menos mas sim mais lentamente.
O trabalho tem de ser feito, e se não for de uma forma é de outra.
A gíria marinheira é em si uma enciclopédia de saber de mar. Os olhos experimentados dos mestres sabem decifrar pequenos detalhes que informam sobre o que aí vem, sem ser necessário qualquer tipo de aparelho.
É saber feito de experiência: “o levante traz temporal”; “a névoa anuncia o Inverno”; “a lua nova traz correntia dos fundos”; “a lua é malandra no quarto crescente”, etc. Para quem joga constantemente com estes dados climáticos a previsão é quase automática, “é sentida”.
Um relance pela linha do horizonte, o vento na cara, o balanço do barco, a visão da água “branca”, “lusa”, ou “negra”, revelam quase imediatamente a informação das condições que se avizinham. Para quem trabalha num meio tão instável, a informação meteorológica é de uma importância extrema. Há um limite para tudo, e convém conhecê-lo.
E quantas vezes o mar não perdoa aos que o desafiam. Diz-se: “o mar traz a fartura, traz a miséria e a... sepultura”.
Vítor Ganchinho