DEFESO NATURAL

Os nossos peixes necessitam de tempo.
Tempo para se recomporem da pressão inusitada que sofrem dia e noite. Pressão que existe onde estão e em cada ponto onde pretendam deslocar-se.
Precisam de tempo para poderem reorganizar cardumes, para poderem fazer as suas migrações, para prepararem a sua reprodução.
Não será fácil estar do outro lado, a enfrentar redes, gaiolas, aparelhos, poluição, etc. Tudo isto acrescido ainda dos nossos “amadores” anzóis, que matam tanto quanto um anzol profissional.
Ser peixe é estar sob uma pressão constante, adivinhar um predador que espreita, ter a vida sempre presa por um fio.
Se têm a necessidade de se alimentar junto à linha de costa, encontram panos de rede e tresmalhos aplicados a duas dezenas de metros da pedra. Se estão ao largo, tentam evitar quilómetros de redes colocadas a 200 metros de fundo.

Haverá um sítio seguro?


No meio desta água com ressaca, haverá peixes que insistem na vida, que se alimentam enquanto a maré deixa.


Tivemos durante algumas semanas um período de instabilidade meteorológica. O vento forte e alguma ondulação, terão sido preciosos para dar oportunidade ao peixe para se recompor. Pode parecer-nos pouco, mas duas a três semanas de “não pesca” fazem muito bem aos habitats marinhos onde os nossos peixes procuram resistir a tudo e todos.
Há alguns anos atrás, havia dias fixos em que os marítimos não saíam ao mar. O domingo era sagrado, dia de descanso para ir à missa e ao futebol, e por isso não havia peixe à venda na segunda-feira seguinte.
Neste momento encontramos gente a lançar redes, a arrastar, a fazer cercos a qualquer dia da semana. Inclusive ao domingo. Nas minhas saídas de mar deixei de entender a diferença entre dias de semana e fins de semana.
Encontro traineiras em todos os locais, todos os dias.
Por isso mesmo é tão importante que as condições de mar estejam de tempos a tempos, …suficientemente ruins. Para o peixe, nunca estarão demasiado agrestes, eles nasceram ali, e por isso mesmo não têm medo das ondas.
O peixe aprende desde cedo a tirar partido da agitação do mar, utilizando-a para descobrir organismos que ficaram desenterrados, deslocados, ou mortos, pela força das ondas. O mar alterado ajuda-os, não os prejudica.


Com mar, o peixe não deixou de comer, acaba sempre por encontrar algo que o faça subsistir. Quando a pancada é demasiado forte, afasta-se um pouco, mas não demasiado. É aqui, onde há acção, que a comida pode surgir de onde menos se espera.


O efeito de um temporal não se restringe apenas a uma benéfica pausa na actividade extrativa humana. Há algo mais que chega com as depressões e que será porventura tão importante quanto o descanso que damos aos nossos peixes: a agitação marítima provoca uma forte oxigenação das primeiras camadas de água, e isso é altamente benéfico para o meio ambiente marítimo.
Mas não fica por aqui. Por vezes há acontecimentos, não naturais, que jogam a favor dos nossos peixinhos.
O aumento do custo dos combustíveis acaba por proporcionar também algum alívio ao peixe, por limitar as deslocações a pesqueiros mais longínquos, e que por isso mesmo estarão mais reservados, menos massacrados.
As artes passam a ser laçadas mais perto dos portos e isso joga a favor dos cardumes que se situam mais longe. Entenda-se a relatividade deste “longe” já que quando um pesqueiro fica muito longe de um porto de abrigo, normalmente fica perto de outro.
Não estamos tão mal quanto os portos e marinas mediterrânicas, que existem a cada 2 milhas, mas ainda assim, as distâncias em Portugal continental não são impossíveis a uma embarcação minimamente bem equipada.
Eu saio normalmente de Sesimbra ou Setúbal e não raras vezes vou pescar a sul de Sines, por vezes até a Vila Nova de Mil Fontes, se o mar estiver de feição e deixar andar rápido.


Isto é comida boa para os nossos mariscadores. É aqui que as douradas, os sargos, as safias, chegam na enchente, para vir comer.


A distribuição de peixe ao longo da costa não é uniforme, há zonas bastante mais ricas de peixe que outras. Aquilo que mais influencia a presença de cardumes é a disponibilidade de comida versus segurança que os locais oferecem.
Dou-vos um exemplo prático: o molhe de Sines é um viveiro natural de peixe. Podemos encontrar de tudo, literalmente tudo, na sua zona de influência. Os cardumes de sargos, douradas, robalos são omnipresentes. Mas também os safios, as abróteas, e os meros se fazem notar. Dali, saem quando em excesso para zonas vizinhas, e a Baixa dos Moledos é um bom local para albergar alguns meros de bom porte. De Sines para sul, os cardumes de robalos “engrossam”, o tamanho dos peixes aumenta a cada milha.
Até Sagres, toda a costa tem algo de precioso para mostrar, ou não fossem nessa zona os portos marítimos mais escassos.
A Pedra do Cajado tem robalos, a Ponta da Atalaia, as Pedras Ruivas, a Arrifana, Carrapateira, Pedra dos Ingleses, Pedra da Galé, Gigante, etc.
As corvinas dobram o Cabo e seguem a sua migração para sul ou para norte, procurando as lulas, os cardumes de cavala sardinha, carapau, que sempre aparecem.
Onde há comida e um pouco de sossego, há possibilidades de encontrar cardumes. Com um mínimo de condições, o peixe fixa-se.


Um sargo patrulha cada recanto, cada fenda, à procura de alimento. A maré cheia dá mais possibilidades de chegar acima e por isso os ciclos de alimentação são parametrizados de acordo com esse factor.


Mesmo espécies naturalmente desconfiadas, e podemos citar as douradas, os sargos, quando são confrontadas com a presença de comida fácil, alteram o seu comportamento. Quem faz mergulho e costuma andar debaixo de água sabe que meia dúzia de ouriços partidos com uma pedra são o suficiente para atrair um cardume de peixe que vem aproveitar a benesse. Os mariscadores que fazem a apanha do perceve juntam à sua volta hordas de sargos e douradas que não desperdiçam os restos da sua faina. É impossível que alguém que trabalha sob condições tão penosas (e os nossos apanhadores de perceves são porventura das pessoas que mais sofrem fisicamente na sua actividade profissional!), não deixem cair mariscos para o fundo. São cracas, são mexilhões partidos, perceves arrancados com a sua arrilhada de aço inox. Num mundo em que tudo é difícil, ter comida à solta e disponível é algo que não se rejeita. E os peixes agradecem as sobras.


Das profissões mais duras do mundo: apanhador de perceves. O risco de vida é permanente.


Quando alguém critica o preço de 1 kg de perceves, certamente não estará a ter em consideração aquilo que foi necessário fazer para o ter na sua mão.
Tenho a forte convicção de que ao triplo do preço seriam mal pagos. Quando temos mar formado, conseguir meia dúzia de pinhocas de perceves para fazer um petisco com os amigos pode querer dizer que perdemos um fato de mergulho. Porque somos “chocalhados” sem cessar contra as pedras e a única forma de nos conseguirmos aguentar é mesmo estar colados a elas. Como as lapas! E isso rasga os fatos de caça submarina, pensados para oferecer conforto e possibilidades de respiração a quem os veste.
Pensem nisto quando estiverem a deliciar-se com um dos melhores mariscos que temos em Portugal, numa mesa de um restaurante. Nunca serão caros, e eu sei bem o que vos digo, porque sei bem que durante anos sofri como Cristo para fazer alguns quilos para os amigos.


Os locais onde os perceves têm melhor qualidade, onde são maiores e mais gordos, são também os locais onde nos são menos acessíveis. E por isso crescem.


O defeso natural que o mar por vezes provoca, impedindo os barcos de sair, dá um espaço para que a actividade do peixe se restabeleça, que volte ao que seria sem a nossa presença.
Tudo beneficia da ausência do homem, e isso dá bem conta do impacto humano na vida normal das espécies.
Os perceves e os mexilhões crescem, e por consequência os que se alimentam deles passam a ter mais e melhor alimento.
Até um dia em que as condições de mar nos permitam voltar a fazer aquilo que fazemos desde sempre: extrair do mar aquilo que necessitamos e também aquilo de que não necessitamos.
Porque não temos limites, nunca nos chega.




Os peixes vivem a passar pelos espaços vazios da nossa actividade predatória. Quando vejo traineiras a fazer o lançamento de redes de cerco com centenas de metros, a pescar cavalas e carapaus para fazer farinha de peixe (a incorporar nas rações para o gado), percebo que os limites que nos auto-impomos enquanto espécie, são muito próximos do zero absoluto.
Se tivermos oportunidade, acabamos com tudo. No fim, ficamos nós, cercados da devastação mais absoluta.
Quando temos um período de tempo em que as vagas não nos deixam sair, devemos entender que, pese embora involuntariamente, e contrariados, já estamos a ajudar a natureza a reencontrar o seu rumo certo, o seu caminho.
Pequenos detalhes, como o respeito pelas medidas mínimas, a libertação de tudo aquilo que não nos serve para comer, a utilização de tamanhos de anzóis que só por si selecionem as nossas capturas, já seriam grandes passos no sentido de ajudarmos quem tanto merece ser ajudado. Porque viver do outro lado será tudo menos fácil. Quando estamos no nossos barco temos abaixo da linha de água, sob os nossos pés, um mundo onde as facilidades não existem.


A quantidade de organismos a que os nossos peixes chamam comida é bem superior ao que nos parece. Zonas normalmente calmas não desenvolvem a mesma quantidade de vida que outras mais batidas e oxigenadas. Mas há sempre algo... e os peixes encontram.


O que os nossos peixes têm de fazer só para se manterem vivos é algo de surreal, de dificilmente entendível. E todavia, eles conseguem.
Sem nós, a vida marinha poderia reencontrar um equilíbrio natural em poucos anos.
Somos uma espécie altamente destrutiva. A noção de partilha de vida da humanidade com outras espécies é inexistente. Os temporais no mar são espaços de tempo que concedemos aos peixes, mas de forma não voluntária. Por nós, não existiriam. Porque sentimos a necessidade de ir mais e mais, fazer a recolha de algo, seja o que seja.
E isso é suficientemente mau para merecer um pouco de meditação por parte de cada uma das pessoas. E também de cada um dos pescadores que sai ao mar. Vamos lá fazer o quê?
Ver o mar como uma forma de obter algo, é retirar-lhe grande parte da dimensão que o meio aquático deveria ter enquanto forma de equilíbrio da nossa vida pessoal.
Ir para estar nele, e não para “trazer”. Esse deveria ser o sentido.



Vítor Ganchinho



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