Se o meu caro leitor pertence ao grupo de pescadores que desespera se não tiver toques na linha a cada 30 segundos, então a pesca do espadarte não é para si. Se a sua paciência lhe consentir uma espera de 3 horas entre cada picada, …continua a não ser para si.
E se por acaso durante 3 dias não acontecer nada, isso deve ser encarado como sendo normal. Quando pescamos a peixe grosso, devemos interiorizar que as probabilidades de insucesso são infinitamente maiores que qualquer minguada possibilidade de êxito.
A pesca do espadarte, a exemplo da pesca ao marlin, do atum, é algo que deve ser encarado numa perspectiva de “ir ao mar e tentar”, e não de “vou e garantidamente consigo”. Porque as hipóteses de não acontecer nada são enormes. E as despesas da cada saída são algo de muito real, algo que acontece de certeza. A pesca do espadarte enquadra-se nesta onda de “despesa garantida, …resultado mais que duvidoso”.
A paciência e saber esperar devem ser tão fortes quanto a força no braço, quando chega o momento de mostrar valentia.
O primeiro espadarte capturado à linha data de 1913, e foi Wiliam C. Boschen a conseguir tal feito. Aconteceu nos Estados Unidos, em Catalina, (nome de região com boa pesca, a qual, por exemplo, viria a motivar o lançamento de uma série de productos de pesca da marca Daiwa com essa designação).
Todavia, é a marca americana PENN International quem continua a ser número um mundial no fabrico deste tipo de equipamentos. De resto, os americanos sempre dedicaram a este nicho da pesca grossa uma atenção muito particular, concebendo canas e carretos de enorme qualidade, material que aguenta bem o esforço a que é sujeito por estes mastodontes do mar.
Em Portugal, o click da pesca grossa à linha aconteceu nos anos 50. Concretamente em 30 de outubro de 1954, quando Manuel Frade capturou um exemplar com 153 Kg, tornando-se no primeiro português a pescar um espadarte com cana e carreto, na Europa.
O assunto foi de tal forma notícia que acorreram ao nosso país dezenas de pescadores ávidos de conseguir repetir a proeza. Sesimbra, pelas suas incomparáveis condições, tornou-se o centro da Europa, o ponto onde convergiam pessoas de todo o mundo. O hotel Espadarte, na zona baixa da vila, foi ponto de encontro de todas estas pessoas. Este empreendimento hoteleiro, do empresário José Pinto Braz, veio a revelar-se o primeiro grande impulso para o desenvolvimento do turismo nesta zona. Começou pela pesca e alastrou ao turismo de praia e natureza.
O Big Game Fishing explodiu, e muito por acção de meia dúzia de interessados, como Arsénio Cordeiro, médico e professor catedrático, que estudou cientificamente a espécie e promoveu a sua pesca.
Sesimbra sempre teve este tipo de peixe disponível, pois as suas condições naturais a isso conduzem. A existência de zonas muito profundas, que dão abrigo, a par da quantidade assombrosa de alimento, (cavala, sardinha, carapau, lula), atraem estes gigantes dos mares.
Em tempos era a xaputa, peixe de côr cinza antracite que já foi comum, mas que entretanto desapareceu por alguma razão. Com efeito, a isca por excelência para o espadarte era este Brama brama, um mesopelágico de cor preta ou cinza muito escuro que vive a profundidades que podem ir até aos 1000 metros, o isco preferido para as tentativas de captura dos nossos espadartes. Dificilmente saberemos quais os motivos que levaram ao seu desaparecimento, até porque nem a razão mais credível acaba por não ter sustentação: suportam temperaturas de águas dos 12 aos 24ºC, o que as enquadra perfeitamente naquilo que temos regularmente. Até à década de 70 do século XX era uma das espécies mais abundantes, sendo comercializada nos mercados a preços baixos. Hoje, as postas de xaputa frita são apenas uma miragem, a quantidade de capturas é residual.
A xaputa, um estranho peixe que cresce até aos 70 cm de comprimento. |
Iscadas com um anzol de grande tamanho, e terminal de cabo de aço forte, estes peixes aguentavam vivos durante o tempo suficiente para que um dos muitos espadartes da baía o encontrasse. Não sei se têm ideia mas este peixe, que sobe durante a noite à superfície, era pescado nos anos 50 com... jigs!
Provavelmente não terão a noção de como é dura a pesca ao espadarte. Procurei imagens e encontrei algo de precioso feito pela RTP, muito melhor que aquilo que existe feito nos Estados Unidos. Vejam este filme, e disfrutem da sua excelência:
Clique no link para visualizar: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/a-pesca-do-espadarte-em-sesimbra/ |
Pescar espadartes nunca será o mesmo que fazer pesca a carapaus, pelo que as contingências das falhas, as “não pesca” que se sucedem em grande número, quer por ausência de toques, quer por perdas de peixes já ferrados, levaram a um esmorecimento dos interessados.
Não faltam espadartes, esses continuamos a tê-los, (eu vejo-os à superfície com frequência...), mas a possibilidade de não acontecer nada é real, e desmotiva. Depois, a falta de isco adequado também pesou no progressivo abandono desta actividade. Em 1957, foram somente capturados dois exemplares.
Voltou posteriormente em meados da década de 90 do século passado, mas numa perspectiva profissional, de captura comercial, não para ser fotografada e posterior solta, mas para alimentação humana. O aparelho é composto por um cabo onde são fixados mais de 1000 anzóis iscados, largados a uma profundidade compreendida entre os 120 e os 250 metros.
Bastante bem armado para o tipo de alimento que captura, o espadarte usa a sua espada, que mais não é que um prolongamento da mandíbula superior, para cortar e ferir as presas. Tem uma grande acuidade visual, podendo operar em ambientes de pouca luz. Apresentando um comportamento que podemos definir como “oportunista”, o espadarte alimenta-se tanto de peixes como de cefalópodes ou crustáceos, a profundidades tais que apenas um animal com bons olhos pode fazê-lo. Poucos de vós saberão que os espadartes se... arpoavam à mão, à superfície. Na sua incessante procura de comida, vêmo-los muitas vezes a deambular por águas calmas, com as suas características barbatanas dorsal e caudal fora de água. Eu levo algumas dezenas de avistamentos, e alguns quase posso jurar serem repetidos, tal a regularidade com que os vejo no mesmo sítio e à mesma hora do dia. Recordo-me de um caso bizarro, que vos conto de seguida:
Estava com três amigos finlandeses, avô, pai e filho. Estava a pescar bem junto a Sines, não muito longe da costa. O mais novo, com a santa inocência da juventude, dizia-me, do outro lado do barco: “Vitor, este tubarão não quer comer a minha isca!”...
Virei repentinamente os olhos para o outro lado e percebi que aquilo a que chamava tubarão, era nem mais que um espadarte, calmo, com cerca de 100 kgs, que passava a menos de 3 metros do meu barco. O filme que consegui fazer, é, como todos os filmes de espadartes, ridículo.
Tivesse eu sido informado da aproximação do bicho e teria porventura feito o melhor filme da minha vida com estes incansáveis animais. Fui procurar o telemóvel no saco, que estava dentro do compartimento do banco, e depois de tirar as luvas de pesca,... ficou apenas isto:
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Os espadartes apareciam no mesmo local onde ainda hoje é possível vê-los, na zona abrigada a sul da Arrábida entre Sesimbra e o Cabo Espichel. Há registos de 16 capturas acima de 100 kgs, a arpão, no mesmo dia, por uma embarcação de pescadores sesimbrenses. Fazer isto durante o dia, não deixa de ser espantoso e um bom indicador da quantidade que havia disponível. Este tipo de pesca tão sui generis praticou-se até aos anos 70 do século XX, sobretudo nos meses quentes de Julho a Setembro. Coincide de resto com os meses em que eu consigo mais avistamentos, e quantas vezes a menos de uma milha da costa. Tenho para mim que a razão de semelhante aproximação a terra terá a ver com a presença de imensos cardumes de cavala, que nesta altura do ano encostam à praia, com o objectivo de escaparem aos predadores. À época, era a xaputa que fazia as vezes de alvo para a longa espada dos espadartes. Havia muitas e estavam pouco profundas, o que ajudava sobremaneira a que existissem contactos imediatos com estes peixes.
As aiolas de madeira, pese a sua exiguidade de espaço, sempre mostraram estar à altura dos grandes duelos, pela estabilidade e segurança que proporcionavam. O facto de encontrarem muito alimento junto à costa, principalmente xaputas, uma das várias espécies de que se alimentam, estaria na base da passagem dos espadartes pelos mares de Sesimbra. Embora este peixe já fosse muito importante do ponto de vista económico, não apenas no século XX, com a pesca comercial, mas muito antes, como o comprova a existência de almadravas na Idade Média, grandes armações fixas montadas ao longo da costa sesimbrense, foi o Big Game Fishing que deu notoriedade a Sesimbra como um dos melhores locais para a pesca aos espadartes. Arsénio Cordeiro inovaria mesmo com a instalação de uma cadeira de pesca fixa dentro de uma aiola, na qual mediu forças inúmeras vezes com espadartes de grande porte. Atualmente, esta cadeira faz parte do espólio do Museu Municipal de Sesimbra, e poderá ser vista no Museu do Mar, a ser instalado na Fortaleza de Santiago.
Dizem os registos que o segredo de conseguir trancar estes peixes a arpão consistia em «detetar o peixe à superfície e aproximar-se devagarinho, de frente para ele». Quando este se encontrava a uma distância curta da barca, o arpoador tentava atingi-lo com o arpão, de preferência próximo da cabeça, de modo a deixá-lo mais fragilizado. A abundância era tal que quase todos os dias apanhavam, em média, seis exemplares. Assim que o espadarte era arpoado a captura era feita por dois homens numa aiola. Um assumia a função de remador, enquanto o outro tinha a dura tarefa de trabalhar o peixe. Normalmente a embarcação mãe levava quatro aiolas para o mar, e chegavam a operar todas ao mesmo tempo. Para alguns pescadores locais, conhecedores dos hábitos destes peixes, estava criada uma oportunidade de colocarem a sua experiência ao serviço do turismo, como foi o caso de Jonas Baeta Marques, convidado pelo empresário hoteleiro José Pinto Braz para comandar o seu barco. «Era habitual irmos para o “Graçone”, um banco de pesca localizado a cerca de 14 milhas a sul de Sesimbra, porque sabia que lá ia encontrá-los», diz. Saíam perto das sete da manhã e às vezes só voltavam ao fim da tarde. Aliás, na altura dizia-se que esta era a única zona do mundo onde se conseguia pescar espadartes à luz do dia, e isso foi determinante para atrair pescadores das mais variadas paragens. Mesmo sendo um acontecimento comum à época, a captura deste peixe era sempre um momento inesquecível, daí que cada exemplar era, invariavelmente, exibido no pórtico junto ao muro da praia, não raras vezes, ao lado de atuns e tubarões, a fim de serem fotografados juntamente com os pescadores. Para os autores da proeza, a ocasião simbolizava o triunfo do homem sobre um dos peixes mais admiráveis, dono de uma força descomunal, apenas vencido pelas modernas canas, carretos e linhas de pesca trazidas pelos praticantes do Big Game Fishing, ou pela coragem, persistência e astúcia dos experientes “lobos do mar”.
Contrariamente à pesca feita antigamente junto a costa, em que se esperava por avistar o peixe para lançar a linha, hoje a faina ocorre em áreas que podem ficar a cerca de cinco dias de viagem, e cujas profundidades podem chegar aos 4 mil metros. O método também é diferente. Nesta pesca, o palangre é lançado ao final do dia, permanecendo entre os 120 e os 250 metros abaixo da linha de água, e pode estender-se por mais de 110 quilómetros. Na manhã seguinte é efetuada a recolha do “aparelho”, que pode ter até 1150 anzóis, separados entre si por cerca de cem metros. A razão pela qual o “aparelho” é colocado a esta profundidade deve-se aos hábitos alimentares do espadarte que, para além de estar incluído no grupo das espécies designadas de grandes migradores, efetua migrações verticais diárias em busca de alimento, que podem ir até mais de 600 metros de profundidade durante a noite.
Um dos homens mais entendidos na matéria era João Conceição, também conhecido por “Zé da Calma”, que se iniciou bem cedo na arte de pescar espadartes. «Tinha 9 anos quando comecei a ir ao mar e, pouco tempo depois, tive o meu primeiro contacto com um destes “gigantes”», lembra. «Uma vez quase fiquei sem forças para aguentar a aiola perante a força do peixe». Às vezes ganhava o homem, outras não. Hoje, João Conceição governa o Parma, barco que se dedica à pesca do espadarte com palangre de superfície, na zona económica exclusiva nacional e nas águas internacionais próximas, chegando mesmo a operar a sul das Canárias. A viagem pode prolongar-se por vários dias ou semanas, e embora o navio esteja equipado com a tecnologia mais moderna, a experiência continua a ser um elemento fundamental para o sucesso da pescaria. «Temos de conhecer os hábitos dos peixes, as correntes, a temperatura da água, as luas e o tempo», revela.
Afinal de contas, os princípios básicos são os mesmos de sempre, quer para os espadartes quer para todos os outros peixes. É preciso saber.
Vítor Ganchinho