IR À PESCA NUM BARQUINHO... CAPÍTULO I

A maior parte de nós vai à pesca num barco que não excede os 10 metros de comprimento.
Digamos que é possível riscar um palito de fósforo, dar uma volta completa ao barco e chegar ao ponto de partida ainda com alguma chama.
O meu amigo Yuriy, um simpático e afável ucraniano de Odessa, nunca ousaria fazer isso. Ele sabe que tentar dar a volta ao barco dele com um palito de fósforo aceso iria …queimar-lhe os dedos.
Poderia condensar este tema mas penso que este assunto é de tal forma interessante para os leitores do blog que irei dar-vos o máximo possível de detalhes, numa sequência de três capítulos. O último será dedicado em exclusivo à área da pesca, a que mais nos interessa. Sim, porque também se faz pesca a bordo de um navio cargueiro.
Muitos dos dados que vos vou passar são informação normalmente classificada. Acreditem que muito do que vão ler aqui é algo reservado a poucos. Muitos destes elementos são guardados na penumbra, e não serão propriamente muito fáceis de obter da parte dos responsáveis a bordo.
Preparem-se para entrar, pela mão do blog peixepelobeicinho.blogspot.com, no estranho e hermético mundo dos navios de carga.




Para quem tem como termo de comparação o seu próprio barco, tudo isto é estranho.
Um navio de carga com 224 metros de comprimento e 34.89 mts de largura, é um colosso enorme. Custa-nos imaginar a verdadeira dimensão e números de semelhante embarcação, mas acreditem que é algo de espantoso.
Se os nossos barcos são aquilo que são, (e chegam perfeitamente para aquilo que fazemos), o Capitão Yuriy Poprotskyy, pese embora a gigantesca dimensão do seu navio, acha-o, ainda assim,… pequeno.
Registado no Chipre, construído em 2015, o NILEDUTCH ANTWERPEN faz tudo aquilo que se espera de um navio, e, nos tempos livres, quando ancorado, ainda serve de barquinho de pesca!
Assumo que tenha alguma estabilidade em dias de vento: afinal de contas o navio dele pesa, só em chapa, algo como 15.911 toneladas.
Consegue um máximo teórico de 15.5 nós de velocidade, (em condições ideais de ventos, correntes, carga, pode chegar aos 20 nós) sendo a média de percurso algo como 9.7 nós. Não é muito rápido, se comparado com os nossos barcos.
O meu semirrígido SPRINT, um Lomac de 6,40 mts (mais pequeno que o diâmetro do hélice que veem abaixo), equipado com um motor de 175 HP Honda, faz 42 nós.
Mas eu não consigo carregá-lo tanto: com espaço de transporte para 3506 contentores, para uma capacidade de carga total de 39.106 toneladas, este navio é um mundo, uma cidade flutuante que pode pesar, incluindo o peso bruto, água, combustível, tripulação, algo como 48.044 toneladas.
Não sei se têm ideia de que estes bichinhos, consoante a sua localização geográfica, e época do ano, podem transportar mais ou menos carga. Os limites não são sempre iguais.
Têm mesmo máximos legais diferentes para determinadas regiões do globo, Europa, África, Estados Unidos, água salgada ou água doce, etc.




O bunker de combustível do navio tem dois compartimentos distintos, um para óleo VLSFO pesado, suficiente para uma viagem de 49 dias, e que em termos de peso significa algo como 2200 toneladas.
O custo deste combustível é de 693 dólares USD por tonelada. Sim, algo como 1.524.600 dólares, ou seja... 1.397.524,59 euros. Mas determinadas áreas na Europa, por razões ecológicas, exigem que o navio consuma um tipo diferente de combustível, o óleo diesel, que é mais caro. E isso obriga a ter disponíveis mais 250 toneladas desse propulsor. E os valores sobem por isso acima de 1,5 milhões de euros de combustível. O “apetite” diário do um motor principal, é algo como 30 a 50 toneladas de combustível, respectivamente para desempenhos de movimento de 14 a 20 nós.
As velocidades desta “besta de carga” dependem dos requisitos do armador, da pressa de chegada, dos compromissos, das determinações portuárias e dos horários de cargas e descargas dos portos visitados.
Quando lhe referi que a responsabilidade de sair no meu barco de pesca a partir do Clube Naval de Setúbal era muito menor, e muito mais fácil, ele olhou-me nos olhos e disse-me algo que eu levei algum tempo a entender:
_ Mas Vitor, aquilo que eu estou a comandar é um bebé pequeno…os grandes navios de carga podem carregar até 24.000 contentores, e terão um consumo de 250 a 300 toneladas de combustível por dia!...

O Yuriy refere-se ao navio como “o meu barco”, e esse sentimento é um bom sinal da responsabilidade que sente por servir como capitão numa embarcação deste nível.
Na verdade, o proprietário é uma grande empresa alemã, de nome Hapag Lloyd, entidade que contrata uma tripulação para fazer serviços de entregas transcontinentais.
Se nós não temos dificuldades de maior em entrar numa marina, num ancoradouro, imaginem estar na ponte de comando de um navio com 224 metros de comprimento. Tudo fica bem mais pequeno. A capacidade de manobra é de tal forma reduzida que tudo passa a ser um problema.
Recordo-me de o Yuriy me dizer que desesperava para fazer as entradas e saídas em Lisboa, à conta dos barcos à vela. Porque, não obstante a sua menor mobilidade, ainda assim contam que o cargueiro se possa desviar deles. E são dezenas, a tapar todas as saídas...


Saída do Tejo em excelentes condições, a meio da tarde, com poucos barcos. Nem sempre é assim... por vezes passar por baixo da Ponte 25 de Abril é um martírio.


É estranho tentarmos transportar as nossas facilidades de condução dos nossos barcos para aquilo que são as condições habituais de um comandante deste tipo de navios.
Desde logo porque na melhor das hipóteses, eles, no seu posto de comando à ré do barco, já estão a 200 metros da sua proa.
Aquilo que podem avistar, ….e aquilo que podem mudar de rumo….é nada. A navegação por radar torna-se imperiosa, mas as possibilidades de “parar” um monstro destes são poucas.
Passo-vos uma foto para que tenham uma ideia daquilo que se vê, com um pouco de nevoeiro.




Conheci o Yuriy há um ano, numa passagem que fez pela loja de Almada, a GO Fishing Portugal. Na altura, pareceu-me uma pessoa muito alegre, simpática, cordial, de bem com a vida. Diria mesmo... muito feliz!
Voltei a vê-lo agora, dois meses depois de a guerra no seu país ter destruído o equilíbrio do seu ambiente familiar. Alguns traços de cansaço nos seus olhos denunciavam dias e noites mais agitadas, e não é para menos: o Yuriy tem ainda familiares em zonas constantemente bombardeadas. Não há forma de isso não se notar na face de um homem bom.




Continua a ser uma pessoa interessante.
Quando alguém é responsável pelo destino de um navio desta envergadura, não pode ser um homem qualquer. A capacidade de decisão, o saber de mar, o respeito que deve merecer a todas as pessoas que com ele fazem viagens transcontinentais, tornam esta pessoa alguém muito especial, alguém que queremos conhecer melhor.
Deus dá o frio conforme a roupa que as pessoas têm. Isso, neste caso, significa assumir sobre os ombros a tremenda responsabilidade de levar a bom porto semelhante colosso, cumprir as expectativas dos proprietários, dos clientes que a ele confiam as suas mercadorias, das companhias de seguros, dos fornecedores de equipamentos e víveres, etc.
Organizar a vida a bordo e zelar pelos destinos de semelhante unidade é trabalho impossível de ser executado por uma só pessoa, exige certamente uma grande equipa, mas no fim, encontramos sempre a solidão de um homem que decide, e que por isso não pode dormir muito. Porque falamos de um navio que custa muitos milhões de euros.




Se muitos de nós seguimos a vida preocupados com o custo da revisão do carro, do barco, imaginem o que será ter de tomar a decisão de mandar para doca seca um monstro destes. Cada dia de inactividade custa X, acrescido do facto de o navio não estar a produzir.
Por isso se tenta a todo o transe diminuir os tempos de paragem, tempos mortos em que a unidade não está a facturar.




Os contentores de mercadorias trazem e levam productos de e para todo o mundo. No fim, é a economia a funcionar, há pessoas que compram, há quem fabrique e quem transporte de um lado para o outro. Os valores envolvidos são astronómicos: os custos são altíssimos, mas os lucros também acompanham o investimento feito.
Depois de tudo, é a conjuntura global que conta, que serve de bitola ao preço possível. Para que tenham uma ideia, um contentor de pequeno tamanho, a unidade base, com 20” pés, teria como valor médio à importação da China a cifra de 1.700 euros. Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, esse valor subiu para 12.000 euros. Pelo mesmo serviço.




Dar a volta ao mundo possibilita passar por sítios incríveis. O nosso planeta é mesmo muito bonito, e oferece-nos momentos absolutamente espectaculares.
De picos de neve em regiões inóspitas, sem vivalma, a momentos em que a calma regressa, o sol se põe, e em que podemos acreditar que o dia seguinte será um pouco melhor.




De certeza o capitão Yuriy não terá nunca tempo livre em excesso, mas se lhe é possível parar por umas horas, então o hobby é pescar.
Para além de matar o tempo de espera, também acaba por abastecer a cozinha com peixe fresco.
É isso que iremos ver no terceiro capítulo, dedicado à pesca, aos peixes, e às intrigantes adaptações técnicas que são necessárias para que o peixe chegue ao convés.
Tenho a certeza de que irão ficar surpreendidos.
Da mesma forma que também acharão curioso o tema de amanhã, porque tem a ver com mar, com vida e com morte. Não percam.



Vítor Ganchinho



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