TER OS PARGOS DEBAIXO DO BARCO...

Fazer a gestão do peixe que se encontra sob os nossos pés é mais do que lançar o nosso jig até não haver mais picadas.
Essa é a forma de exploração básica e primária de um pesqueiro: pescar até não conseguir mais.
Os fundos rochosos mantêm-se mais ou menos os mesmos (há ainda assim areamentos, depósitos de areias que tapam de um lado, destapam do outro... entradas de manchas de algas que obrigam o pescado a movimentar-se), mas os peixes mudam.
Devemos entender o fenómeno à luz de entradas e saídas, de fluxos e refluxos de peixe que entra e sai da pedra. Aquilo que nos interessa é que os peixes se fixem, que passem a fazer parte do habitat de um determinado lugar.
As migrações de peixe estão dependentes de muitos factores, tantos que nos é francamente difícil conseguir abarcar na sua totalidade. É difícil conseguir entender de que forma se entrelaçam entre si, de forma a produzir um resultado final que, para quem está acima no barco, muitas vezes se resume a ter ou não peixe disponível para pescar. Mas é muito mais que isso.

Vejamos alguns dos factores a considerar:




A temperatura das águas: Sabemos que a temperatura do meio líquido influencia em muito a permanência de peixe num determinado local. Passámos há semanas de uma situação de águas frias, na ordem dos 14ºC à superfície, para uma outra em que estamos já próximos dos 18ºC.
Poderão pensar: “mas 4ºC fazem assim tanta diferença? “...
Sim, na verdade fazem toda a diferença. Nunca esqueçam que os peixes que pescamos são animais de sangue frio, e que o seu conforto depende directamente da temperatura da água. Se a temperatura sobe demasiado, passam por problemas de oxigenação, de incapacidade respiratória.
Se pelo contrário a temperatura desce demasiado, são numa primeira fase obrigados a reduzir a sua actividade ao mínimo, a guardar reservas de gordura para enfrentar esse frio. Numa fase seguinte, mudam de local, seguindo para zonas onde as termoclinas lhes sejam mais favoráveis.
Num e noutro caso, ficamos sem peixes para pescar.

A presença de predadores em elevadas concentrações: há momentos em que, mesmo os predadores que normalmente pescamos, os robalos, os pargos, etc, são forçados a abrir alas e a deixar o seu território de caça a outros.
Todos já sentimos isso quando, a pescar em bom ritmo e com o peixe bastante activo, de repente temos uma entrada de golfinhos no pesqueiro. O frenesim alimentar pára, os peixes recatam-se, se possível escondem-se em buracos nas rochas, procuram ficar debaixo de lajões, de solapas de pedra, e esperam que a ameaça passe. Tudo aquilo que são superpredadores, as tintureiras, os tubarões Mako, as orcas, mesmo os atuns de grande tamanho ou os lírios acima de um determinado peso, têm um efeito ameaçador que não é nunca negligenciado pelos peixes mais pequenos. A presença destes obriga sempre a cuidados redobrados, e tem como consequência imediata a rarefacção de toques. Os peixes a que chamamos presas, aqueles que pescamos com os nossos jigs e achamos bons, são obrigados a redobrar de atenção quando os seus parentes de maior porte entram na zona.
Recordo-me de estar a pescar nas Ilhas Selvagens, ao pargo, e trazer um para cima de um fundo a 105 metros. Teria, segundo as minhas estimativas, e atendendo à força e peso, algo como uns 3 a 4 quilos. A meia água, levei uma pancada forte que me rompeu a linha.
Andavam na zona lírios com... 70/ 80 kgs... viemos a ferrar alguns, sem a sorte de conseguir içar nenhum deles, por insuficiência das linhas de fluorocarbono, ...0.70mm...

Presença humana: nós nunca saberemos julgar até que ponto a presença de redes, arrastões, covos, afectam o comportamento do peixe que tentamos pescar. Se por um lado a presença de redes estáticas é algo a que os nossos peixes estão habituados, e a maior parte deles saberá evitar, também é verdade que não augura nada de bom saber que andou um barco a trabalhar toda a noite na pedra onde nós chegamos ao alvorecer, para pescar. Seguramente não será indiferente.
Há barcos a fazer arrasto, a largar redes de cerco com centenas de metros de comprimento, e isso retira-nos certamente possibilidades de sucesso.

Presença de isca: quantas vezes chegamos ao nosso local de pesca e deparamos com um espectáculo da natureza que é antes de mais uma dádiva dos céus, de enorme interesse para que se concentrem predadores, como por exemplo a presença de manchas de caranguejo pilado, cardumes de sardinha miúda, carapau juvenil, lulas de poucos centímetros, cavala às toneladas, etc. Tudo isto ajuda a que o pescado das redondezas, e outro que chega de longe, a acompanhar as bolas de isca, se reúna num ponto. Se isso coincidir com o local em que estamos é aparentemente bom, mas não esqueçamos que o peixe irá estar replecto de comida no estômago, e cercado de mais algumas toneladas de outras possibilidades de alimento. Também nestes casos pode ser mais difícil conseguir obter uma picada...

Excesso de pressão de pesca: nem sempre estamos sozinhos. Quando assim é, a gestão do local de pesca torna-se quase, ou mesmo impossível, porque deixamos de ter o menor controle sobre os acontecimentos. Os barcos cruzam-se sobre as pedras, o ruído dos motores incomoda o peixe, e a dada altura acontece aquilo que menos nos convém: o peixe vai embora, ou entoca, ou pior que isso, deixa de comer.
Quando me vejo nesta situação, eu que gosto de pescar em pedras isoladas, sem barcos nenhuns à minha volta, a fazer a gestão dos acontecimentos da forma que entendo mais rentável, acabo quase invariavelmente por sair, por ir embora. Não é possível pescar com gente a lançar âncoras, a levantar âncoras, correntes, a arrastar poitas pelo fundo, a fazer barulho. A pesca é algo muito mais subtil que aquilo que pensamos, nunca saberemos contabilizar os peixes que não picam, porque esses fazem parte da “não pesca”. De qualquer forma é bom pensar que resulta um comportamento idêntico à passagem de uma fanfarra, de uma escola de samba...
Também a pressão exagerada de pesca sobre um mesmo local conduz a resultados cada vez mais pobres. Os pesqueiros necessitam de repouso, os peixes precisam de ter os seus momentos de acalmia, de tempo para respirar. A vida dos peixes gira muito à volta da satisfação das suas necessidades alimentares, da gestão da sua segurança, da preparação do seu ciclo reprodutivo. Por fora deste triângulo que corresponde às suas tarefas básicas, sobra tudo aquilo a que já nos referimos acima. Será tudo menos fácil ser peixe. Por isso insisto em pescar em pedras pouco conhecidas, onde nunca vai ninguém. Se percebo que está um barco nas imediações, não visito a pedra, passo ao lado e vou para outra. Por isso mesmo tenho 450 pontos de GPS marcados, há sempre uma alternativa.

Fenómenos meteorológicos: a chegada de frentes frias, de ondulação significativa, de ventos muito fortes, provoca stress e obriga a reações. Em casos de fortes temporais, o peixe é forçado a procurar protecção, afundando para zonas mais calmas. Já aqui vos descrevi há tempos aquilo que acontece nos pesqueiros junto à costa, mais expostos a ondulações que podem chagar a muitos metros. A força destruidora de uma onda com 6 ou 7 metros é algo assustador. Nessas alturas, sair da costa e procurar fundos é algo mais que uma opção, torna-se uma obrigatoriedade.
Com a projecção de inertes, areia, cascalho rolado, pedras de grandes dimensões, o peixe sofre. Podem passar dias até que a situação volte ao normal. Muitas vezes, buracos que serviam de abrigo a inúmeras espécies, desaparecem, cobertos por tapumes de areia.
A tudo o peixe tem de saber reagir.

As marés: sabemos que condicionam a movimentação do peixe, mesmo em pedras em alto mar. Consoante tenhamos ou não altos coeficientes, diferenças significativas entre o ponto máximo da preia mar e a baixa mar, assim teremos mais ou menos corrente.
Quando muito fortes, estas correntes mudam o posicionamento dos cardumes, obrigam a reajustamentos. É certo que o momento de maior corrente corresponde quase sempre ao pico de actividade do peixe. A corrente traz comida, mostra as fragilidades dos menos aptos, e os predadores esperam-na porque sabem tirar partido dela.

Situações pontuais com comida disponível: na sequência daquilo que foi dito acima, queiram reparar no seguinte: um temporal arranca comida das pedras, destapa muitos seres apanhados desprevenidos, desenterra das areias muitos anelídeos e bivalves. Tudo isso é comida fácil que tem de ser aproveitada.
Os peixes não podem ignorar aquilo que fica à sua disposição. Um caranguejo que se deixou entalar entre a rocha e uma pedra rolada, camarões que ficaram esmagados pelas pedras, tudo isso é disputado ao milímetro por todos aqueles que escaparam da ressaca e voltam a seguir, quando começa a estabilizar.
Como de costume, os primeiros são os que têm mais oportunidades.
Neste ambiente de stress, de abundância de comida fácil, lançar as nossas amostras pode ser pouco menos que inútil. Cercados de comida por todo o lado, os peixes estão muito menos receptivos a aceitar algo diferente daquilo que têm à sua volta.




As possibilidades que temos de seduzir um bom exemplar circunscrevem-se pois a momentos em que conseguimos estar no local certo, à hora certa, ultrapassando dados menos favoráveis como aqueles citados acima. Os resultados serão piores ou melhores em função da quantidade de factores negativos que tivermos de vencer.
De tempos a tempos, temos uma situação mais favorável, e a pescaria de sonho acontece.
Aquilo que registamos na nossa memória é o sucesso, são os dias de êxito. Digo-vos que no meu caso, porque tenho um espectro de interesses muito largo, consigo facilmente ir muito além da quantidade de peixes pescados. Também me interessam os dias em que faço menos peixes, porque na maior parte dos casos são precisamente esses os dias que me ensinam, que me obrigam a pensar, a encontrar soluções.
Quando tudo é mais difícil, quando aparentemente estamos a pescar num deserto de vida, isso significa que algo se passou e é muito interessante tentar perceber o porquê. Não imaginam como é positivo ser capaz de encontrar respostas.
No meu caso, isso é muito mais importante que pescar peixe. O facto de ter informação que posso gerir torna-me melhor pescador, e faz com que eu consiga, mesmo em dias aparentemente impossíveis, encontrar sempre uma forma de dar com os peixes. Eles não se evaporam, se não estão de um lado, estarão noutro. Se soubermos ler o mar, encontramo-los.


Não são necessários muitos peixes para que possamos dar-nos por satisfeitos com uma saída de pesca. Basta que tenhamos um ou outro lance mas interessante, algo que torne esse dia memorável por um ou outro detalhe.


Aquilo que gostaria de chamar a atenção é o seguinte: o fino equilíbrio que reina entre as espécies, entre a quantidade de presas e o número de predadores, é muitas vezes alterado por nós, humanos. A pesca profissional, por definição, captura tudo o que pode. Não queiramos nós ser iguais porque isso é politica de terra queimada.
Se é evidente que não procuramos peixes miúdos, por falta de interesse desportivo, já não podemos dizer o mesmo dos seus predadores, que têm para nós um factor de motivação acrescido. A questão é saber quando parar, quando abdicar de continuar a pescar peixes que poderão, por este ou aquele motivo, estar mais fragilizados, numa situação pontual.
Há que ter em conta momentos como a reprodução, em que a criação das ovas obriga as fêmeas a prescindir dos cuidados mais elementares. Todos sabemos que é mais fácil conseguir um ataque de um peixe que transporta dentro de si milhares de razões para se lançar sobre uma amostra, uma isca.
Fazer a gestão dos ecossistemas é responsabilidade de cada um, e isso faz-se respeitando esses momentos de maior sensibilidade dos nossos adversários.
Entender o mar, saber estar, não levar aos limites a quantidade de capturas possíveis, é um estado superior de alguém que está muito para além dos quilos de peixe que traz para casa.
Pensem nisto: um pesqueiro deserto de vida, leva meses a recompor-se. Se o explorarmos até ao fim, durante meses não haverá nada para pescar, nenhuma razão para voltar a esse lugar.
Se deixarmos alguns peixes, eles serão capazes de atrair outros, e de manter um número de activos suficiente, estável, capaz de nos voltar a dar alegrias nas semanas seguintes. Há muitas formas de o fazer, de gerir, podemos passar um número de vezes limitado pela pedra, duas, três, podemos visitar outros locais nas imediações, e podemos optar por outras zonas de pesca, alternando o esforço pedido aos nossos amigos peixes.

Depende de nós ter algo para pescar.



Vítor Ganchinho



Artigo Anterior Próximo Artigo

PUB

PUB

نموذج الاتصال