COMPREENDER A PESCA

Se há quem lhe atribua uma complexidade superlativa, de impossível adivinhação, também há quem tente fazer da pesca lúdica uma actividade básica e intuitiva. Por vezes demasiado.
Enganar um peixe que tem vontade própria não pode ser sempre fácil, ou não haveria peixes. Se continuam a existir, isso quer dizer que a dado momento, algo da nossa estratégia de pesca pode e deve falhar.
Porventura no meio dos dois extremos estará a verdade de uma modalidade, a pesca à linha, que tem tanto de técnico e enigmático quanto de simples e apaixonante.
Quando observamos um perito em acto de pesca, alguém que dedicou a sua vida à modalidade, tudo nos parece simples, fluído. Porque os gestos parasitas, aqueles que prejudicam a boa execução dos movimentos, não existem. Tudo está treinado à exaustão e isso, a perícia gestual que só os grandes campeões têm interiorizada, faz do exercício de enganar um peixe algo de extremamente linear. É simples de ver mas …não necessariamente fácil de executar. Simples é uma coisa e fácil é outra, bem diferente. 
Os milhares de horas gastos a aperfeiçoar movimentos conduzem indubitavelmente a uma facilidade que é enganadora. Só percebemos isso quando tentamos desconstruir passo a passo aquilo que os nossos olhos veem. Gesto a gesto, frame a frame. Aqueles que são bons, vistos à lupa, ao segundo, são mesmo muito bons. Entendem o que estão a fazer, porque estão a fazer, e porque sabem o resultado final dos seus gestos, executam-nos com determinação, com certezas. Têm experiência.
Sabe-se que a antecipação daquilo que vai acontecer, o timming da mordida de um peixe, aquilo que esse peixe irá fazer a seguir, a forma de contornar as naturais dificuldades que irá impor-nos, a velocidade e força da sua defesa, ajudam sobremaneira a ajustar, na perfeição, os gestos que ganham, que vencem. Os que pescam mais e melhor sabem o que vai acontecer. Antecipam…quase…tudo o que irá passar-se.


Um pargo bonito, que fiz com isca viva.


A pesca, numa perspectiva de recolha de peixe do seu meio natural, é um mero exercício de lançar e recolher. E isso é simples.
Aquilo que já não é tão simples é a dose de intuição de que cada bom pescador dispõe, em acto de pesca. Aí, contam as memórias, as vivências, o seu passado, tudo aquilo que conduz a um registo vencedor.
É verdade que não se ganha sempre, ou seriamos forçados a assumir que, quando se é bom pescador, o peixe não tem qualquer possibilidade. Isso significaria, por absurdo, que em vez de irmos ao mar com as nossas canas, iriamos apenas passar certidões de óbito a uma caixa cheia de seres vivos. Como a natureza nos prova, diariamente, que não é bem assim!

A pesca, enquanto processo complexo que engloba uma infinidade de factores, desde as particularidades específicas da espécie de peixe procurado, às condições de mar, ondulação, vento, corrente, visibilidade e temperatura das águas, taxa de oxigénio dissolvido, etc, às condições do próprio pescador, (uns dias mais bem disposto que outros, ou em melhor forma física, mais descansado ou não, com o equipamento mais adequado ou não), dificilmente poderia ser um mero exercício de matemática. Não ganhamos sempre!
Porque advém de uma enorme mescla de factores a possibilidade de sermos ou não bem sucedidos. Nem sempre os factores que intervêm na pesca se conjugam de forma a permitir o sucesso, a captura. Podemos ter nas mãos o melhor equipamento, o melhor barco, as melhores amostras/ iscas, e até estar no melhor sítio de pesca do país, mas se nesse dia estiverem 40 nós de vento, o mais provável é que não consigamos sequer pescar. Estaremos porventura mais preocupados em conseguir estar de pé no barco, sem cair, em sobreviver, que em lançar uma linha.
Aquilo que faz com que se atinja o sucesso é a maior ou menor conjugação de factores positivos, do nosso lado. Se quiserem uma imagem simples, peguem num extraordinário campeão de atletismo, alguém que corre os 100 metros em 9.58 segundos, o Usain Bolt, e façam-no correr na mesma pista, com a mesma multidão de pessoas a incentivar, mas com galochas de borracha até ao joelho, cheias de água. E vão ver que ele nem consegue fazer 12 segundos….um tempo acessível a milhares de atletas de segunda linha.
Pescar é também isso, conjugar factores que nos permitam ter êxito. Muitos factores. Quantos mais conseguirmos colocar do nosso lado, mais próximos estaremos de ter êxito. E isso implica estarmos informados, sermos pessoas cultas, também.
Podemos fazer pender a balança mais para o nosso lado, se contarmos com materiais de melhor qualidade. Sem dúvida. Boas linhas são e serão sempre melhores que más linhas. Mas a capacidade de adaptação muitas vezes supera a qualidade do equipamento.
O mar muda a cada dia, a cada hora, até a cada instante. Em cada situação, aqueles que conseguem pescar melhor são sempre os que melhor se adaptam aos problemas que a natureza coloca, nesse momento. E friso isto: NESSE MOMENTO!
Por outras palavras, a pesca é muito o “aqui e agora”, e não aquilo que já foi. Podemos ter pescado caixas de peixe naquele local, em Dezembro, mas em Julho, não está lá nada e não iremos por isso pescar nada. Se o aceitarmos sem nos interrogarmos, não iremos evoluir. Mas se nos questionarmos e formos capazes de entender as razões pelas quais não pescámos nesse dia, já estaremos a ganhar competências para futuramente conseguirmos decidir bem.
Hoje em dia, o contexto de pesca é de tal forma exigente, (menos peixe, mais difícil, mais pescado) que obriga a um foco muito direcionado para os bons resultados. Quem não souber pescar, ou souber pescar pior, …pesca menos.


Este equipamento ligeiro deu-me neste dia um pargo monstruoso...


E chegados aqui, teremos de falar de harmonizar os diferentes aspectos que contribuem para conseguirmos, ou não, pescar. Dificilmente um dia teremos tudo do nosso lado. Estar no sítio certo, na hora certa, com a cana e amostra certa, e lançar para o sítio certo, é algo que podemos fazer. Mas não pescamos sozinhos, da mesma forma que não se dança um tango a solo. O peixe tem de estar lá e tem de ter condições para fazer a sua parte. E até pode estar e isso não ser suficiente! Então e a hora da maré? E saber se o peixe comeu antes? Ou se não obstante tudo estar perfeito, …temos uma rede atravessada no pesqueiro?!
Não dependemos apenas de um elemento para obter o sucesso. E ainda bem que assim é….porque a pesca seria extremamente aborrecida se a cada lançamento correspondesse um peixe. Nem acredito que estaríamos a falar de pesca hoje. Não haveria peixes.
Se somos bons em algo no nosso país, é na nossa capacidade de improviso, em detrimento da capacidade de planeamento de um alemão, por exemplo. Eles ganham muitas vezes, porque estudam, organizam e preparam tudo para isso. Mas entram em curto-circuito quando algo não decorre conforme o plano.
Conheço-os bem porque tenho amigos alemães. Nós não somos assim, não planeamos. Mas perante uma situação de alteração das condições de mar, é mais natural que sejamos nós portugueses os primeiros a entender o que devemos fazer para conseguir resultados. Falamos de flexibilidade. Falamos de ajustar uma técnica ao que acontece diante de nós. Os pescadores portugueses são capazes de o fazer, de se adaptar, de se “desenrascar” quando nada parece fazer sentido. No fundo, mudam, são flexíveis, em função das necessidades.
Não há necessariamente apenas uma técnica correcta, uma única forma e possibilidade de pescar um peixe. Cada um de nós inventa um pouco quando produz as suas montagens, e lança as suas ...crenças. Em cada um de nós existe um pescador sem falhas, dono de uma ideia que, antes de ser testada, era boa e imbatível. Mas a seguir vem a realidade, crua, dura, e mostra-nos que afinal teremos de inventar algo mais. E isso é a pesca! É uma possibilidade de melhoria infinita, um desmontar e voltar a montar de equívocos, de certezas absolutas que redundam em quase fracassos. Ou fracassos totais!
E um dia, com um pouco mais de possibilidades e factores do nosso lado, conseguimos um bom peixe. E colocamos mais um tijolo no muro de certezas que nos serve para lançar as bases de algo mais. E voltamos a inventar. Eu chamo a isso transformar informação em conhecimento.
O blog “peixepelobeicinho.blogspot.com” é muito isso.




Se há pessoas que atribuem poderes mágicos a determinadas amostras, a toneiras, ou iscas, essas pessoas estão ainda a anos luz da verdade da pesca. Delegam nas mãos de alguém que produz, ou em algo, um producto, uma isca, uma cana, atributos que devem advir da sua experiência pessoal, mais do que dos seus equipamentos. Pescar bem é dominar a área teórica, entender os porquês e os princípios científicos, e ao mesmo tempo….EXECUTAR BEM! Porque de nada vale saber o que se está a passar na água, debaixo dos nossos pés, se a seguir não conseguirmos capitalizar a nosso favor toda essa informação.
Do outro lado do mundo, no mundo aquático delimitado pela linha de superfície do mar, alguém lá em baixo está a pensar em tirar partido de uma isca que lançámos. É debaixo desse espelho de água que tudo conta, são os peixes que efectivamente mandam. Cumpre-nos entendê-los.
Se a nossa intuição estiver certa, algo vai morder essa amostra, esse jig, essa isca, julgando que a sua vida não corre perigo por isso. E corre.


Pargo legítimo com 5 kgs pescado pelo meu grande amigo Gustavo Garcia, filmado para o Canal Caza Y Pesca, de Madrid. Um abraço, Garcia!


A aprendizagem e a reflexão, para aqueles que são mesmo bons, é constante, permanente, e termina com a morte do pescador. Aprendizagem teórica e prática, porque uma não vive sem a outra.
Pela parte que me toca, irei continuar a reflectir, a pensar mais e melhor nos dias em que a pesca me foi mais difícil. Esses são os dias bons, aqueles em que não consigo ter a inteligência suficiente para entender o que se passa na água, debaixo dos meus pés.
Felizmente, dias desses, ainda tenho alguns. É nesses dias complicados e duros que mais consigo evoluir, e não nos dias em que a cada lance me entra um peixe grande na caixa.
E porque tudo muda, porque o mundo muda, porque os peixes e a pesca mudam também, não há certezas definitivas, há sim interrogações constantes.

Meus senhores: isto é …pensar a pesca. O blog é isto...



Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. José Pombal21 julho, 2022

    Bom dia Vítor: resolvi pegar-lhe na palavra neste seu artigo porque aborda uma questão que me tem dado que pensar. A perícia, natural ou adquirida, do pescador, que pode e muitas vezes faz a diferença entre o sucesso e o fracasso ou a mediania. Criei-me na beira do Mar e ele impôs-se-me de tal maneira que me fiz pescador. Eu e um meu irmão. E quis o destino que ainda agora vivamos juntos esta paixão, embora tenhamos divergido nos gostos, ele mais de bóia e pião aos sargos com iscos naturais e eu mais de corrico e amostras artificiais. E foi esta circunstância que nos fez reflectir porque, quando eu pego na cana de bóia ou ele me acompanha num corrico, raras são as vezes que me ganha no corrico e, as mais das vezes, perco com ele aos sargos com bóia ou pião. Porquê, se estamos no mesmo local, na mesma maré e com pescas idênticas. Só pode ser o maneio das artes de pesca, a perícia a que o Vítor tão bem se refere neste artigo. É a experiência que faz o mestre ou então, como em todas as actividades humanas, nasce-se com uma habilidade natural, um talento que rapidamente se desenvolve. Talvez seja esta a explicação porque é que dois irmãos, criados e pescando na beira do mesmo Mar, desenvolveram gostos e aptidões diferenciadas dentro da pesca.
    Por último um conselho porque o Vítor, para além de pescador que sabe do que fala, é também um escritor com talento. Não escreva artigos tão extensos como este. Os seus leitores aguentam sete ou oito horas debaixo de frio e vento ou calor tórrido por um peixe, mas, na sua maioria, terão dificuldade em terminar a leitura de peças tão extensas. Eu sou um leitor inveterado e tive alguma dificuldade. Um abraço e continue a pescar e a escrever. Não o posso acompanhar na pesca mas acompanho-o no blog. Sou um seu leitor atento. Crítico, como já deve ter reparado, mas muito atento.

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    1. Boa tarde José Pombal

      Obrigado pelo seu comentário!
      A perícia não é algo nato, é adquirida, trabalha-se ao longo dos anos e resulta da experiência e prática pessoal da pessoa.
      A intuição de pesca não, essa é natural e, ou se tem, ou não. Eu conheço pessoas que gastam muitos milhares de euros em equipamentos, têm tudo o que é bom, e pescam zero.
      Porque não têm intuição, nada do que fazem resulta do seu saber, do seu conhecimento. Fazem por ver os outros fazer. Copiam. Compram muito material, de alta qualidade, que lhes serve de nada. O material bom só ajuda quem tem boas mãos e ainda mais... intuição natural.
      A habilidade para manejar uma cana, lançar, recolher linha, desferrar um peixe, aprende-se. Eu ensino a fazer isso a centenas de pessoas, todos os anos. Sou guia de pesca.
      A sensibilidade de saber o que fazer com uma cana já não, vem de nascimento com a pessoa. O talento de entender o mar, de o saber pensar, não é algo que seja distribuído a todos em porções iguais. Também o entusiasmo com que se pesca pode ser muito ou pouco, e não é algo que se possa treinar. E é precisamente esse gosto, nato, que arrasta tudo o resto atrás.
      Se não gostamos, se não sentimos "borboletas no estômago quando temos a possibilidade de pescar/enganar um peixe" não estamos dispostos a sofrer muito para aprender a fazer.
      De resto, é a motivação, o entusiasmo, que nos empurra para uma ou outra técnica. Eu faço muitas coisas, pesco indistintamente um pargo de 10 kgs ou uma garoupinha de 100 gramas, com o mesmo entusiasmo. Crio os meus próprios handicaps, dificulto de tal forma as coisas que por vezes ouço da minha filha mais nova algo como isto: " ...mas pai, ...tu queres ou não pescar o peixe?!"...
      Ela sabe que pescar por pescar, meter peixe numa caixa, não tem interesse para mim. Ou é muito difícil, ou não vale a pena. Por isso pesco tão fino, ( tente fazer um pargo capatão de 11 kgs com uma linha PE 0.6, com resistência máxima de 5.8 kgs e entende o que quero dizer...). Ou pesco com técnicas que dificultam ao limite, a raiar o impossível, algo que poderia fazer com muita facilidade, de outra forma. Pescar douradas com jigs é uma delas.
      Porque saio a pescar uns 4 dias por semana, em média, tenho pouco interesse em congelar peixe, e por isso ofereço muito do que pesco, quase tudo o que não vá consumir nesse próprio dia.
      O peixe para mim tem o exacto valor do lance. Por isso os devolvo à água muitas vezes.
      Preciso que continue a haver, para eu ser capaz de imaginar uma forma ainda mais difícil de os pescar.

      Sobre os artigos e a sua extensão: é como sai....
      Na verdade, eu nem devia estar a escrever nada. Quero publicar um livro, algo pensado, com tempo, e que seja um marco importante na pesca do nosso país. E, porque tenho muito mar nos olhos, muitos milhares de horas a tentar entendê-lo, sei que devo ter algum conhecimento útil para divulgar, para quem eventualmente o quiser ler.
      Mas estou "empatado" com este compromisso de escrever todos os dias, ...que me roubam energia e tempo para ir mais longe.
      Bem sei que vivemos num país de Facebook, de uma foto e uma frase, mas eu não sou isso.
      E não vou mudar...

      Abraço
      Vitor

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