Fazer uma fractura exposta do fémur com derramamento de sangue, perder o telemóvel, desferrar um bom pargo ou um robalo de 6 kgs à entrada para o xalavar, são coisas a que nos resignamos. Não nos mata. Lançamos outra vez.
A noiva fugir-nos quando já estamos no altar será sempre pior que um pontapé nas costas, mas tolera-se, não vem mal ao mundo. Arranja-se outra. Bater de frente contra um camião pode nem ser fantástico, mas ainda assim, leva-se. Há hospitais que têm excelentes condições para ter pessoas engessadas durante meses e meses. Todavia, ter alguém a ligar a perguntar-me se eu tenho em stock canas de surf-casting para lançar chumbadas de 700 gramas, ultrapassa tudo. Isso sim, é grave!
Interrogação máxima: será que ouvi bem?
A convicção, a forma genuína com que a pessoa indagava do outro lado do telefone da possibilidade de adquirir uma cana com essas características era tal que, segundo a segundo, aos poucos, deixei de pensar que era brincadeira.
Pensei para mim próprio: “para que quer alguém uma cana que lance chumbadas de 700 gramas”?....que linha pode aguentar isso, que braço pode ser tão forte que consiga sequer levantar do chão semelhante carga?
A ser possível, a que distância quererá lançar? Foi de testa franzida e cheia de pontos de interrogação que tentei perceber o sentido de semelhante pedido. Porquê e para quê?! Obviamente, interessei-me pelo assunto.
Sou dado a casos estranhos, sinto que cada um deles pode ser tema para uma boa reportagem, mais um bom e estranho assunto para o blog, (o que eu faço por vocês…) e fui em frente.
_ Que tipo de pesca quer fazer com essa cana ?
A resposta não se fez esperar: “ eu quero ir ao robalo!”…
_ Mas com chumbadas de 700 gr, quer pescá-los, ou quer …matá-los?!....
Havia algo que não batia certo e quis saber tudo. Perguntei-lhe se podia encontrar-se comigo na GO Fishing em Almada e discutir o assunto. E marcámos para as 16.00h.
Chegou uma hora atrasado, esbaforido, com uma molhada de canas nos braços. E uma caixa de cartão com pressupostos acessórios. Os meus olhos não queriam acreditar no que estavam a ver….
_ Estou farto de ser enganado nas lojas de pesca! A cada sítio que vou gasto uma fortuna e venho de lá sempre sem aquilo que quero.
Olhando ao nível do equipamento, ocorreu-me vagamente que ninguém merece sofrer tanto. Nem os lojistas, que vendem, nem o nosso pescador, que compra. Chamemos-lhe João.
_ João, vamos ver se conseguimos ajudar. Diga-me que tipo de pesca faz habitualmente, para eu ver se posso dar-lhe alguma sugestão.
_ Olhe, eu costumo pescar ao robalo. Utilizo este material que trouxe, para você ver se está tudo bem.
_ E costuma pescar muitos?
_ Não! Nunca pesquei nenhum, mas já vi pescar.
Espalhou os “tarimbecos” todos no chão da GO Fishing, e a Helena nem queria acreditar... |
O João pertence àquele tipo de pessoas a quem os bancos normalmente não concedem um cartão de crédito dourado. E que não queremos ver a perguntar as horas às nossas filhas.
Mas sendo um pescador, é um dos nossos, e por isso, tentei mostrar-me prestável.
_ João, você costuma andar com as suas canas desmontadas? Nunca perde as secções?
_ Sabe, eu na verdade tenho vindo a descobrir pedaços de canas pelas praias, outras são as pessoas que deitam fora, e eu guardo tudo.
Não satisfeito com a explicação, perguntei-lhe:
_ Mas estão aqui dois tubos que me parecem ser em alumínio…que raio de canas são estas? Em alumínio?!....
_ Eu explico: estes tubos eram de remos de barcos, das pagaias. Achei-os. Mas eu tenho uma táctica que não falha, vou metendo tubos dentro uns dos outros, passo fita isoladora larga por cima, e faço a cana com a medida que quero.
Comecei a pensar que as minhas canas Daiwa e Shimano, que me custam fortunas, talvez possam ser dispensáveis. E dizia ele:
_ Olhe, eu agarro num tubo, no mais grosso, e ponho o carreto no sítio que me dá mais jeito.
Antes sequer de eu lhe perguntar algo, e lendo a minha cara de espanto, já me estava a responder:
_ Fixo o carreto com duas braçadeiras de serrilha…..
Isto é o arsenal de canas do João. À direita podem ver os dois tubos que também servem de canas, dois “sensíveis” tubos em alumínio….que entram um dentro do outro. |
_ João, vamos ver….você deve estar a fazer algo mal para nunca ter pescado um peixe na sua vida. Será que a isca está certa?
_ Disso eu tenho a certeza. Eu li no pacote, na caixa, que era para robalo.
_ Mas que raio de isca é que você compra para robalo, que nunca lhe deu um peixe?! A isca é fresca?
_ Compro iscas boas, da Rapala. Eu penduro da chumbada de 140 gramas vários bonecos. Aliás todos os que tinha …perdi-os. Um burgesso de um pescador, que por sinal se insurgiu contra mim, lançou contra a minha linha e no fim, arrastou aquilo tudo e foi com água até à cintura, com uma faca, e cortou tudo! Fartou-se de gritar comigo e a seguir foi-se embora. Perdi os bonecos todos….
Pareceu-me entender que os ditos “bonecos” eram nem mais que amostras: _ João, esses bonecos eram …o quê?.....
_ Eram bonecos de plástico, a imitar peixes. Pendurei três da linha, com atilhos, e perderam-se todos. Ficou lá tudo.
Não estava em mim a tentar perceber que técnica poderia conciliar uma chumbada de 140 gramas e três amostras, as ditas Rapalas. Falta-me saber muito sobre pesca, mas não desisti e tentei ir mais longe:
_ Mas João, talvez a sua estratégia não seja a melhor. Atendendo aos resultados …não deve ser. E se você tentar fazer spinning ao robalo?
Ele olhou para mim com ar de espanto, e contestou:
_ Para mim, aquilo que resulta é lançar muito longe, onde estão os grandes. Queria mesmo era um grande! Eu lanço as minhas chumbadas longe, a centenas de metros, excepto com este carreto que me venderam em Lisboa, este preto.
Olhei para o carreto de trolling, para corrico de barco, e tentei entender como poderia alguém lançar com aquilo. Perguntei-lhe a quantos metros conseguiria lançar.
_ Com este? Lanço a três metros.
_Como assim?!
_ A maior parte das vezes a chumbada até vai muito longe, mas a linha parte-se logo dentro da cana. Por isso comprei uma linha que aguenta 50 kgs de carga. É esta cor-de-laranja, a que está aqui no outro carreto.
Mas nem sempre me lembro de levantar esta pecinha de arame aqui...
Consigo imaginar o perigo de alguém estar próximo de alguém que se esquece de abrir a alça do carreto para lançar chumbadas com uma “cana” de surfcasting. Os meus olhos abriam-se de espanto, e a cada revelação eu entendia a dimensão do trabalho que me estava reservado. Fazer do João um pescador seria tarefa árdua...
O xalavar dá perfeitamente para peixes até um palmo, dizia-me. |
Comecei a pensar seriamente se eu seria capaz de resolver aquela questão de maneira definitiva.
_João, e estas boias amarelas, o que faz com eles?
_ Eu não pesco à boia. Não gosto! Quando lanço, deixo de as ver na água.
Não fazia sentido para mim que as boias de pião, com um tamanho descomunal, não fossem visíveis. Ainda por cima com cores tão fluorescentes…
_ Sabe, a ideia que tenho é que o sistema de pesca à boia é ruim. Ainda por cima comprei logo uma dúzia delas. Tenho ainda umas sete.
As outras cinco perdi-as, porque a chumbada leva-as para o fundo e partem-se.
_ A chumbada?!....
_ Sim , eu ato-as ao chumbo de 150 gramas. Vai tudo lá para baixo….atado. Pesca mal...
Despejando a caixa de cartão onde guardava uma imensidão de artigos de pesca “impingidos” por alguém sem escrúpulos, que se fez valer da inocência da pessoa. |
Avancei para a situação dos lançamentos das chumbadas de 700 gramas:
_ João, vamos ver se nos entendemos. Você tem a noção do esforço que seria necessário para lançar uma chumbada de 700 gramas? Tem ideia da força, da resistência dos materiais, do estrondo que essa chumbada faria no pesqueiro, do estado das iscas ao embaterem na água, etc?
_ Eu sei dizer que tenho de ser capaz de lançar um peso grande, para evitar que a chumbada saia do sítio! Não quero que venham gritar comigo, que o chumbo roda e vai ter com as chumbadas deles.
Vou à pesca para trazer peixe, não é para vir irritado com ninguém. O pessoal gosta muito de vir confrontar-me!
Como explicar a alguém que uma cana de pesca é um compromisso entre a capacidade de propulsão de uma baixada com isca, ou uma amostra, e a necessária leveza e sensibilidade para sentirmos os toques dos peixes.
Lançar um peso de 700 gramas implicaria uma cana que, não sendo de impossível construção, seria algo de estranho, um…”pau de vassoura” horrível.
Querer utilizar semelhante “poste” para pescar ao robalo, é exigir muito de tudo e todos: da pessoa, da cana, do carreto, da linha e ….do robalo.
Pedi-lhe encarecidamente que deixasse de pensar em semelhante cana.
_ João, e os anzóis? Você sabe empatar bem os anzóis? Quer que eu ensine?
_ Não é preciso. Claro que sei! Eu dou nós até aquilo não sair. Eu explico...
E pegou num troço de nylon e num anzol e mostrou-me a sua incrível técnica de empate, baseada num princípio técnico que me parece válido: fazer uma dúzia de nós cegos bem apertados à haste do anzol, até caber.
Na verdade, ali na sala, sem lançamentos, sem isco e sem peixe a puxar, os anzóis não caem da linha….
“Ponho o carreto no sítio onde me dá mais jeito”... |
_ João, mas eu acho que no dia em que tiver uma picada, esses anzóis vão embora, vão desaparecer cravados na boca do peixe, (ele nunca pescou um peixe na vida…) não seria melhor um outro tipo de …empate?
_ Para quê?! Até agora nunca houve um peixe que me levasse o anzol. E olhe que lanço a centenas de metros, porque vejo a linha sair toda do carreto, até ao fim. Bom, podem nem ser muitas centenas, mas pelo menos uns 20 ou 30 metros são, que eu lanço com força!...
Vítor Ganchinho
The Twilight Zone o0. Mais um bom momento :)
ResponderEliminarBoa tarde Paulo Fernandes
EliminarAparecem como o faria D. Sebastião, em manhãs de nevoeiro, e de repente, sem darmos por ela, temos uma história para contar. Confesso que esta pessoa me levou ao desespero, por ver que não conseguia explicar-lhe que uma cana de surfcasting que lance chumbadas de 700 gramas é algo parecido com uma vara olímpica de saltos. E muito provavelmente com as mesmas características em termos de distância alcançada: 6 metros.
A sensibilidade de um "porrete" que lança 700 gr deve ser a mesma de um guarda do Corpo de Intervenção a fazer flores de papel...com um cassetete.
Enfim, ....
Abraço
Vitor
Dá-me pena ver essas pessoas que gastam algumas dezenas ou mesmo centenas de € em material que pouco ou nada serve. E o pior de o venderem é nem explicarem para que serve ou como se utiliza. Trabalhei algum tempo na decatlhon no setor da pesca e não fazia ideia da quantidade de gente que quer ou tenta iniciar a pesca como um hobby. Optam sempre pelos conjuntos ja feitos e tentam fazer a escolha pela cabeça deles... Quando perdem a vergonha e pedem um pouco de informação ... Quando existe quem a queira dar.... raramente optam pelos materias que tinham escolhido à priori. E dúvido que os resultados sejam sequer comparados .... Felizmente já há muita informação para quem se quer iniciar. Cada vez mais , a margem de comprar material errado é menor... E na minha ótica todos ganhamos com isso...
ResponderEliminarBom dia André Matos
EliminarObrigado pelo seu comentário. Efectivamente acho que tem toda a razão.
Penso que é responsabilidade de todos nós dar uma ajuda, contribuir para que essas pessoas que pretendem iniciar-se, não o façam da pior forma, decidindo sobre a compra de materiais quando na verdade não estão em condições de o fazer.
A pesca é algo de muito abrangente, tem muitas disciplinas, pode ser feita de várias formas. Mas daí até prender boias de chumbadas pesadas, ...ou de "atar" amostras a uma chumbada, ( os tais....bonecos)...vai um passo muito grande.
Também é verdade que algumas pessoas têm uma noção mais apertada daquilo que devem fazer, outros pura e simplesmente atiram-se para a frente e inventam aquilo que não pode ser inventado.
Na GO Fishing Portugal, é garantido que a assistência técnica é dada, e que a pessoa sai a saber fazer nós, a saber construir uma montagem, e com uma noção daquilo que pode esperar fazer nos primeiros dias de pesca.
Nós ensinamos. E temos sempre muito gosto em levar essas pessoas a uma sessão de pesca experimental, para que possam pescar de forma efectiva. Pescar é algo que implica aprendizagem contínua, mas das nossas mãos saem a saber fazer o indispensável para conseguir ter êxito, e a trazer algum peixe com eles.
A responsabilidade de quem vende os productos é máxima e nós assumimos.
Também por isso temos este blog.
Abraço!
Vitor