TENTAR UM MARLIN... IV

Não será por acaso que em terra estava hasteada a bandeira vermelha: estavam ondas de cinco a seis metros, com vento de 50 km/h, contra.
Em Portugal, ninguém sairia ao mar num dia daqueles. Mas eu estava de férias e não podia desaproveitar uma hora que fosse.
O meu barqueiro arrancou em cavalinho, batendo em todas as vagas possíveis e imaginárias. Fiquei fortemente convicto de que estava desejando vagas ainda nada mais altas e mais fortes.
Quando me fartei daquela exibição desgarrada, e por força de dois nós cegos que me deu à coluna, encostei-me a ele e disse-lhe ao ouvido, muito baixinho: “ eu tenho barcos, aquilo que estás a fazer com um motor de 100 HP, eu faço com 400 HP. Para além disso, tens 33 anos de vida e eu conduzo barcos há 36. Ainda não tinhas nascido já eu fazia isto. Entendes?!”… A partir daí voltou à calma, amansou nas suas pretensões de me querer impressionar com as suas habilidades, e o resto da viagem até ao DCP foi boa.
Nunca entenderei a razão pela qual as pessoas não se levantam mais cedo, se querem começar a pescar mais cedo. Resulta uma parvoíce perder todo o tempo do mundo em terra e depois querer compensar isso com uma deslocação rápida na água.
Ainda mais com ondulação contra. As ondas ficam por lá, mas o barco parte-se todo. Esta gente não pensa!
A noção de horário e compromisso deles é algo muito vaga. Podemos marcar uma saída de pesca para as 7.00h da manhã, e o nosso barqueiro aparece às 8.00h a dizer que vai comprar gasolina, para sairmos às 9.00h.
E porque finalmente ainda falta comprar água e mangas, saímos às 10.00h. Não têm qualquer noção de ciclos de alimentação do peixe, de pescar ao raiar do dia, de utilizar as marés. Isso não existe. Para eles é pescar quando se chega ao local e o mar decide o que quer dar nesse momento.
Mas são assim em tudo, concentram actividades que poderiam ser espaçadas no tempo, sem incomodar ninguém. Dou-vos um exemplo: neste país, todos assumem o seu direito a buzinar. Buzinam muito. É certo e sabido que a buzina foi inventada para avisar de um perigo, uma desgraça. Por isso se buzina nos cortejos dos casamentos. No Senegal buzina-se para cumprimentar, para protestar, e para mostrar que se tem carro. Buzinam como se não houvesse amanhã, ofendem-se, gritam, e protestam. Na maior dos casos sem qualquer razão, sem qualquer proveito, porque uma fila parada é só isso e não vai andar mais depressa por se buzinar, e no fim, estarão desgastados e exaustos. Mas buzinam até lhes doer o dedo indicador. Acredito que seja mais para exercerem o seu poder de reclamar, e sobretudo para mostrarem o seu carro. Muita gente os tem, mas numa cidade podemos contar pelos dedos as viaturas que poderiam circular nas nossas estradas sem atrair o olhar de toda a gente.
Já ter uma piroga de madeira é um luxo cada vez mais raro. Não que não façam falta, mas porque as madeiras de que são feitas, vindas do sul, das florestas de Casamance, se tornaram de tal forma raras que o corte das resistentes árvores foi proibido.
Hoje, fazem-se em fibra de vidro, o que desvirtua por completo o conceito. Os poucos barcos de fibra que existem estão concentrados nas imediações de Dakar, e pertencem a quem tem algum desafogo financeiro. Mas na sua quase generalidade, são embarcações adquiridas em enésima mão.
Os GPS não funcionam e as sondas não trabalham. Junta-se a fome com a vontade de comer.
Uma outra vertente tem a ver com embarcações de fibra fabricadas em estaleiros locais, normalmente propriedade de franceses que por lá fazem a sua vida. Fabricam barcos e vendem-nos aos locais, ganhando o seu dinheiro.


É nestas pirogas que a maior parte dos pescadores faz a sua vida.


A dada altura estávamos a procurar um ponto onde seria pressuposto haver um DCP. Se quiserem e em tradução livre, um dispositivo de concentração de peixes. O barqueiro insistia que o aparelho indicava um determinado ponto.
Eu achava bizarro que houvesse uma boia a uns 200 metros. Sugeri o local, mas segundo eles, não podia ser. Desde logo porque teriam de ser eles, locais, a descobrir o ponto. Mas era. Vindo de 1500 metros de profundidade, um cabo com boias agarradas dava uma referência à natureza e isso era o suficiente para gerar uma cadeia alimentar naquele local. Que terminava nos atuns gigantes e nos marlins. Um dos muitos pirogueiros que faziam daquele local a sua casa (todos os dias pescam no mesmo sítio, utilizando isca viva capturada no local) tinha as mãos envoltas em panos.
Se considerarmos que pescam um marlin de 300 kgs com as mãos, sem mais que uma linha de nylon, entendemos porquê. Esta gente pesca um e a seguir tenta outro. Os braços aguentam porque estão feitos a isso. É difícil para nós entender o quão é duro fazer uma coisa dessas. Aguentar um bicho com centenas de quilos apenas com a força dos braços, e costas, não é para todos. E todavia fazem-no quase todos os dias. Estes pescadores especializados em pesca grossa trabalham com o mínimo possível: um anzol, uma linha e as suas mãos.
Iscam com um peixe voador, ou qualquer outra coisa que exista disponível no local. Os meus jigs mais ligeiros permitiram conseguir isca com fartura, de boa qualidade. Falamos de peixes de 2 a 2.5kgs, o suficiente para tentar um Marlin, que não apareceu.
No dia anterior tinham feito um….e dois atuns.

A isca viva são sempre peixes capturados no local, normalmente os ditos “peixes-banana”, alguns tipos de carangídeos, e as albacoras, atuns que são particularmente apreciados pelos marlins.
Assim que são capturados, é-lhes colocado um anzol de tamanho generoso, (no meu caso um Daiwa Saltiga tamanho 6/0) e lançados à água.
Em caso de toque, não se ferra, deixa-se que o predador tenha tempo para engolir a isca. E então sim, o…”comboio” arranca.


Estes peixes têm cerca de 2 a 3 kgs e são bons para iscar aos atuns, que na zona podem ultrapassar os 400 kgs de peso. A este nível, é possível iscar com peixes de 10 kgs, mas aí, com anzois maiores, e linhas robustas, por exemplo nylons de 2mm. Ou seja, algo como …“zero-grosso”. Nada garantem, mas já são um bom princípio.


O Senegal é um país pobre, mas as coisas mudam: por força do conflito com a Ucrânia, e da consequente dificuldade em importar gás da Rússia, pode eventualmente vir a ser um dos maiores fornecedores de gás para a Europa.
Têm gás dos dois tipos possíveis sendo um deles da melhor qualidade. Isso muda uma nação. E eu sei que eles têm fé que isso possa vir a ser decisivo para o desenvolvimento do país.
O meu amigo Mohamed é já uma visita habitual de Portugal. Ter-lhe-ei enviado bilhetes para nos visitar, pelo menos, umas 15 vezes. E quase outras tantas o levei aos Açores, meu local preferido de férias quando estou por cá.
Aqui no continente, costumo utilizar os seus dotes de mergulhador em apneia em meu proveito. Faço dele o meu corvo cormorão, não para que me apanhe peixe como fazem os asiáticos, mas mandando-o para fundões de 40 metros, onde me filma as pedras e aquilo que por lá existe.
Mando-o lá para baixo para me trazer informação.


Uma brutalidade de apneia, uma enorme capacidade de executar tarefas de força em regime anaeróbico, submerso a dezenas de metros. Mohamed Sow, uma máquina de mergulho. Um bom amigo.


Ele desce facilmente a 50 metros, mercê de uma brutalidade de apneia. Desde os 11 anos que mergulha quase todos os dias, por vezes mais de oito horas. Ganha a vida assim.
Cheguei à cronometrá-lo sem respirar acima de cinco minutos e estou certo de que ultrapassa os seis minutos. Isso dá-lhe para tudo.
Quando brinco com ele a dizer-lhe para me ir fazer imagens das pedras onde eu costumo pescar à linha, ele sabe que o faço por estar seguro de que as suas capacidades lho permitem. Sei que ele tem “folga” para muito mais.
Terá sido nos seus trinta e poucos anos dos melhores do mundo, mas nunca o chegou a saber. O Senegal organiza muito poucas competições internas e dada a escassez de recursos financeiros, zero actividade a nível global. O conhecido Renzo Mazarri, ex campeão do mundo de caça submarina, com muito peixe capturado aos 50 metros, um dia, de visita ao Senegal, teve oportunidade de mergulhar com ele. Ao fim de umas horas voltou ao barco e disse-lhe: o teu ritmo de descida é perfeitamente insuportável!
Pois é esse “corvo marinho” que tenho como amigo e me prega partidas como esta: comprámos mangas e levámos no barco. À falta de uma faca (!) tivemos de inventar formas alternativas de comer as ditas. Era o que faltava que eu não fosse capaz de comer a dita! Ora vejam o malandro:

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Estes peixes, quando mais pequenos, até aos 10 kgs, também podem ser utilizados para iscar aos marlins.


As albacoras têm a particularidade de, ao serem lançadas à água, não perderem tempo a nadar na camada superior de água, mas sim afundarem de imediato, buscando refúgio na profundidade.
Dá-se então cerca de 30 a 40 metros de linha, a profundidade a que é expectável poder acontecer um strike de um marlin quando se pesca junto aos DCP`s.
Quando se pesca sem chumbo, apenas uma linha e anzol simples, é particularmente interessante que o peixe/isca vá de imediato para baixo, pois a força da corrente desloca-nos muito depressa, reduzindo o tempo de permanência da isca na zona ideal de pesca.
Truques.

Amanhã continuamos.



Vítor Ganchinho



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