A PESCA DA SARDINHA - VERSÃO SENEGALESA

Quem pesca à linha, quanto mais não seja por curiosidade, por uma questão de querer saber como é capturada a sardinha que utiliza como isca nos seus anzóis, acaba por tentar perceber quais os métodos utilizados.
Conhecemos por isso algo sobre a forma como se processa a pesca de cerco à sardinha em Portugal.
As embarcações que a fazem, com motores a gasóleo, dispõem de guinchos e aladores que permitem que o trabalho pesado de recolha das redes possa ser hoje feito com recurso a meios quase exclusivamente mecânicos.
Nunca será um trabalho de escritório, não se processam propriamente papéis, mas dados os meios técnicos disponíveis, está mais facilitado.
Nem todos os pescadores profissionais têm porém essa sorte. Há quem tenha de fazer todo o trabalho utilizando apenas a força dos seus braços.
Enchi-me de coragem e fui passar uma manhã a reportar a pesca da sardinha no Senegal, um país onde a pesca é feita a braços.
Confesso-vos que vim de lá esgotado, sem fôlego, só de ver aquilo que aquela gente tem de fazer à mão, com a força dos seus músculos.
Vamos ver hoje no blog como acontece uma traineira cheia de sardinha.


A tripulação pode chegar às 60 a 70 pessoas. Todos não são demais para a dureza do trabalho a desenvolver.


A tripulação é recrutada por entre a imensidão de gente disponível no cais. A preferência vai para gente jovem, a qual não tem apenas a vontade de ganhar alguns míseros cêntimos pelo seu trabalho. É algo mais que isso: é a exibição pura de força. É a competição com os seus vizinhos da aldeia.
Há momentos em que o dinheiro que se ganha com uma actividade é um mero pretexto para justificar o desafio que supõe a sua execução. E neste caso, o factor exibicionista dos músculos sobrepõe-se a tudo o resto.
Foi isso que eu vi, foi isso que registei em vídeo e em fotos, e é isso que vos trago hoje. Espero que gostem, porque está aqui muito trabalho, e alguma temeridade.
Os donos das pirogas não são muito condescendentes com perdas de tempo, com a distração dos seus “empregados” da tarefa de recolher redes, e por isso tentam evitar ao máximo a captação de imagens. Conseguir convencer alguém a encostar o meu barco mesmo junto às pirogas já é tarefa difícil, acreditem. Quis não entender alguns comentários feitos na língua nativa, o wolof, da qual ainda assim tenho algum vocabulário, e me permite perceber coisas como “ o melhor é saírem daqui”, ou “não se aproximem demasiado, estão aqui a mais”...


Acabamos por ser um factor de distração, mesmo que não o queiramos...


Os mestres senegaleses são facilmente reconhecíveis. São gordos.
Explico-vos porquê: se aqueles que puxam as redes são obrigados pela natureza do seu esforço a gastar todas as suas energias, e por isso a manter os músculos rijos como aço, o chefe de operações beneficia de um estatuto de excepção que o resguarda de qualquer tipo de esforço que não seja gritar com todos. Grita quando as coisas estão a correr mal, para corrigir os problemas “técnicos” da pescaria, e grita
quando estão a correr bem, para que reparem nele, e entendam que sem a sua prestimosa coordenação, aquela boa pescaria não seria possível.
O homem esgota-se a reclamar, a barafustar, e os que estão a seu lado, ou se resignam e aceitam as instruções, por mais surrealistas que sejam, ou da próxima campanha não serão escolhidos, por…insubordinação.
Pelo contrário, os “puxadores de redes” são rapazes novos, na casa dos 20 a 30 anos, e que obviamente estarão no auge das suas capacidades físicas. Ajuda ter muita força, porque tudo o que fazem ali é aplicar esses dotes.
Tentem adivinhar quem é o mestre…..dou-vos uma pista: está equipado de verde.






As sardinhas concentram-se em zonas mais carregadas de fitoplâncton, seu alimento preferencial. As águas verdes e rasas (podemos ter 20/ 25 metros a dezenas de quilómetros da costa) ficam cheias destes peixes, que têm o “mau” hábito de vir à superfície “borbulhar”. Denunciam a sua presença. A partir daí, é montada uma operação de pesca que consiste em largar redes da piroga mãe, rebocadas por uma outra unidade, com poucas pessoas, e que descreve um circulo à volta do cardume. Com este cercado, as pontas da rede juntam-se e dá-se início ao extenuante trabalho de alar as redes. E é aí que entram os jovens da “força”.
A organização dos elementos na piroga é feita por uma ordem muito bem estruturada, com os mais novos a meio, zona onde será pressuposto fazer-se mais força durante mais tempo, ficando os mais velhos nas pontas, a sujeitar a rede de forma a que não aconteçam acidentes. Os aspirantes a puxadores de redes, miúdos de oito a dez anos, também são úteis: são “convidados” a lançarem-se à água, para fazer barulho à superfície e obrigar as sardinhas a permanecerem no fundo, encostadas à rede.
As que saltam na linha de água e passam as boias para o lado de fora são …sardinhas perdidas.





As pirogas, longas de três dezenas de metros, trabalham aos pares.


À medida que as redes sobem, puxadas palmo a palmo por esforçados rapazes das aldeias locais, o zeloso mestre sobe o tom de ameaças e represálias.
Também ele tem de prestar contas em terra, e tudo o que não seja uma piroga cheia, é um fracasso. Depois de tudo, ou é o dono da barcaça e quer ganhar dinheiro com a faina, ou é responsável perante alguém que ficou em terra, e tem contas a prestar. O seu salário e a sua futura contratação dependem dos resultados que consiga obter.
Daí as altercações, os gritos e a vontade de ver o cavername da piroga tapado de sardinha. E também daí a pouca vontade de ter mirones a desestabilizar o trabalho dos seus subordinados...


Aqui podem ver o “chefe da banda” a dirigir os trabalhos, a partir da proa, à esquerda.


A sardinha chega a estas zonas vinda de sul, e com ela vem tudo aquilo que come sardinha. Os pargos lucianos, as corvinas, os peixes-vela, as cobias, e mesmo os marlins, não largam estes cardumes. É facilmente perceptível a razão de haver peixe grosso por fora das redes (até por dentro, quando se deixam surpreender pelo cerco…) pois no meio de toda a confusão instalada, há sempre sardinha moída, sardinha morta que parte a meio pela pressão do peso do cardume e cai aos bocados pela malha fora, e mesmo alguma que salta à superfície e tenta atingir o fundo. Tudo isso é comida fácil para os predadores, que esperam as dádivas de cada lance de redes. Tudo aquilo que acontece no mar pode ser motivo de aproveitamento por parte daqueles que assumem a função de predadores.
O cuidado que temos de observar quando queremos lançar um jig neste espaço é máximo! Caso tenhamos o azar de enfeixar um anzol na rede, ….vamos ter à perna os já de si pouco amistosos mestres da piroga.
Imaginem eles terem de parar os trabalhos para retirar o nosso jig...




Aqui, a rede já está muito próxima da superfície, e o momento mais ansiado aproxima-se: vai finalmente saber-se qual o resultado do lance.
Para um lado recolhe-se a rede, que será de novo lançada logo que possível, e para o barco de apoio, vazio, vai todo o peixe capturado.
Há um momento particularmente perigoso, que coincide com a fase em que a rede com o peixe está em cima. Esse momento é o da junção das duas pirogas.
Dada a possibilidade de contacto, podem acontecer esmagamentos de pernas ou braços. As forças envolvidas não são de negligenciar, e qualquer acidente pode assumir contornos de gravidade.
Não esquecer que este cenário de pesca se passa a dezenas de quilómetros de terra, onde, por azar, não há hospitais em todas as povoações.
Diria que as unidades de saúde não existem em quase nenhuma, a não ser que se acredite muito nos curandeiros locais. Um azar pode ser fatal.
Por isso mesmo, dois jovens como o que podem ver na foto abaixo, tratam de manter em tensão duas varas que afastam as embarcações, de forma a que nunca se toquem.







Os acidentes de percurso acontecem, e nesses casos, todo o esforço de toda a equipa é perdido. Numa das pirogas que visitei, aconteceu um desastre que comprometeu a manhã de pesca: a rotura de uma rede, numa pedra do fundo. A rede foi recuperada, mas com poucos quilos de sardinha. O grosso do cardume conseguiu passar pelo buraco e escapar. O desânimo foi total, porque todo o trabalho feito foi em vão.
Porque não adianta chorar sobre leite derramado, foram iniciados logo ali no local os procedimentos de reparação da rede. Para conseguir algo que justifique as despesas de contratação de pessoal e combustível, pressuponho que nesse dia a pesca tenha acabado para aquela gente… muito tarde.
Vejam o filme em que é facilmente perceptível que a rede tem um enorme rasgão a meio.




Esta rede rebentou, presa numa pedra, e abriu um enorme buraco por onde escaparam as sardinhas.


Mostro-vos abaixo uma sardinha local, a famosa yaboy, é um peixe que cresce até aos 31 cm, para cerca de 230 gramas. Bem maior que a nossa sardinha, portanto.
A espécie é a Sardinella aurita, ou no dialecto local “yaboy”.
O valor culinário não se assemelha sequer de perto ao nosso, mas nós sabemos isso. Eles não, pelo que a comem de toda a maneira e feitio.
Para o peixe de algum calibre é um isco muito utilizado, e de facto muito eficaz. Comparando com a nossa sardinha, diria que é maior em tudo. Mais rija, maior tamanho, e também mais carregada de espinhas. SE para a comermos não tem interesse, a sua superior consistência torna-a mais indicada para a pesca à linha.
Tudo come sardinha, desde o pargo ao atum, ao marlin, etc.




Adquirir uma remessa destes peixes para isca viva não é difícil, pressupõe apenas que se avance direito a uma piroga de pesca no preciso momento em que esta está a acabar o seu trabalho de levantamento de redes, e agitar um balde e umas notas de CFA`s. Garanto que com algo parecido a 1 euro já se traz uma quantidade de muitos quilos, vivas e a saltar.




Para comer, um autêntico monte de espinhas, mas para pescar sim, muito boas. Consistentes, rijas e a aguentar muito tempo no anzol.


Ao final da tarde, as pirogas retornam a terra. O calor sufocante que se faz sentir acaba por tornar inviável a permanência do pescado de um dia para o outro, pois o seu estado de conservação seria mais pobre. Processa-se a venda na areia da praia, e espera-se pelo dia seguinte, para uma nova jornada de pesca.
Afinal de contas, não muito diferente daquilo que fazem os nossos marinheiros. A vida do mar é dura e não é para todos...


O repouso das embarcações. Porque não há cais fixo, todas ficam no mar, com âncoras de areia. Saem no dia seguinte.




Vítor Ganchinho



2 Comentários

  1. António José Lopes14 setembro, 2022

    Muito obrigado pelas suas partilhas. Podemos verificar o quanto a vida é difícil para essas gentes do mar sem condições.
    Devoro todas as publicações do blog.

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    Respostas
    1. Boa tarde António Lopes

      Temos tempo para tudo. Estamos a acabar aquilo que foi escrito sobre uma passagem no Senegal, que mais não é que trazer ao blog uma realidade diferente, algo que nos sirva de contraste, para que saibamos entender qual o nosso posicionamento em assuntos de mar.
      A seguir vamos ter algo sobre lulas, porque estão aí e em força, com exemplares muito bonitos.

      Os robalos vão seguir-se, porque estamos na altura deles.
      Mas cada coisa a seu tempo. Aqui deste lado, quem faz a edição é o Hugo Pimenta, ele é que decide sobre a oportunidade de passar um ou outro artigo.
      O meu compromisso é o de escrever todos os dias, para cinco minutos de leitura a quem gosta de ver o outro lado da pesca de mar, no fundo...dos baldes de peixe miúdo que saem nos blogs, todos os dias.

      Abraço
      Vitor

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