O rigor de um país no planeamento e a boa execução das suas obras públicas torna a vida das pessoas mais fácil, mais simples. O tecido social torna-se mais productivo, a sociedade beneficia imenso com isso.
Ter uma boa base de desenvolvimento em termos de infraestruturas básicas, estradas, hospitais, escolas, serviços públicos, segurança, acaba por se traduzir em facilidades que, a não existirem, acabam por, a jusante, prejudicar enormemente tudo e todos.
Até nas saídas de pesca. Quando temos portos de pesca seguros, bem concebidos, confortáveis, bons locais para deixar os barcos ancorados, a motivação de sair a pescar é outra. E a náutica desenvolve-se.
Não que não seja possível fazer boas pescas a partir de terra, mas sejamos francos, ir pescar dentro de um barco para o largo, para o mar alto, é mesmo outra coisa. O acesso a pesqueiros mais remotos, menos pescados, abre possibilidades de capturas de peixes que, de outra forma, seriam apenas uma miragem.
Esta série de artigos que vos apresentei sobre o Senegal dá-vos um contraste vincado com aquilo que temos, mostra-vos a diferença vincada que ainda existe entre um país africano, com todo o seu potencial de melhoria, e o nosso país, europeu, o qual quer queiramos quer não, já está num outro patamar.
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Trouxe-vos a estas páginas a realidade nua e crua de um mercado de peixe de África, onde tudo nos parece ruim demais. Mas posso também dizer-vos que quando visito países do norte da Europa, sinto essa diferença mas com sinal menos para o nosso lado.
Aí, nós portugueses já não somos afinal tão bons, ficando a anos luz daquilo que é feito noutras latitudes. Já aqui vos falei de uma peixaria de Roterdão onde entrei, e que a princípio me pareceu ser uma normal e esterilizada loja de centro comercial.
A limpeza, a arrumação do peixe, a disposição dos expositores eram de tal forma perfeitos que posso assegurar-vos que em pouco mais de meia hora seria possível retirar o peixe e substituir por …jóias e relógios!!
Zero cheiro a peixe, condutas de ar perfeitamente controladas. Respiramos o ar que a organização do estabelecimento quer que respiremos. Nesses locais somos recebidos com etiqueta, com cortesia e a indispensável elegância comercial. Também com o ar sério de quem faz da distribuição de peixe a sua profissão, e sabe que tudo o que estamos a ver foi exaustivamente planeado, e testado. A factura emitida espelha uma organização exemplar, tem um número de contribuinte, e isso significa que essa entidade procede ao pagamento de impostos para o Estado desse país. Um lugar onde tudo é perfeito excepto …o peixe.
Esse, tem os dias necessários ao cumprimento de todos os trâmites que o trazem da piscifactoria do país onde é produzido, por vezes em trajectos de dois a três dias, até à loja, onde é apresentado sob a forma de filetes embalados. Sem espinhas, sem imperfeições.
Organização meticulosa mas atendimento comercial, frio. Cabe-nos a nós, e só a nós, decidir se queremos entrar na loja, ir a um lugar onde a higiene é absoluta, exemplar, onde somos recebidos por alguém que vende peixe de bata branca e gravata. Ninguém nos irá pressionar para adquirirmos algo.
Não é isso que encontramos quando aterramos em África.
Sente-se a anarquia do salve-se quem puder, a falta de capacidade de investimento, e exiguidade de meios, a banca de madeira feita em três tempos e quatro pregos.
É o improviso, o “desenrascanço”. É o mundo do comércio, mas virado do avesso, com alguém a puxar-nos insistentemente o braço para olharmos para aquilo que tem para vender. Nem que seja um peixe perfeitamente podre.
O que valorizamos? Responder positivamente a um conceito de modernidade, de perfeição organizativa? Ou vamos pelo coração, e respondemos ao apelo do pregão aflito, necessitado, e procuramos ajudar quem nada mais tem que aqueles argumentos para fazer a sua vida?
Vamos por uma empresa na sua verdadeira acepção da palavra, europeia, ou “aguentamos” saber que a pessoa que está à nossa frente nunca viu uma factura na sua vida? E que provavelmente esteve a dar de mamar ao filho enquanto embrulhava meia dúzia de amendoins dentro de um pacotinho de papel. Essa pessoa depende da venda da sua banca para dar de comer à sua criança. E não tem mais que as suas mãos para se poder valer.
Se vamos por esta via, sabemos que perdemos algo em termos de higiene, e também que algo pode falhar, afinal de contas o processo de fabrico, de armazenagem, de distribuição tem tudo para correr mesmo mal. Paira uma dúvida no ar, ….”e se fico doente com alguma coisa estranha…?”….
Mas ganha-se em muitas outras coisas, e se me permitem, entre elas destaco o calor das relações humanas, o valor de um sorriso verdadeiro. Quanto vale um sorriso que vem do fundo do coração?...
Aquilo que esta gente tem para vender é aquilo que o seu país dá, o que se pode encontrar na natureza. São as frutas, as sementes, as folhas de plantas medicinais.
E nisso são ricos, porque sabem o que nós não sabemos. O divórcio dos portugueses com as suas raízes, o contacto com a natureza fez perder conhecimento com séculos de existência.
Mas no Senegal a ligação à terra ainda existe.
Passo-vos um excerto desse artigo:
“O sol castiga o corpo com temperaturas altas, e isso tem de ser compensado com a ingestão de líquidos.
Os corpos dos homens que ali trabalham, são cobertos por uma camada de gordura, para que a pele não abra chagas. Qualquer ferida é um tormento, porque não fecha.
A gordura a que me refiro, é a manteiga de karité, obtida a partir de um fruto, a noz de uma árvore africana. Esta manteiga é obtida por pressão, por esmagamento do fruto e tem particularidades que a tornam indispensável à indústria cosmética e farmacêutica.
A árvore karité apenas existe na costa ocidental de África, numa região muito delimitada. O grande produtor deste tipo de noz é o Burkina Faso sendo a recolha feita por mulheres, agrupadas numa associação de cerca de 3000 senhoras, que se ocupam da comercialização por grosso. Estas mulheres obtêm assim um importante e decisivo salário, numa região inóspita e pobre. O lucro da venda é utilizado no pagamento de cuidados de saúde, alfabetização, furos de água, etc.
Sendo um produto artesanal, é muito rico em fitosteróis, vitamina A e E, e é pois utilizado como anti-inflamatório pelos homens que passam os seus dias meio submersos no lago, enquanto protector de raios UV, protegendo-lhes a pele.
A manteiga de karité é ainda utilizada na alimentação, e na indústria do chocolate, em substituição da manteiga de cacau”.
Estas pessoas trabalham na recolha diária de sal, sete dias por semana. As feridas que eventualmente ocorram não fecham, e a única forma de as prevenir é a utilização de manteiga de karité. |
Dou-vos uma ordem de grandeza para que entendam os números: a senhora que vende os pacotinhos na rua fabrica ela própria esta manteiga, a partir de extratos vegetais.
Vende cada saqueta a menos de 1 euro. No aeroporto os viajantes podem adquirir, com embalagem cuidada, por 10 euros.
Na Europa, onde as grandes empresas de cosmética incluem este ingrediente nas suas linhas de comercialização, o valor da mesma quantidade de producto é de 30 euros.
É esta senhora que sabe os segredos de cada uma das plantas que existem no mato. É aí que ela vai abastecer-se: procura, encontra e colhe com as suas mãos o suficiente para alimentar a família.
Aquilo que as multinacionais fazem, não é mais que explorar à exaustão aquilo que é o conhecimento popular. Mediante uma embalagem bem mais requintada que os saquinhos plásticos da moça que vende o seu producto dentro de alguidares, estes gigantes da cosmética fazem fortunas oferecendo às senhoras europeias productos de beleza ditos milagrosos.
Aquilo que se procura deste lado são “soluções milagrosas” que disfarcem as rugas da idade, porque há que parecer novo para sempre, e a celulite, atributo próprio de uma sociedade sobre alimentada, que consome comida em excesso.
Que não tem actividade fisica regular, é sedentária convicta e engorda por isso.
Vocês não têm ideia daquilo que se pode fazer com nada... |
Na foto acima, um jovem toma banho com a pouca água que tem disponível.
Eu vi-o lavar a cara, as orelhas, o pescoço, os braços, os pés, e ainda lhe sobrou água. A seguir, foi rezar.
É de África que nos chegam muitos dos productos que nos habituámos a utilizar no nosso dia a dia. Melhores ou piores, os Viagras desta vida saem muitas vezes de frutos ou folhas de plantas que para nós nada dizem, mas que dizem tudo para quem os conhece. Os piri-piris, presupostamente afrodisiacos, são vendidos ao saco, e têm o pomposo nome de “reveille papá”, ou seja, “acorda o papá”...
O piri-piri, vendido a preços de …uva mijona. |
As lojas reflectem em tudo aquilo que é a sensibilidade e organização senegalesa. Têm um pouco de tudo, apelam à compra a retalho de sementes, de productos naturais, porque natural é a fonte de abastecimento. Se alguém pretende um producto processado, algo que saiu de uma fábrica europeia, isso custa caro e raramente se encontra. Para que possam ter uma ideia de como funcionam os estabelecimentos comerciais, passo-vos algumas fotos.
Entendam-nas como locais que tanto vendem anzóis e linhas de nylon como pentes para desfrisar cabelo.
Este é o aspecto geral de uma unidade de venda senegalesa. É frequente que co-existam diversas na mesma rua, a vender precisamente o mesmo. O equivalente a um centro comercial… |
Poderão argumentar que para os padrões europeus, há aqui algumas falhas. Por exemplo não serem capazes de chegar à “caixa” pagar.
Conseguem, se passarem por cima daquela resma de sacos e…stock.
No fim de tudo, não há nada aqui que não faça sentido. |
Não esqueçam que não há preços tabelados. Tudo é passível de discussão, e nalguns casos uma simples compra pode acarretar horas de negociação. O peso é algo que é feito “mais ou menos” a olho, e por isso, dá sempre alguma margem de especulação.
Já se sabe que por fim, ambos os “contendores” terão de ficar satisfeitos.
O gado senegalês. A qualquer momento podem atravessar inesperadamente a estrada e arranjar um acidente. |
O baobab, uma árvore que pode viver mais de 1000 anos. Os grandes chegam muitas vezes acima de 30 metros de diâmetro. Diz-se que são árvores que nasceram ao contrário, com as raízes para cima. |
A mais emblemática árvore da savana africana, a acácia. |
Os resultados de pesca nunca são aquilo que esperamos. Mas não é assim em todo o lado?
De resto, a nossa carreira de pesca nunca é aquilo que sonhamos. É aquilo que é, com todas as suas limitações, sempre com alguns sucessos que mantêm a chama acesa, e muitos fracassos.
Esses desaires, muitos desaires, dão-nos mais força, motivam-nos a insistir mais uma vez.
Quando voltamos de uma expedição de pesca, raramente não trazemos um amargo na boca. São os peixes que cortam as linhas, são os que desferraram à vista do barco, são os que nem aceitaram morder a nossa amostra. A pesca é isto mesmo, são venturas e desventuras, mas a nossa condição de humanos não nos permite ir ter com eles.
Só os golfinhos nadam como golfinhos. Aprendemos com tudo, ganhamos experiência, pescamos cada vez melhor. Cada vaga que cortamos com a quilha do nosso barco deixa-nos mais sábios, …mas também mais velhos.
Tempo para voltar a casa… |
Vítor Ganchinho