SAÍDA PARA A ÁGUA

O planeamento de uma saída de mar é algo de confrangedor quando feito em terras senegalesas. Não que seja necessários demasiados itens, porque na verdade quase tudo se restringe à gasolina, a um saco com mangas e uma garrafa de água. Poderão pensar que isto é algo que se faz em minutos. Pois, …não, nem pensar nisso. Leva horas, porque tudo leva horas para ser feito.

A ausência de preços fixos obriga a negociar tudo, mesmo que o valor sejam uns míseros cêntimos. Sob pena de aceitarmos comprar algo que vale 5 por…500.

Depois, são as deslocações. Ir daqui para ali, obriga a enfrentar a dureza de um trânsito infernal. As filas de carros são absolutamente intermináveis, perfeitamente erráticas, e imprevisíveis.

No fim de tudo pode haver um carro que teima em sair por onde todos os outros querem entrar. Estas longas linhas de viaturas formam-se ao sabor da inspiração do momento de cada condutor.

No meio daquele pesadelo de carros a ocuparem quatro das duas faixas de rodagem existentes, consigo entender alguma organização subjacente. O critério de passagem existe e dá prioridade àquele que mostrar um tom mais ameaçador, mais enfastiado com as manobras dos outros e, a cereja em cima do bolo, ao que buzinar mais alto.

Mas a saída faz-se, mesmo que tardia, porque tudo é melhor que pescar de costa. Não que não possa acontecer algo de importante quando pescamos com os pés firmes em terra, nada disso. A costa senegalesa tem muito peixe que encosta à rebentação ao entardecer, a aproveitar a comedia que vive junto às rochas. Não é de espantar uma corvina grande, um tubarão, ou mesmo um pargo de algumas dezenas de quilos passar a rasar a costa.

A partir da costa é possível ferrar algo de grande, um peixe que durante o dia não está ali, mas que aparece ao cair do sol. Para caçar.

O meu amigo, ao entardecer, costuma passar por um buraco conhecido, uma pedra que dista não mais de 500 metros da sua casa, e faz pargos de …50 kgs.

Ter algo do género à mão, tão perto de casa, é um privilégio. Ele utiliza uma piroga para se deslocar até ao dito buraco. Gastará menos de um euro em gasolina…

Aqui vos passo uma imagem de dois desses pargos:

O maior tem 50 kgs. O mais pequeno tem 37 kgs. São pargos respeitáveis, mas longe do máximo de peso possível: 85 kgs. Foram caçados no espaço de 15 minutos, antes do anoitecer, a poucas centenas de metros da casa deste incrível mergulhador. Para que tenham um noção de perspectiva, ele mede 1,90 mts de altura...

Estes pargos são possíveis à linha, mas exigem um conjunto determinado de condições. O entorno é muito importante, porque nunca se rendem sem uma boa luta. Se alguém quiser ferrar um peixe destes, a melhor solução é utilizar isca viva.

Um peixe de 5 a 10 kgs vai bem, e é engolido sem remissão. A partir desse momento, é ter fé e sobretudo muita força nos braços. Não preciso de vos dizer que o equipamento de pesca tem de ser dimensionado para a carga e pressão que irá inevitavelmente sofrer.

Este é o terreno dos carretos e canas Saltiga, da Daiwa, ou os seus congéneres Stella, da Shimano. O material tem de ser estupidamente forte, e as linhas idem. Abaixo de 120 libras de resistência nem vale a pena tentar. Como terminal, um nylon de 2mm de diâmetro pode ser que aguente.

Para que tenham uma ideia da força de um destes pargos, eu digo-vos que mesmo muito mais pequenos já nos arrastam para o fundo. Tive a oportunidade de arpoar alguns e sei bem o tremendo esforço que é necessário para conseguirmos voltar à superfície e …respirar.

À linha, também reagem aos artificiais. Acontece que tudo é desmesuradamente grosso, pesado, e isso limita muito a nossa capacidade de trabalho. Se optarmos por uma zona mais baixa, em spinning, tentem imaginar lançar uma amostra de 250 gramas, …. com linha grossa, e ser capazes de transmitir a isso alguma animação. Tudo incomoda, a linha, a amostra, a cana, o peso do carreto cheio de linha, …não é mesmo nada fácil. E se por fim obtemos a picada, então vamos ver se ela resulta em captura. Em princípio …não. A maior parte destes peixes acaba por soltar-se.

Aquilo que acontece com frequência é que o peixe, ao atacar a amostra, bate com tudo, bate com a força do seu peso, a velocidade do ataque, leia-se toda a sua energia muscular, contando ainda com as arestas rugosas e abrasivas do seu corpo para roçar a linha. A seguir, vai bater contra as pedras afiadas do fundo, fazendo passar a corda trançada nas ditas. E a linha cede.

Ficamos quase sempre divididos entre o que julgamos correcto, manter uma tensão aceitável, algo que pressiona alguma coisa mas não rompe o trançado, e uma pressão excessiva, bruta, que vira a cabeça do peixe, que o deixa à nossa mercê, que o domina, mas que infelizmente, mal calculada, também pode partir a nossa linha. E é esse espaço, essa indecisão, que os peixes exploram, aproveitando para ganhar espaço, vantagem posicional. Nada disto faz sentido quando se trata de pequenos exemplares, sem peso, sem força, porque esses nós controlamos. Mas quando se trata de peixe grosso, a história é outra.

É por isso que os procuramos ao largo, onde, com um pouco de sorte, seremos capazes de cruzar um cardume de pargos lucianos algo distante das rochas onde gostam de evoluir.

São amigos de entrar e sair de grutas, de espaços onde se podem proteger das redes, dos pescadores de linha, dos caçadores submarinos. Estão onde podem estar com mais vantagens do seu lado.

E por isso eu insisto em os pescar ao largo, onde as possibilidades são um pouco maiores. Infelizmente, os momentos bons, o nascer do sol e o pôr do sol, a própria noite, são proibidos a quem tem família e responsabilidades de marido e pai. E há coisas mais importantes que a pesca.

Com condições de mar favoráveis, e com a devida informação, tudo é possível. Supondo que a esposa nos liberta da obrigação de estar em casa ao anoitecer, ainda assim necessitamos de mar com um mínimo de condições. E isso não aconteceu durante a minha estadia.

Pescar longe traz questões que têm de ser bem pensadas. É estimulante do ponto de vista da pesca em si, mas obriga a uma logística que tem de existir. E o mais natural no Senegal é que tudo falhe.

Ao largo, pode aparecer um pouco de tudo. Estarmos a tentar um bom peixe a mais de 50 km da costa faz-nos pensar que, em caso de picada, temos um tempo limite para conseguirmos trazer o peixe à superfície. A tendência do peixe é afundar e libertar-se do anzol no fundo.

Nada de molezas, nada de contemplações, o tempo de combate é para ser gerido da forma que mais nos interessa, mas também daquilo que o peixe nos deixa. São segundos muito intensos, muito excitantes, e curtos, pelo que têm de ser muito bem preparados.

A espera pela picada leva-nos a pensar sobre a vida, sobre a pesca e sobre aquilo que esperamos que possa vir a acontecer. Queremos estar efectivamente preparados, porque as boas oportunidades não se repetem.

Com a linha na mão, observamos as aves marinhas, o esforço que fazem para se conseguir alimentar a tantos quilómetros de terra.

A dada altura, uma tartaruga sobe à superfície e respira fundo. Que faz este animal ali, a tantas dezenas de quilómetros da costa, num local com mais de 300 metros de profundidade?

As pedras altas onde estes pargos lucianos se reúnem são conhecidas. A pressão de pesca é muita, a necessidade de pescar ainda maior, e o resultado disso é uma vigília permanente aos sítios onde estes peixes aparecem. Encontramos pescadores em muitos desses sítios, quer sozinhos quer em grupo nas sempre omnipresentes pirogas de madeira. Cada peixe é um jackpot, e numa terra de nada, qualquer coisa é muito. Por isso eles insistem, na esperança de conseguir uma picada.

Momentos houve em que senti que estava a mais. Eu a lutar por um peixe, a valer uma foto, e a consequente libertação imediata, e outros a esforçarem-se por ganhar a vida. Eles vão ficar lá toda a noite, à espera.

Há alturas em que nos sentimos mesmo a mais, porque as nossas necessidades não são as mesmas.

O retorno a terra faz-se em silêncio, a pensar que aqueles que necessitam mesmo de um peixe para alimentar a família, esses...ficaram todos lá.

Vítor Ganchinho