O blog do dia de hoje vai para alguém que merece muito um dia de carinho e conforto: as nossas mulheres.
Casadas ou mortinhas por casar, ficam em cuidados connosco de cada vez que resolvemos pegar no barco e sair mar fora, para ir pescar.
Já Fernando Pessoa dizia, num dos seus poemas do livro Mensagem, de 1934, de resto o único livro publicado em vida por Fernando Pessoa (1888-1935):
“Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar”!
São elas que aguentam a angústia da espera, até dar-mos sinais de vida e notícias.
Deixem-me dizer-vos que já me aconteceu cortar uma linha de um peixe grande, que nunca saberei o que era mas seguramente gigantesco, por prever que a conclusão da captura seria caso para mais umas horas, e por isso seria feita pela noite dentro.
Quando estamos muito afastados de terra, o suficiente para deixarmos de ter rede nos nossos telemóveis, temos duas opções possíveis: seguimos com a captura e chegamos noite escura, com tudo o que isso implica de horas de aflição para a nossa esposa, ou, tomamos a decisão de abdicar da pesca e voltamos a casa a tempo de poder jantar com a família.
Pela parte que me toca, não preciso de muito tempo para pensar. E por isso pesco normalmente durante a manhã, até às 14.00h. O resto do tempo é para limpar barco e equipamentos. E a fórmula resulta, zero problemas e desesperos em casa.
Não há peixe nenhum, por grande que seja, que valha a paz e descanso de espírito de um ente querido.
Hoje, falamos particularmente das mulheres do Senegal, pessoas que esperam os seus maridos na praia, ao longo de dias. Sim, dias, porque eles partem nas pirogas e só voltam quando têm as caixas de peixe cheias.
É difícil transcrever para palavras a alegria que estas mulheres sentem quando chegam os seus homens. |
Há pescarias que resultam melhor que outras. As pirogas tanto podem chegar no próprio dia da partida, como estar três ou quatro dias fora, a lutar por peixe para venda, e também consumo próprio.
E porque não há comunicações possíveis, a solução para estas pacientes mulheres é mesmo esperarem nas praias, dia após dia, a chegada dos seus homens.
Os barcos de madeira, a que nós portugueses demos o nome de “almadias”, levam caixas de esferovite, bem abastecidas com gelo.
O peixe é depositado dentro, supondo isso que ficará em melhores condições de conservação. Na verdade, as condições de temperatura ambiente, e a própria água do mar, quente de 30ºC no nosso Verão, não ajudam muito. A alta humidade, calor tórrido, e más condições de preservação, francamente em nada ajudam à qualidade do pescado.
As saimas, ou sargos-veados, os “Diplodus cervinus” de seu nome, são no Senegal mais comuns que os sargos cinzentos. |
Já vimos o estado em que o peixe chega à praia. Todo o circuito se inicia aí, partindo logo com o handicap da falta de frescura do produto. Mas esse é o ponto de partida do trabalho daquelas mulheres, que o irão vender. E cozinhar as sobras, o peixe não vendido, para a família.
Vejam os filmes do desembarque do peixe, e de como é duro trabalhar nestas condições (clique nas imagens para visualizar e na rodinha das definições para melhorar a qualidade):
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Uma espécie muito abundante, sobretudo nas águas mais a sul, mais próximas dos estuários dos rios da Guiné Bissau. |
A operação de lota é livre e feita de forma imediata após a descarga.
Não preciso de vos dizer que o método tem muito de arcaico, mas que funciona disso não tenham dúvidas. Quem grita mais alto, quem argumenta de forma mais efusiva, tem maiores chances de conseguir ficar com o balde de peixe. As quantidades nunca são demasiado significativas, já que a operação de descarga é feita de forma manual, por isso limitada à capacidade de carga de uma pessoa.
Os cheiros, o ruído, as moscas, mas também a alegria que só o bom povo africano conseguem adicionar a um trabalho que tem tudo para ser pesado, são algo de inolvidável.
É difícil fazer algo funcionar minimamente bem nestas condições de calor e humidade. Os corpos destilam transpiração, tudo é mais difícil do que aquilo que possam pensar.
Mas esta gente tem genica, são duros e as mulheres conseguem, ainda assim, manter alguma alegria. Reparem como elas ficam bonitas com os seus trajes coloridos!...
Esta gente sofre privações tremendas, mas guarda no seu íntimo a quantidade suficiente de coragem para as enfrentar. Cada dia é uma nova aventura, uma batalha a vencer. |
Eu gosto de África, e não é por acaso. Encontro ali gente solidária, amiga, simples mas com uma força de viver que muitas vezes não encontramos em países europeus, ditos desenvolvidos.
Esta gente luta por cada migalha de pão, mas deixa sempre uma reserva de energia para fazer uma festa de tambores ao final da tarde. Tenho ali amigos, gente que gosta verdadeiramente de mim.
Quando as condições são mesmo muito duras, quando tudo parece sem solução, o sorriso simples, simpático e amigo do bom povo senegalês resolve tudo.
Tenho vindo a acompanhar a evolução de uma família que vive em N`Gor, desde o nascimento da primeira filha, que hoje já está casada, e dos outros três filhos. Estão crescidos. Isso não quer dizer muito se analisarmos a questão pelo lado da altura, porque no Senegal alguém com 1,90 mt de altura não é considerado alto.
Eles são naturalmente muito altos, e esguios, secos. Resquícios de uma adaptação fisiológica provocada pelo calor do solo.
Nos países muito quentes, os corpos crescem em altura, afastando os orgãos vitais, cérebro, coração, pulmões e aparelho digestivo, do solo quente. Os habitantes das florestas húmidas, pelo contrário, são todos muito baixos e por isso mais propensos a corpos mais largos, mais gordos.
Enquanto houver um peixe à venda, vai haver algazarra, barulho e discussão. Ganha quem grita mais alto. |
Todo o trabalho de venda é deixado às mulheres, enquanto os homens tratam de ancorar convenientemente os barcos, e cavaqueiam entre si sobre as peripécias da pesca.
Na verdade, não há falta de mão-de-obra no Senegal. Ela aparece de todo o lado, e desde que haja algumas notas, tudo se faz.
A moeda local o CFA, tem um valor residual, quando comparado com o euro, e por isso mesmo, os milhares de CFA`s que se cobram são resumidos a poucos euros.
Num país que pouco tem de indústria, os recursos marinhos são uma importante fonte de receitas. O mar dá trabalho a todos, desde aqueles que pescam, os que pintam as pirogas, os que as constroem, os que reparam motores, os que descarregam peixe, os fabricantes de redes, etc.
Por fim, todos aqueles que, sem lugar nas pirogas de pesca, aceitam ficar na praia e fazer o trabalho de carregadores de pescado. Tudo gira em torno do mar.
Há momentos para tudo. Quando chega a hora da reza, todos abandonam as suas ocupações e vão dedicar alguns minutos ao profeta.
Os homens ajoelham nas esteiras à frente, descalços, as mulheres secundam-nos, mas atrás, a uma distância respeitável. Resquícios de hábitos antigos, hierarquizados, que ainda não desapareceram, por enquanto. As novas gerações trarão consigo algumas mudanças, certamente. Vejam como é:
Acreditem que é um privilégio poder pertencer a estas comunidades, mesmo que numa posição de out-sider, por alguns dias. É toda uma experiência de vida que se vive de forma muito condensada, em pouco tempo.
África tem mesmo um encanto muito especial.
Vítor Ganchinho
Muito obrigado pelos registos e testemunho Vitor, é uma delicia de ler.
ResponderEliminarQuase que se sentem os cheiros que relata e até tentei sacudir uma mosca imaginária :).
Muito obrigado, paulo