A lógica diz-nos que um safio pode facilmente comer uma pequena garoupinha, um serrano-alecrim, (ou como é mais comum chamar-se na zona de Setúbal, uma “ganopa”).
Trata-se de um pequeno peixe, de nome científico “Serranus cabrilla”, que não excede os 25 cm de comprimento, isto para os exemplares de maior porte.
E por isso mesmo, está a jeito para poder ser engolido por um safio. Esses sim, podem crescer a superar os 2,5 metros, para uma centena de quilos. E têm uma boca grande, onde cabe perfeitamente a nossa garoupinha.
Tudo isto faz sentido, mas nem sempre as coisas são aquilo que parecem. Na foto abaixo, não temos um safio e um anzol grande, descomunal, temos um safio, e um anzol FUDO HOOKS Japan, um SOIW nº 4, logo um equipamento corrente para a pesca de pargos e douradas.
A notícia não é um cão morder um homem, é o oposto disso, um homem morder um cão. E neste caso, foi isso mesmo que aconteceu.
Uma garoupinha mordeu um safio e com ele atravessado na goela, ainda teve posteriormente coragem de se lançar sobre um troço de cavala. Haja fome, ou porventura algo mais que isso.
Não é só por fome que os peixes mordem. Muitas vezes há ataques que a fome não explica. A motivação pode ser outra: a defesa de um território de caça.
Deter uma zona de caça exclusiva é algo de muito precioso, porque garante comida, e por isso mesmo é defendido até ao limite por quem é o seu “proprietário”. Podemos ver inclusive pequenos peixes a tentarem afastar oponentes de muito maior tamanho, porque aquilo que defendem é tudo para eles.
Neste caso que vos trago hoje, há que encontrar a explicação à luz de comportamentos que estão bem longe de ser exclusivos daqueles peixes a quem reconhecemos uma agressividade superior.
Tenho para mim que a maior parte das espécies, e não só de peixes bentónicos, acabam por defender a zona onde se alimentam. Isto é válido para as ditas garoupinhas, mas também para muitos outros que a todo o custo pretendem preservar a sua zona de alimentação.
Nem todos os espaços terão a mesma qualidade, a mesma propensão para disponibilizar alimento de forma constante. Se há locais que são altamente privilegiados nesse aspecto, outros nem tanto, e assim sendo, e porque nem todos os peixes podem ter acesso a bons territórios de caça, há então que aproveitar muito bem aquilo que entra no espaço de jurisdição de cada peixe.
Foto Carlos Campos. |
É mais fácil entender o processo quando se vai lá abaixo, e discretamente, em apneia, se tem tempo para observar o comportamento dos peixes perante rivais. No caso das garoupinhas, elas são altamente territoriais, e defendem os seus espaços de cerca de 3 a 4 metros de diâmetro, com unhas e dentes. Todavia, há uma zona cinzenta, precisamente a linha imaginária que divide cada um dos espaços. E aí, nesse espaço fronteira, que nem é de um nem de outro, podemos ter dois oponentes a lutar pela mesma presa.
Foi o que aconteceu acima, em que o jig do meu colega de pesca Carlos Campos acabou por ser mordido por duas pequenas garoupinhas.
Pois é esta espécie que protagoniza a história de hoje.
A arribada de alevins à costa é sempre algo que motiva uma actividade frenética. A natureza regula-se a ela própria, e neste caso, a pequena garoupinha actua no único momento em que pode superiorizar-se ao seu futuro predador. Depois de ele crescer, os papéis invertem-se e o safio irá comer muitas garoupinhas, sempre que para isso tiver oportunidade.
Devem entender este processo como algo que é universal, todas as espécies o fazem, e é isso que garante a não supremacia exagerada de uma espécie sobre todas as outras.
Os robalos, que em adultos comem as cavalas, têm de pagar um pesado tributo a estas, aquando da postura das suas ovas. Serão comidas aos milhões por estes peixes, numa fase em que ainda o podem fazer.
Um dia mais tarde, o robalo adulto irá atacar com sucesso as cavalas que lhe passarem próximo. Não há aqui espaço para se ser ou não ser implacável: as coisas são como são, o equilíbrio entre espécies está feito desta forma fria.
Os ciclos reprodutivos sucedem-se e dão oportunidades a todos.
Pequeno safio sem sorte. |
Chegou à costa porventura vindo de muito longe, do Mar dos Sargaços, e ao fim de milhares de quilómetros teve um fim inglório, à conta de uma garoupinha esfomeada.
É a natureza no seu melhor.
Vítor Ganchinho