Pescar pode ser tudo?
Tenho para mim que pescar apenas, não conseguir ver para além de uma linha e anzol, é de tal forma redutor que, se não formos capazes de pensar em mais nada, nem vale a pena existir.
Pescar é bom, é divertido, gostamos de o fazer, mas há mais mundo para além disso. Se pescar é o nosso único objectivo de vida, então queiram saber que eu acho que é curto. Muito curto.
Momentos há em que valores mais altos se levantam. A história que hoje vem ao blog é um desses casos.
A dada altura senti-me chamado à responsabilidade de ter de escolher entre pescar peixes, e divertir-me, (justificando o valor dos 350 euros pagos pela minha saída diária de barco), ou abdicar disso tudo e fazer todos os possíveis por manter acesa a chama de uma vida. Ganhou a segunda opção.
Um passarinho verde fez-me alterar todos os planos que tinha para uma pescaria de arromba ao largo de M`Bour, a sul de Dakar. E fez-me ganhar o dia!
Cada uma das minhas viagens ao Senegal é uma aventura, uma lição de vida, um livro em branco onde eu escrevo páginas a um ritmo alucinante. Porque acontecem coisas estranhas a cada momento. Basta-nos ter os olhos bem abertos e as situações desfilam à nossa frente, a um ritmo incrível. Conto-vos os detalhes, que são deliciosos.
Chamemos-lhe Green, o meu amigo alado que veio pousar no barco onde eu me preparava para começar a pescar. |
Nada fazia prever que a pescaria iria ser um redondo zero. Depois de vários dias de pancada, de muito vento e ondulação forte, finalmente as condições de mar estavam boas, pese embora algum vento off-shore residual. A água estava mais limpa, a visibilidade excelente para os meus jigs, e tudo prometia uma pesca em estilo.
Saímos direitos ao largo, às pedras onde seria pressuposto haver uns meros e badejos. A ideia era fazer alguns deles com jigs.
No meu equipamento, material japonês algo sensível, a motivar a curiosidade dos meus amigos senegaleses. Eles não resistem a experimentar os nossos materiais. É uma oportunidade única que não querem nem podem desperdiçar.
O material vendido no Senegal é de tal forma ruim, (produção de terceira linha na China) que o contraste com equipamento europeu não poderia deixar de ser enorme. E eles querem sempre testar, claro.
Por vezes acontecem acidentes, e só aí eles entendem a diferença entre uma cana de 700 euros e uma de 8 euros. No meu caso, e mercê das “experiências” que deixei fazer, vim de lá com duas canas com passadores partidos, e carretos danificados. E eles riem, mostram os dentes brancos e encolhem os ombros. É tudo o que podem fazer...
Neste dia, eu estava convicto de que estariam reunidas as condições necessárias para poder fazer umas fotos com uns peixes bonitos. Não poderia supor que um episódio com um passarinho verde iria mudar o destino daquela pescaria. Conto-vos a história.
Enquanto as mãos confirmavam o aperto do carreto na cana, a tensão de saída do drag, os meus olhos verificavam a linha, e algum possível dano no fluorocarbono provocado pela longa viagem de barco.
Fizemos cerca de 3 horas para ali chegar. A distância a terra seria de uns 60/ 65 km, espaço suficiente para ser impossível a visualização da linha de costa. No Senegal, primeiro país subsaariano de África, as zonas altas são poucas, a costa é quase toda muito baixa, ou não fosse uma região onde a areia impera.
O vento nesta altura do ano sopra forte da costa para fora, levando insectos e outros seres a uma viagem indesejada. Pássaros também.
Pousado na minha cana de carbono Logical #5 da Deep Liner, este passarinho fez o meu dia. |
Quando me preparava para lançar sobre as pedras um jig de 120 gramas da Shimano, eis que algo estranho cruza o meu campo visual, e vem, com enorme esforço, pousar sobre a minha cana, encostada à amura do barco.
Era o Green. Em miserável figura, cansado, exausto de um voo que nunca deveria ter acontecido. Desesperado, sem qualquer ponto de referência visual à costa, sem ter sequer uma direcção para onde voar, este pequeno passarinho verde encontrou no nosso barco uma boia de salvação. Se em terra o natural receio dos humanos o impele a voar para longe deles, ali, a alternativa era a morte, pelo que foi forçado a aceitar a companhia de três estranhos parceiros de viagem.
Há muitos pássaros no Senegal. A vida selvagem prospera entre as acácias, os baobás, “Adansonia digitata” de seu nome científico, onde encontram refúgios seguros.
Os olhos do pássaro denunciavam o esforço que teria feito para chegar ao barco. Fechavam-se de cansaço. A sede apertava imenso, o calor extremo em nada o ajudava. Percebi que estava a tentar a todo o custo manter-se vivo.
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Por serem tão comuns, por não serem aparentemente decisivos em nada, resultou estranho aos meus colegas que eu não ousasse sequer tocar a cana de pesca e fixasse a minha atenção em fazer-lhe apenas algumas fotos.
A pesca teria de ficar para depois, se fosse o caso.
A dada altura, o seu desespero e sede fez com que a alternativa fosse beber água do mar. Salgada, pois. |
Mas o Green denotava sinais evidentes de cansaço. Deixei de pensar em pesca.
Por vezes, para levarmos a água ao nosso moinho, para conseguirmos os nossos intentos, temos de recorrer a toda a nossa capacidade diplomática. Necessitei disso quando tive de explicar aos meus companheiros de barco, o meu amigo Mohamed e o nosso barqueiro que, naquele dia, a saída de pesca tinha acabado, que a partir dali a prioridade era outra. Custa-lhes a entender que possa ser assim. Fazer três horas de viagem para pescar peixes, e voltar para trás? Sem ao menos pescar algo para comer?
Gastar dinheiro e não levar comida para casa?
Acreditem que quando visito estes lugares penso sempre que estou a ultrapassar uma barreira invisível, transparente como vidro, mas que existe. É como se entrasse num mundo em que a razão europeia deixa de existir e passa a valer a razão da vida dura, da luta, do sofrimento.
É uma razão declaradamente à margem da nossa. E eles conseguem viver assim. Este povo come todos os dias o pão que o diabo amassou, não tenham dúvidas. Faz-se o melhor que se sabe, com aquilo que se tem.
Eles são luzes trémulas que resistem a apagar-se e nós não os entendemos. Custa-nos pensar a nossa vida com tão poucos recursos, uma escassez tão vincada, uma fome tão evidente, e todavia, …eles resistem.
Na circunstância, nenhum dos meus dois companheiros teria hesitado em começar a pescar. Afinal de contas era só um pássaro e com tantos em terra, que diferença faria a morte de um deles?
Na verdade, ao longo dos nossos anos de vida acontecem coisas que nos tornam mais ricos, mais sábios. Quando envelhecemos temos já um acumulado de experiência e vivências que nos fazem melhores pessoas, mais cultas, e mais capazes de decidir bem.
Aprendemos com tudo e todos. A fazer e a não fazer. Passamos a saber ler nos olhos das pessoas, a entender o que pensam. E no caso deles, eu lia claramente que era um absurdo não pescar. Mas havia uma vida a salvar, um pássaro que já teria bebido água salgada, em desespero.
Depois disso, e com o calor tórrido que se fazia sentir, as suas possibilidades de sobrevivência seriam reduzidas.
Aqui já nem os dois olhos conseguia manter abertos. Estava francamente debilitado. |
Os olhos do Green não enganavam: estava em sofrimento por cansaço extremo. A dada altura já nem os conseguia ter abertos.
Aproveitei a oportunidade para o envolver com a mão, e dar-lhe alguma água doce, utilizando uma tampa de garrafa de plástico.
Não deixou de me bicar, num instinto que mais não era que aquilo que a espécie a que pertence terá no seu kit de atitudes de sobrevivência.
A força não foi muita, o cansaço estava a vencê-lo. Bebeu avidamente, e a seguir agradeceu a abertura franca da minha mão.
Em missão de salvamento. Já o fiz com pessoas, mas com um pássaro, ...foi a primeira vez. |
Bateu as asas com a força que podia e lançou-se no espaço.
Sem terra à vista, tive receio de que fosse o seu fim. Afastou-se duas centenas de metros, até ao limite da minha capacidade visual.
A forma periclitante como voava, mostrava à evidência o grau de fadiga extremo a que chegara. Aqui e ali batia na água, encharcando as penas, ficando mais pesado, dificultando ainda mais a sua tarefa, de si já quase impossível.
À falta de alternativas, tomou a melhor opção: voltou ao barco. Ofendido com o meu aperto, arreliado comigo, mas vivo, e um pouco mais composto.
Mas os efeitos da água salgada que bebeu teriam de se fazer sentir...
A alternativa era clara: ficar e pescar, ou retornar a terra, e dar uma oportunidade de vida ao nosso companheiro. |
Os senegaleses chamaram-me a atenção para um tubarão castanho, de pontas negras. Uma espécie que já pesquei nas Maldivas, um tubarão do recife, um “Carcharhinus melanopterus”.
Passou por nós a bambolear-se devagar, à superfície, preguiçoso. O Green seria por ele chamado de comida, sem dúvida.
O sol a pino não augurava nada de bom. Mesmo no mar estava calor e os corpos transpiravam em abundância. A água do mar a 30ºC não ajuda a refrescar o ambiente.
O barco, de volta a terra, cumpria a sua missão de nos trazer a seco, mas sem brilhantismo. A lenta e monótona marcha era aqui e ali bruscamente interrompida por um salto de um cardume de peixe-voador, cada um a espirrar para seu lado.
Os dourados capturam estes peixes em voo, e os veleiros, o conhecido “Istiophorus” ou peixe-vela, idem. Para um peixe muito rápido, a estratégia dos voadores não resulta sempre.
Saltam apoiando o seu peso nas asas abertas que não são mais que as barbatanas peitorais ultra-desenvolvidas, e assim voam a planar sobre a superfície do mar durante dezenas de metros.
Quando frente a peixes como o peixe-vela, nem sempre ganham, porque ao cair já o predador, rapidíssimo na sua deslocação submersa, já está no local, de boca aberta.
A dada altura um destes veleiros passou ao lado do barco, imponente. Não parámos. Apontei-o apenas ao Mohamed, que confirmou ser aquela sombra escura um “espadon”, o veleiro atlântico, com uns 40 kgs.
Não havia uma cana montada com uma amostra, ou ainda mais eficaz, uma cana pronta a receber um peixe vivo. Nem havia tempo.
O veleiro tem para mim dos azuis mais bonitos do mundo marinho. É um azul escuro que só aparece parecido nos atuns albacoras. |
Indiferente a tudo isso, o Green desesperava por algo novo, uma brisa, o avistamento de terra. Que a dada altura chegou. Já se via terra!
À medida que o barco se aproximava sentia-o mais inquieto, mais nervoso. Tinha avistado a costa e agora sim, sabia para onde voar.
A uns 10 km de distância arriscou um voo. Não terá feito mais de 50 metros e chegou à triste conclusão que não conseguiria de maneira nenhuma chegar lá.
Bateu de novo com as asas na água, enrolou-se com uma onda e tivemos de voltar atrás com o barco para que pudesse ter de novo um ponto de apoio.
A entrada foi desastrosa, as forças faltavam para tudo e a aterragem foi mais uma queda. Com a mão, levei-o de novo para a sua zona de conforto, a amura mais próxima de mim. E aí ficou, de olhos fechados.
A deslocação do ar secava-o e retirava-lhe o excedente de peso em água que o matava. Mas os olhos esses estavam semicerrados, sem forças para abrir as pálpebras.
Fiz mais uma foto.
Vi como me olhava num misto de desconfiança e de algo que assumi como gratidão. Aos poucos, e com a imagem da praia mais nítida, achei que estava a ganhar coragem para algo mais. Consigo atribuir-lhe frases como “se me vejo em terra e na caminha nem acredito”….
De repente, e aproveitando um momento de distração meu, algo se passou. Já lá não estava. A costa ainda distava uns 2 quilómetros.
Preferia que tivesse esperado um pouco mais, mas sabemos como são os jovens, têm pouca paciência para tudo. Ficarei para sempre a pensar se, de tão longe, terá mesmo conseguido reunir forças para vencer a distância. Para um pássaro em perfeitas condições físicas, não é nada, são segundos, mas ele não estava no seu estado normal. Bem abaixo disso.
No momento seguinte a esta foto….já lá não estava. A costa a uns 2 kms deixou-me apreensivo, mas quero acreditar que sim... |
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Vamos todos torcer para que tenha conseguido. Quero acreditar que sim.
Poderão argumentar que isto nada tem a ver com pesca. Talvez não.
Para mim tem. Eu já pesquei quase todos os peixes do Senegal, e não me importo de não pescar mais alguns, mais dos mesmos, para poder desfrutar de algo novo.
Salvar um pássaro de uma morte certa e trágica é para mim muito mais interessante que pescar alguns peixes.
Quanto vale uma vida? O que é a pesca, um peixe, uma foto, quando comparado com uma vida salva?
Vítor Ganchinho
Olá !
ResponderEliminarGrande atitude Sr. Vitor, vale-nos sempre repensar a pesca como um todo.
Vamos acreditar que sim, o green safou-se e nesse momento está a contar aos seus amigos a sua grande aventura e como foi salvo.
Um forte abraço!
Top. Isso vale tudo o resto e define todos os valores. Muito obrigado 🙏 Abraço
ResponderEliminarBom dia.
EliminarHá momentos para tudo, e ser solidário é algo que vale mais que muitos peixes.
Recordo-me de ter salvo um navegador solitário, o Handy, ao largo de S. Miguel, nos Açores.
A pessoa estava à deriva há mais de 32 dias, num estado lastimável, e eu senti-me muito feliz por abdicar da minha jornada de pesca para lhe rebocar o veleiro, o Green Fingers UK, de volta ao porto de abrigo. Ele estava a poucos dias, ou horas, de morrer. A situação dele era de desespero, e depois de chegar a terra, convidei-o para ir jantar. Isto depois de um bom banho, pois ele estava no ponto a que alguém chega quando não toma banho durante 32 dias. Lembro-me de o ter levado a um arroz de lagosta, no restaurante Mar&Serra. Perguntei-lhe: ...desculpa, nem te perguntei se gostavas de arroz de lagosta.....?
E a resposta do britânico foi algo como isto: "esta manhã, antes de ser salvo por ti, eu estava a contar os minutos que me faltavam para morrer de fome"....
Posso garantir que estava ..com apetite. E eu senti-me feliz por ter ajudado.
Dar água a um passarinho utilizando uma tampa de garrafa não está muito longe, é tudo uma questão de perspectiva.
Por mim, continuarei a abdicar de ferrar uns peixes, para poder ser útil a alguém. Sempre.
Prioridade à vida e à máxima de que no mar, seja em que circunstância for, ajudamo-nos sempre uns aos outros.
Pescamos os peixes ...a seguir.
Abraço!
VItor