Para nós humanos, a dor faz parte da vida. Sentimo-la com alguma frequência e sabemos tratar-se de um mecanismo de alarme, um aviso de que algo não está bem. Damos-lhe atenção, não a ignoramos.
A dor, do ponto de vista técnico, assume uma função de defesa da integridade dos organismos vivos. Visa proteger as estruturas musculares e no fim acaba por ser uma garantia da sua futura funcionalidade.
Caso não tivéssemos este mecanismo de defesa, algo que nos obriga a parar, iriamos forçar um músculo até à sua completa rotura. Caso não fossemos capazes de detectar uma queimadura, iriamos assistir à completa degradação de uma zona do corpo.
Mas felizmente sentimos dor e isso ajuda-nos a sobreviver. Há excepções: algumas pessoas não sentem qualquer tipo de dor, e diz-se dessas pessoas que sofrem do síndrome de Riley-Day. São pessoas cujo sistema nervoso central está afectado e por isso vivem com enormes problemas.
E com os peixes, como funciona? Será que sabemos o suficiente para conseguir entender o que sentem quando os pescamos? O que conta verdadeiramente, o facto de os picarmos com os nossos anzóis, ou afinal apenas a sensação de se sentirem presos?
Se eles podem sentir dor, então quando os pescamos com um anzol será uma dor aguda. Convém definir dor, porque há dois tipos diferentes:
A dor aguda é um sofrimento limitado no tempo e confinado a uma causa, por exemplo a penetração repentina de um anzol. Nós espetamos um anzol no dedo e sentimos uma dor imediata, que passa após retirarmos o dito.
A dor crónica é algo contínuo, que se estende no tempo e não é facilmente resolúvel pelo seu portador. Por exemplo um caso em que um anzol é perdido para um peixe que consegue a rotura da nossa linha.
Sabemos que ele irá ficar com aquele incómodo durante algum tempo, e que não será fácil gerir a sua vida normal com aquele apêndice. Muitos deles acabarão por morrer antes de o metal do anzol acabar por oxidar e desaparecer.
Quanto aos peixes, existem duas grandes correntes de opinião a este respeito.
Aqueles que afirmam que não, que os peixes não sentem dor porque não têm terminações nervosas suficientes, para interpretar os estímulos recebidos. Nos humanos, essas terminações nervosas, serão as responsáveis por levar a sensação de dor ao cérebro, para avisar que a nossa integridade está em perigo ou que algo de ruim está a ocorrer. Ao tocarmos numa superfície muito quente, essas terminações nervosas avisam-nos para tirar a mão rapidamente de lá.
Por todo nosso corpo existem milhões de terminações nervosas. Mas os defensores da impossibilidade de os peixes sentirem dor afirmam que a região da boca do peixe é feita de ossos e ligamentos, mas poucas zonas têm terminações nervosas. Como praticamente não existe musculatura na boca, a dor causada pelo anzol seria mínima. O peixe sente apenas uma pressão mecânica, como se fosse um beliscão. No entanto, se o anzol se prender a qualquer outra parte do corpo, o peixe terá uma sensação semelhante à dos seres humanos, ao sentirem-se feridos. É o que esta ala defende.
Mas existe outra corrente de opinião. Dos diversos tipos de estudos realizados, aquilo que resulta é a noção de que sim, os peixes podem sentir dor, mas reagem a ela de uma forma diferente da nossa. Não nos dão indicativos de demonstração específica de dor, não há contração muscular. Mas registam-se fenómenos de stress emocional, o que nos leva a crer que têm reacções comportamentais diferentes a estímulos recebidos, quer sejam químicos, mecânicos ou térmicos. Em teoria, os peixes são animais com capacidades cognitivas, emocionais e sociais. Segundo alguns autores, os peixes aprendem a associar riscos e evitar potenciais danos, o que é uma forte evidência de suas habilidades de perceber a dor. Fazem-no através de um sistema chamado de nociceptor, o qual detecta estímulos e sinais de percepção de desconforto e dor.
Será apenas uma questão de córtex cerebral? Afinal existem ou não fibras deste tipo distribuídas pela face do peixe? Como podemos avaliar a possibilidade de sentirem dor?
O sistema nervoso dos peixes é complexo e sofisticado. De resto, sabemos que os peixes são animais que têm sentidos muito desenvolvidos. A maioria possui um sentido da visão muito apurado, podendo distinguir cores e comprimentos de onda, desde o infravermelho ao ultravioleta.
Contudo, esta capacidade vai diminuindo conforme aumenta a profundidade, em virtude da insuficiência de luz. O olfacto está também muito desenvolvido em algumas espécies. Os salmões e outros peixes migradores apresentam o fenómeno “homing”, ou seja, voltam sempre ao rio onde nasceram para se reproduzirem. Está cientificamente provado que estas espécies “memorizam” o odor da água do rio onde nasceram, para um dia poderem voltar. Em muitas espécies, as papilas gustativas não se limitam à cavidade bucal, estão também noutras partes do corpo. Os ouvidos, além de permitirem a percepção de sons, funcionam também como órgãos do equilíbrio. Os peixes têm sistemas organizados de comunicação entre si. Emitem substâncias de alarme em presença de predadores, formam cardumes para confundir os atacantes, ou permitir a fuga de outros indivíduos da sua espécie. Na altura da reprodução parece haver também comunicação química. Supõe-se que as hormonas libertadas pelos machos induzam a ovulação das fêmeas. Estes animais desenvolveram também receptores químicos ao longo do seu organismo, que lhes permitem detectar as mudanças de corrente na água e as mais delicadas vibrações, indiciadoras da aproximação de predadores. Não são pois uns bichinhos insensíveis!
Pelo acima exposto, e que tem sido consubstanciado por estudos levados a cabo nomeadamente por cientistas ingleses, a resposta é simples: sim, os peixes sofrem, sentem!
Enquanto criaturas do reino animal, dotadas de um sistema nervoso central, os peixes possuem um sistema de dor que é anatómica, fisiológica e biologicamente semelhante ao das aves e outros animais.
Os peixes reagem a sensações de dor e, na verdade, partilham até semelhanças com o sistema nervoso dos seres humanos, já que algumas espécies possuem neurotransmissores como as endorfinas, que induzem a sensação de bem-estar e de alívio da dor.
Logicamente, se os seus sistemas nervosos produzem analgésicos naturais, é porque estão pré-determinados para sentirem dor.
Os referidos estudos constatam que a morte por laceração dos tecidos, sangramento e asfixia (que caracterizam a prática da pesca) é cruel, porque fonte de grande sofrimento para estes animais, não só físico, mas também de stress psicológico.
Este é um assunto muito controverso, e verão as implicações destes estudos na forma como podemos gerir a nossa relação com os peixes. E o quanto esta definição de dor pode afectar a possibilidade de sairmos à pesca.
Vivemos um momento em que a pesca é assumida como fazendo (ainda) parte integrante da vida humana. Mas vocês sabem que cada vez mais os ecologistas e pacifistas e verdes e outros que tais, aparentemente mais interessados no bem estar dos peixes do que nós, poderão iniciar movimentos de oposição à actividade dos pescadores. Falamos de questões éticas, de imagem, e da forma como os peixes são tratados.
Vamos por aspectos mais gerais: a indústria da pesca ignora a individualidade dos peixes. Para os armadores da pesca comercial, os peixes são um produto, e medem-se em toneladas, não em indivíduos isolados. São um número, um peso, e não vidas pescadas.
Acontece que falamos de algo mais que uma fonte de alimento, ou de diversão para as nossas pescarias. Poderíamos por exemplo questionar a forma como matamos os nossos peixes.
Sejamos honestos, certamente a forma correcta não deve ser por hipoxia, após serem removidos do ambiente aquático e deixados a morrer fora de água, numa geleira. Por absurdo, seria o mesmo que nós sermos afogados com a cabeça dentro de água, morrendo por falta de ar.
A questão é de tal forma pertinente que no limite pode obrigar a mudar radicalmente a nossa forma de pescar. Digamos que, a dar ouvidos a essas pessoas que são contra a pesca e a morte dos peixes, poderíamos ser inclusive proibidos de pescar.
Mas não fica por aqui. Então e o que fazer com as unidades de aquacultura? Como matam os seus peixes?
Normalmente é por congelamento. Por isso nos aparecem tão limpinhos e de escamas tão certinhas. Os peixes selvagens morrem a lutar pela vida, debatem-se, e por isso mesmo, …perdem escamas.
A aquacultura sofre muito menos danos de imagem que nós, pescadores de linha, porque trabalha em recato, faz o que tem a fazer dentro das suas instalações fabris, e pouco ou nada transpira para fora, para a opinião pública. Mas matam o peixe, sem dúvida!
Falta-nos ainda analisar um outro aspecto, o da captura do peixe.
No acto de pesca, os peixes morrem de diversas formas: muitos deles chegam até nós já mortos, devido à repentina descompressão a que são sujeitos quando os puxamos com as nossas canas e carretos dos fundos onde vivem.
Os seus órgãos internos explodem, pois passam de uma pressão de várias atmosferas para outra muito inferior. Por isso os recebemos com os olhos fora de órbita, com o estômago à boca, etc.
Outros peixes acabam por morrer de asfixia ao serem retirados da água. Seguramente sentirão stress, e fazem aquilo que lhes é possível para retornar ao meio líquido.
Mas também na pesca comercial muitos peixes chegam à superfície já mortos, ou pelo cansaço de lutar contra a resistência de uma aparelho de linha, ou esmagados contra as paredes de uma rede de arrasto.
Muitos acabarão por morrer já dentro dos porões, por congelamento.
Os peixes usados como isca viva acabam por morrer extenuados, ou comidos pelos predadores alvo da pesca.
Finalmente, alguns peixes morrem no acto de consumo, algo que os asiáticos fazem correntemente, ao adquirirem peixes vivos nos restaurantes.
O tema é algo difícil, porque nenhum de nós quer admitir que aquilo que fazemos aos peixes lhes causa danos.
Como se perder um anzol na boca de um não fossem uma tragédia. Sabemos que acontece, sabemos que irá continuar a acontecer.
Seria bom, pelo menos, tentarmos dar uma imagem de pescadores civilizados, não exibindo baldes cheios de pequenos peixes, latas plenas de chocos, fotos de lava-loiças tapados de peixe que pode até ser muito, mas cuja quantidade não confere à foto nada mais que isso: a memória de uma pesca bem sucedida a peixe…miúdo.
Nós que pescamos nas muralhas, nos portos, e temos muita gente, muitos curiosos a olhar para os nossos métodos, estamos mais expostos e por isso mesmo mais vulneráveis à emissão de opiniões.
Numa altura em que tudo é criticado nas redes sociais, e rapidamente atinge proporções gigantescas, seria bom pensarmos neste assunto, e tentarmos dar uma imagem um pouco mais “pacifista”.
Sem dúvida, o peixe pescado e que se destina a consumo humano, vai ter de morrer. Mas podemos fazê-lo…de forma discreta, com o pudor e cuidado de quem sabe que está a ser observado.
Pareceu-me que devia chamar a atenção para este detalhe.
Boas pescarias para vocês.
Vítor Ganchinho