A VIDA MARINHA JUNTO AOS COLETORES DE ESGOTO

Sabemos que alguns tipos de sentimentos e sensações, como amizade, nojo, saudade, etc, são apanágio da espécie humana. Pruridos de repulsa por sujidade esses então são mesmo muito nossos.
Temos suficientes exemplos de animais que vivem precisamente do outro lado dessa linha, de comer cadáveres, de se alimentarem em lixeiras. Muitos deles especializaram-se apenas na procura de detritos e fazem destes a sua comida.
Nós humanos, se olharmos para um prato com restos estragados e cobertos de bichos da vareja, sentimos nojo, repulsa. Em definitivo, queremos afastar-nos, sentimo-nos incomodados por essa e qualquer outra manifestação de falta de higiene.
Mas sentem os peixes o mesmo tipo de emoções? Reagem da mesma forma? Como é a vida debaixo de água no que concerne a aproveitamento de matéria orgânica abandonada e/ou decomposta?
As respostas podem ser desconcertantes…e muito pouco convenientes.
Pois parece que não, que muitos tipos de peixes estão muito mais interessados em garantir alimento do que em questionar o seu estado.
Os exemplos são inúmeros e estão aí à luz dos nossos olhos. Podemos enumerar aqui alguns casos concretos, sendo que chegamos sempre à conclusão de que os parâmetros de análise da qualidade, no caso dos peixes, serão forçosamente outros.
Ao constatarmos a presença de tainhas junto a esgotos a céu aberto, ou tubagens de descarga de efluentes de fábricas, matadouros municipais, etc, somos forçados a admitir que os nossos princípios em definitivo não se aplicam aos peixes, ou pelo menos a todos os peixes. E porquê?




A resposta pode começar a ser dada analisando o tipo de cérebro do animal em questão.
Comparativamente a nós, os cérebros dos peixes são substancialmente mais simples e primitivos. No seu todo, no seu melhor, correspondem apenas ao nosso lado mais básico e isso advém do facto de sermos particularmente dotados pela natureza. Somos um bicho…pensador.
Ainda assim, algumas das nossas emoções mais fortes são originadas em zonas do cérebro que não são particularmente “inteligentes”. Mas no fim acabam por ser filtradas e amplificadas através de circuitos neurais no córtex cerebral (a parte externa e sinuosa do cérebro) e tomam formas “aceitáveis” de expressão. O número de neurônios no cérebro de um peixe não seria suficiente para gerar sequer as emoções humanas mais simples. Por outras palavras, o peixe não “odeia'', não é amigo de…e nem sequer “ama'” o seu par quando o encontra para fins de reprodução.
Um cérebro bem mais simples, responde a questões mais simples, e essas questões colocam-se muito à volta de comida, crescimento, reprodução e segurança pessoal. Não necessariamente por esta ordem.
Os factores alteram em função da altura do ano, das condições ambientais, da escassez de alimento, da pressão de pesca.




Quando em equilíbrio, poucas dúvidas subsistem quanto à capacidade de todos os peixes conseguirem a sua quota de alimento diário. Mas o bicho humano altera essas premissas e introduz incerteza. E de alguma forma torna os outros seres dependentes da sua acção modeladora.
Atentem por exemplo no trabalho de uma traineira. De uma forma artificial, através de redes de emalhar ou arrasto, reduz drasticamente a quantidade de pescado/ alimento de uma zona. De regresso ao porto de abrigo, faz a escolha das suas capturas e liberta no mar aquilo que não lhe interessa.
Esse “by-catch” indesejado começa a ser disputado pelas gaivotas logo que lançado borda fora, (vejam-nas às centenas a esvoaçar na ré dos barcos), e garanto-vos, provoca no meio subaquático um alvoroço idêntico ao que podem ver acima, à superfície.
Tive o cuidado de realizar mergulhos em apneia em locais de passagem de barcos comerciais, e detectei a enormidade de espécies que se aproximam e disputam os restos de alimento lançados ao mar. A concentração de peixe nessas faixas de terreno passa a ser muito superior ao que se passa nas laterais, onde os barcos não passaram. Se temos duas traineiras a largar restos, temos duas faixas de concentração de peixes a procurarem comida. Onde não há alimento disponível, fica deserto. Falamos de “zebras”, faixas sim, com peixe, e faixas não, sem peixe.
Podem ver peixes nobres, como os pargos, as douradas, a comer restos de peixes e moluscos que, no momento, ainda estão frescos e comestíveis.
Se um dia tiverem a oportunidade, surpreendam-se com os resultados de pesca que podem obter numa dessas esteiras. Eu comecei há muitos anos a fazê-lo, discretamente, com montagens leves, normalmente utilizando fios finos, um peso em tungsténio e um vinil, normalmente um camarão da Savage.
E os resultados de pesca acontecem, os peixes reagem muito bem a esse estímulo.




Em Setúbal, a tradição das traineiras que operam com as ganchorras já vem de longe. Procuram capturar bivalves que irão vender nos mercados, ou, no caso de Setúbal, para exportação para Espanha.
Ao fim de cada lance, há que deitar fora tudo aquilo que não pode ser vendido. Ficam com a ameijoa, o lingueirão, a navalha em bom estado, inteira, e o resto, normalmente uma massa de organismos marinhos amassados, cascas partidas, é devolvida ao mar. Para quem pesca com a ganchorra é lixo. Mas quando cai na água, não é, é proteína boa.
Isto altera por completo o equilíbrio natural das coisas. A natureza passa a responder a estímulos que já não são os tradicionais, antes aproveita aquilo que o homem lhe estende de mão beijada. Comida fácil.
Mesmo peixes que são de consumo pouco evidente nos fundos submarinos, (por exemplo quando um caçador submarino resolve arranjar um safio e deita a metade da cauda, a parte das espinhas, ao mar), não será consumida nos dias seguintes, mas ao fim de algum tempo terá sobre si uma legião de búzios, de burriés. São limpadores muito eficazes e só irão abandonar a carcaça quando já não houver um vestígio de material aproveitável.
Tudo o que possa proporcionar alimento é exaustivamente aproveitado, sem sentimentos de culpa, sem olhar ao estado do detrito. Os peixes não fazem autocrítica e isso liberta-os de quaisquer sentimentos de culpa.




E como podemos pensar que a questão da alimentação é compatível com a presença de cardumes de peixes junto a desaguadouros de esgotos? Que evidências há que apontem nesse sentido?
A presença sistemática de espécies de peixes e moluscos junto a saídas de colectores de esgotos subaquáticos é um sinal evidente de aceitação desse tipo de meio ambiente. Sempre houve peixe nas saídas de água doce, aproveitadas pelo homem para se livrar dos seus lixos.
Voltando atrás: como surgem os vazadouros de dejectos no mar?
Sempre houve, o mar sempre foi uma lixeira susceptível de receber toda a sorte de lixo. Até há muito pouco tempo, a situação era feita aos olhos de toda a gente, e hoje continua a acontecer, pese exista algum tratamento de águas residuais.
Até ao final dos anos setenta do século passado, a quantidade de saídas de esgotos a céu aberto para o mar era incontável. A qualidade das águas degradou-se imenso, e quantas vezes levou a interdições de praias.
O aumento repentino do crescimento demográfico, provocado por um boom de gente que veio do campo para viver na cidade, e sistemas de saneamento básico não suficientemente dimensionados e adequados a esse acréscimo de pressão, trouxeram problemas de salubridade. Problemas a exigir soluções estruturais. E surgiram as ETAR`s. Estas previam o lançamento de detritos e efluentes no oceano, ao largo, por meio de emissários submarinos. É certo que falamos hoje de águas residuais sujeitas a beneficiação, e longe irão os tempos do “deita para o mar e logo se vê”. Mas não podemos acreditar que tudo é inócuo. E como reagem as espécies marinhas a isso? Ao que parece…bem.
São precisamente essas as zonas que se encontram mais densamente povoadas de peixes. Ao passarmos com o nosso barco junto a um desses emissários, detectamos peixe desde o fundo até à superfície. À medida que nos afastamos dessas saídas de águas residuais a quantidade de pescado monitorizado é inferior. Podemos pois pensar que os sedimentos orgânicos acabam por atrair espécies, em vez de as afastar.




Não deixa de ser preocupante. Porventura saberemos o suficiente sobre o fenómeno, mas ao que parece ninguém quer tocar no tema, não é de todo conveniente.
Analisando em detalhe nas suas vertentes microbiológicas, químicas, toxicológicas, ictiológicas, estas mostram que não se detectam efeitos adversos significativos no meio receptor.
Mas ainda assim não gostamos de saber que o peixe que temos no prato foi pescado junto a um colector de esgoto.
Se forem a Sesimbra, terra essencialmente virada para a pesca e turismo de mar, …encontram dezenas de redes à volta do colector de esgoto local. Esse peixe pode ser o peixe que irá ser servido nas mesas dos restaurantes? …..sim!...pode….
A atração que as espécies sentem por esses locais não tem nada de estranho: trata-se, a exemplo daquilo que vos falei atrás sobre as descargas das traineiras, de um aproveitamento de uma situação que existe e pode ser aproveitada.
Por incómodo que nos traga, os chocos irão continuar a desovar nas tubagens dos colectores, os ruivos irão continuar a patrulhar as imediações, os sargos, as douradas, os carapaus, as cavalas, vão continuar a abeirar-se dessas águas e a dar-lhe preferência para as suas posturas. Porquê?
Porque pese embora exista aí uma concentração superior de peixe, leia-se potenciais predadores, também é aí que existem nutrientes orgânicos que servirão às mil maravilhas para o desenvolvimento dos pequenos seres que saem dos embriões, os alevins e futuros peixes, e isso tem um valor inquestionável para a fauna marinha. Aquilo que nos faz confusão é que nós faríamos o contrário, iriamos à procura de águas limpas. Porque as achamos mais “próprias”. Mas a natureza não se compadece de sentimentos humanos, antes procura respostas para a necessidade de alimentos, e esses não estão nas águas limpas, leia-se estéreis, leia-se despidas de vida. Onde há mais vida é pois precisamente onde nós humanos não a queremos encontrar…
Os peixes movimentam-se, mas por razões que não são as nossas. O peixe sai de um sítio quando o estímulo perceptivo de incómodo ou perigo ultrapassa para si um determinado nível de alerta ou quando a intensidade do estímulo aumenta abruptamente, por exemplo a aproximação súbita de uma rede de arrasto. Outra situação que pode fazer um peixe mudar de local é um aumento repentino da acidez ou salinidade da água, um eventual abaixamento da sua temperatura. Em qualquer um destes casos, o peixe irá reflexivamente avançar para outra zona, procurando o conforto do seu sistema metabólico.
E irá continuar a deslocar-se, até que o padrão que originou esse estímulo de fuga exista em níveis comportáveis para o seu bem estar.
Mas isso não acontece com uma descarga de efluentes, por mais que isso nos custe a entender.




Gostaríamos de saber que os robalos que comemos vivem sempre em águas limpas e transparentes.
Que o peixe que pescamos longe da costa está sempre em zonas muito higienizadas do ponto de vista bacteriológico. Mas eles são forçados a visitar locais onde isso nem sempre, ou quase nunca, existe. E a necessidade sobrepõe-se à preferência.
Bem sei que gostariam que vos disse-se que os robalos que pescamos no mar nunca vão dentro dos rios, ou que os nossos rios são locais de águas cristalinas e puras.
Mas isso eu não vos posso dizer...



Vítor Ganchinho



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