O PODER DA LUZ

Por vezes saímos ao mar por uma mera questão de impulso. Naquele dia temos de …estar lá.
Olhamos para as nuvens, sentimos o vento e achamos que sim, queremos ir. Vale tudo menos ficar com os pés em terra firme.
Pescar tem muito de “palpite”, de fé, de considerarmos que poderão estar reunidas condições suficientes para que tenhamos sucesso.
O dia 23.12.22 tinha em si uma série de factores que me levaram a pôr o barco na água e ir lançar umas linhas.
Desde logo o facto de ser o primeiro dia de mar mais calmo, depois de uma sequência de vários dias acima dos 3,5 metros de ondulação e muito vento. Isso para mim significa uma pressão de pesca profissional mais reduzida, a permitir a fixação de peixe, o que são boas notícias.
Nesse dia, teríamos como máximo 2 metros de onda, com um período de 12 segundos. O vento de sul estava fraco, muito fraco, não mais de 2 a 3 nós, com 6 nós de rajadas máximas, o que queria dizer mar liso, pouco encrespado, embora com alguma força de fundo.
A maré iria estar a encher a partir das 8.30 h da manhã, o que me garantia uma pesca em crescendo, de menos a mais. Conforme veio a verificar-se.
Quando saí, fi-lo devagar, sabendo que a hora a que teria peixe não era aquela. Alguns barcos passaram-me à frente, na sua azáfama de serem os primeiros a chegar. Dão aos motores a pressa que, por baixa potência ou por idade avançada, esses motores não podem dar.
Para aquelas pessoas, o chegar antes de outros e aguentar até ao último segundo do dia é a essência da sua pesca. Tempo máximo de permanência, muita pesca, porque pouco sabem de ritmos de alimentação, de marés, de tempo certo.
Entendem a pesca como um espaço de sacrifício, de necessário sofrimento, e se tiverem de riscar fósforos para ver a iscar o anzol, fazem-no. Tudo por um balde de peixe...




A minha ideia era fazer a enchente, muito em particular as últimas três horas, a lançar jigs ligeiros por cima das pedras.
A ausência de vento iria permitir-me pescar como gosto: muito leve, a ter a paciência necessária para deixar o jig chegar suavemente à cota onde sabia estar o peixe.
Nestas condições, com uma deriva muito fraca, com linhas finas, e com o paraquedas a ajudar, chegamos a ter a possibilidade de pescar com jigs abaixo dos 40 gramas, em locais onde toda a gente lança 120 gramas...
O peixe estava lá. A sonda marcava uma actividade acrescida, ecrã composto, o normal para esta época do ano.
Dei com o peixe a fazer aquilo que era pressuposto, em dias de mar com força de fundo: estava alvorado, uma dezena de metros acima do reboliço de areia levantada pela onda.
Quem mergulha sabe o estado em que ficam os primeiros metros, com a areia a ser projectada em todas as direcções, a criar uma cortina de sedimentos e pequenos grãos de areia a baloiçar ao sabor das ondas. O peixe detesta isso, e se acham que não, tentem ser peixe e tentem respirar areia.
Nestas condições difíceis, o peixe sobe, e espera.
Espera pelo tempo certo para voltar ao fundo e fazer a recolha de todos aqueles que ficaram a descoberto, e passam a ser presas fáceis.
As douradas, saturadas das omnipresentes âncoras, correntes e ruídos de barcos a chegar e a sair, refugiam-se em pequenas pedras ao redor dos pontos quentes. Todos conhecem a Vereda, todos têm as suas marcas GPS, mas poucos atribuem importância às pequenas pedras em seu redor.
Sei porque o fazem. O seu insignificante tamanho, (por vezes não mais de 10 a 12 metros de comprimento), não justificam o lançamento de uma âncora. Não há espaço para uma dezena de pessoas.
Na verdade, com o ferro arrochado na pedra, todos eles, mercê da deriva que inevitavelmente o barco fará à corrente ou ao vento, e consequente estiramento do cabo, ficarão a pescar fora da pedra, na areia.
Não há forma de um grupo grande pescar fundeado sobre uma minúscula pedra. Mas há espaço para uma pessoa….que passe lentamente por cima.
A pesca não ancorada, de barco solto, terá poucos atractivos para quem apenas pesca vertical, uma chumbada e dois anzóis tapados de isca orgânica. O modelo corrente é aquele e pouco há a fazer.
Os barcos saem cheios de gente ávida de douradas e isso, aparentemente, só pode ser feito nos locais habituais, nas marcas habituais, pedras grandes, onde sempre se pescou à dourada. E da forma tradicional.
É bom que pensem assim, deixam todos os outros sítios livres, disponíveis para que se faça uma pesca calma, repousada, em silêncio.




O vento sul traz-nos um factor que não devemos negligenciar: quando é persistente, empurra o aluvião do Sado para cima, para norte, contra a costa da Arrábida. Não deixa a água verde descer.
Com água limpa à superfície, sem sedimentos, os peixes pelágicos podem marcar presença. E eles estavam lá. Sardas, cavalas, e alguns atuns sarrajões, ocupavam a primeira capa de água, impedindo muitas vezes os jigs de descer.
Os toques sucediam-se, quase todos antes dos 10 metros de fundo. A linha desenrola rápido, e bruscamente trava, deixa de sair. Isso quer dizer que algo a impede de descer.
É muito frequente que estes peixes se ferrem a si próprios, já que a violência com que batem no jig é suficiente para isso.
O primeiro toque sério aconteceu já com três horas de enchente, pelas 11.00h. O peixe estava a reagir de acordo com o seu relógio biológico, a pressa era minha, que queria voltar cedo a casa.
Eles estão lá e não têm relógio de pulso, porque não têm pulso. Comem quando acham que as condições são as ideais, e naquele momento começavam a sê-lo.
Senti uma pancada muito forte no jig, a cana Shimano Light Game SS vergou bastante e pensei ter um bom pargo na linha. O carreto Daiwa Saltiga IC300 protestou, sentiu a carga e libertou alguns metros de linha, como devia fazer. De súbito, …largou.
Peixe perdido. Viria a reparar à posteriori, já em casa, que tinha os colmilhos de um pargo bem marcados, dos dois lados do jig. O predador mordeu ao centro da peça, bem forte, e arrastou o jig para o fundo, firme nos dentes, sem chegar a tocar no assiste, ou no triplo.
Nestes casos, pescar com assistes duplos, de arame resistente mas leve, pode ajudar a que os anzóis sejam sugados para o interior da boca do peixe. Não foi o caso, apenas fiquei a saber que os meus queridos pargos capatões já estão de regresso.
Tempo para mudar algo nos jigs….o Janeiro vai trazer peixes desses para cima das pedras.


A peça utilizada foi o segundo jig a contar da esquerda, na versão 40 gr. Esta série de jigs é fabulosa, de enorme realismo, dá-nos peixe mesmo em circunstâncias muito difíceis.


A dada altura, ouvi um barulho característico, um splash muito forte: um peixe grande subiu à superfície a pouco mais de 20 metros de mim.
Quando olhei já só havia espuma branca onde um ou dois segundos antes tinha estado algo. Julguei ser um golfinho, um roaz do Sado. São muitos comuns naquela zona, caçam os bordos do Canhão de Setúbal quase todos os dias. Mas não era.
Nem sequer um boto, um pequeno golfinho comum, também muito regulares por aquelas paragens.
Voltou a subir e percebi que era um atum. Firmou-se na caudal durante alguns metros, arrastando o corpo pesado, à vista, cabeça orgulhosa bem acima da linha de água, tempo suficiente para eu lhe conseguir descortinar as alhetas amarelas da cauda. Um peixe bonito, dos seus 60 a 80 kgs.
Haveria outros por baixo? As águas estão mais quentes que o normal, estamos ainda com 17ºC, quando seria pressuposto estarmos já na ordem dos 15ºC. O atum aproveitava as ainda presentes cavalas, as últimas antes da grande debandada.
Saem aquando da chegada das águas frias de Inverno, quando os valores baixam a 12/ 13ºC. Voltarão em massa aos mesmos locais na Primavera, quando o sol começa a brilhar e a aquecer a superfície a meio do dia.
E os atuns virão de novo atrás delas…

O dia estava nublado, cinzento carregado, a ameaçar alguma chuva, ainda que fraca.
Escolhi na minha caixa de jigs uma peça da marca Little Jack, com um peso de 40 gramas, cor metalizada, conforme vem de série, sem qualquer tipo de bricolage minha, o que é raro.
Gosto de adaptar os jigs ao meu jeito de pesca, e isso significa quase sempre mexer no equipamento. Não foi o caso, este jig da série Metal Adict 02 vem de fábrica assim, com um assiste simples à cabeça e um triplo à cauda.
Porque nesta altura aparecem lulas de bom tamanho, pareceu-me bom manter o triplo.




A razão da opção por esta cor foi a seguinte: em dias cinzentos, a quantidade de luz que chega aos fundos é reduzida. Os espelhados dos jigs captam os mais ínfimos raios de sol, e mostram ao peixe algo que ele procura avidamente: comida viva.
Uma sardinha não é diferente, aquilo que o predador vê em movimento é o que quer ver. Há brilho, vida, há vibrações que excitam o caçador, há algo de tamanho conveniente para ser comido.
Para um predador que caça na penumbra, o espelhado de um jig é um peixe que mostra o flanco, que procura escapar de si.
A falta de luz faz o resto.

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O resto é movimento nosso, é técnica, é dar a uma peça metálica o aspecto que teria um peixe daquele tamanho, vivo, a tentar escapar dali, mas…com dificuldades.
Muitas das pessoas que fazem jigging esquecem que a mola real de um ataque, aquilo que faz despoletar esse ataque, é a certeza de que se trata de uma presa pequena …em dificuldades.
O resto é a natureza a fazer, no seu melhor, é deixar seguir o curso da vida, dos que comem e dos que fogem para não ser comidos.
Uma bica viria lembrar-me que alguns metros acima da revolução de areia, havia peixe faminto. Foram muitos dias sem conseguirem baixar à pedra, sem chegarem ao seu alimento.




A maré continuava a subir, e com ela as minhas possibilidades cresciam.
Subitamente, já uns bons 12 a 14 metros acima do fundo, uma pancada forte. O peixe ficou no sítio, parado, estupefacto por algo não estar a decorrer de acordo com o habitual.
Para um peixe que está habituado a comer pequenas presas, será uma surpresa de todo o tamanho constatar que aquela tem uma força inabitual. O peixe passa de uma situação de domínio absoluto da situação, para uma fase em que tem dúvidas. Aquele espaço de segundos de interrogação dão-nos tempo para nos prepararmos para o que vem a seguir.
A dada altura o peixe percebe a prisão e arranca, bruscamente. Infelizmente para muitos, tarde demais, o anzol já está cravado.
Nunca irei lamentar o tempo que passo em casa a lubrificar os meus carretos, a verificar as baixadas, a substituir ao fim de um dia de pesca tudo aquilo que pode ter ficado fragilizado.
A baixada que pesca um dia não volta a pescar no dia seguinte. Por pouca utilização que tenha tido.
Na circunstância, estava com um fluorocarbono Varivas Ti, com cobertura de titânio, uma linha muito resistente à abrasão, e também ao nó. A maior parte das pessoas não sabe que as linhas que utilizam perdem acima de 30% de resistência na zona onde lhes fazem os nós….


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Em linhas que queremos finas, para poderem descer mais rápido e serem menos visíveis, a qualidade da baixada é fundamental. Sem isso, a quantidade de roturas é imensa, perdem-se muitos peixes, e… não vale a pena.
O peixe forçou o fundo, levou duas dezenas de metros de linha, e sabia-o a bater forte em baixo. A cobertura de titânio trata dessa parte, resiste. Os engenheiros da Varivas fazem o seu trabalho, bem feito, e isso deixa-me sereno.
Devagar, sem pressa nenhuma, levantei a cabeça ao peixe. A dada altura, já a meia água, senti os primeiros sinais de fraqueza. A partir daí, era apenas dar-lhe tempo. O sistema cardio vascular dos peixes não lhes permite muito tempo de esforço, cansam-se rapidamente. Um ou outro arranque, alguma linha saída do carreto, é algo próprio de quem pretende vender cara a derrota. Mais não é que o peixe a lutar com tudo o que tem do seu lado.
Mas luta contra sistemas que têm tudo isso em conta, que são fabricados do outro do mundo, por gente que sabe muito de pesca e produção de equipamentos.
Os técnicos da Daiwa e Shimano sabem tudo sobre arranques bruscos, sobre peixes que têm força. Produzem material ligeiro, fino, mas feito para suportar isso.
Daí a alguns minutos tinha o peixe a beijar a superfície.




Uma dourada de 5 kgs, bonita, a caçar peixes, algo que não é muito evidente para a maioria das pessoas, que as veem como simples mariscadoras. Não são!
As douradas são predadores activos, comem peixes, e por isso mesmo se lançam aos jigs. A quantidade de douradas por mim pescadas com jigs autoriza-me a dizer que elas estão muito para além dos bichinhos que apenas mastigam …mexilhões.

Um feliz ano de 2023 para todos vós.



Vítor Ganchinho



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5 Comentários

  1. Um Bom Ano para si e para,toda,a equipa do blog. Que no próximo ano continue com o excelente trabalho que tem vindo a desenvolver, pois consigo retirar sempre algo que posso aplicar ou refletir sobre os tipos de pesca que pratico, surfcasting e shore jigging, está última que será o meu tipo de pesca para 2023.
    Um Bom Ano de 2023 com tudo de bom.

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    Respostas
    1. Bom dia Helder

      Obrigado pelo seu comentário. É sempre motivador para todos nós saber que está alguém a ler do outro lado, e que se dá ao trabalho de nos contactar.
      Vamos continuar a trabalhar para poder apresentar artigos que tenham interesse.
      Um bom 2023 para si e com....peixes!


      Abraço
      Vitor

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  2. Boa tarde Vítor
    Mais um texto de nos manter agarrados e viciados na pesca e em tudo o que a envolve.
    Bonita dourada, mas o mais bonito é a reflexão em todos esses fatores que descreve e o saber fazer... O Porquê!

    Excelente 2023
    Abraço
    Toze

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    Respostas
    1. Bom dia grande Tozé!


      De vez em quando aparecem uns peixes, para nos lembrarmos de como era antigamente.
      Neste momento, há peixe nas pedras.

      Estamos a passar por uma conjuntura de condições anormalmente boa. E vai prolongar-se durante uns meses, está tudo alinhado para isso. Mesmo que a água venha a arrefecer, o que deve acontecer nas próximas semanas. Mas o peixe de Inverno já está aí, e vai permitir fazer boas pescarias.


      Um bom ano de 2023!


      Abraço
      Vitor




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  3. Fantástico!!

    Grande Abraço
    Feliz 2023

    Toze

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