Sem movimentação de água, a vida nos oceanos seria bem diferente daquilo que conhecemos, e para nós, pescadores, algo de absolutamente estranho e imprestável.
Admito que nenhum de nós tenha tentado imaginar o que seria possível fazer num mar completamente parado, sem vento, sem ondas, sem correntes, sem marés.
Conseguimos imaginar os nossos oceanos parados como um lago?
Temos vindo a sublinhar a importância da agitação marítima na vida dos peixes e nomeadamente dos nossos predadores favoritos, os robalos. Nos últimos artigos, destapámos um pouco o véu sobre algumas das condicionantes que obrigam o robalo a deslocar-se de uma para outra posição. As marés, colocando e retirando mar dos seus habituais postos de caça, obrigam-no a mover-se, a trabalhar ao ritmo da entrada e saída de água, no fundo a alimentar-se por ciclos, de acordo com a presença ou ausência desta.
As grandes deslocações de massas de água provocadas pela atracção gravitacional da lua e do sol proporcionam aos peixes a possibilidade de se alimentarem, de se deslocarem a longas distâncias, e de nos conseguirem escapar a nós, superpredadores.
Não conseguimos colocar armadilhas, redes, onde o mar bate forte.
Mas nem só de robalos vive o homem, que é como quem diz, existem muitos outros peixes que nos interessam que também dependem em absoluto da agitação marítima para fazer a sua vida.
Façamos um exercício de raciocínio: que alimentos teriam as nossas douradas caso não houvesse correntes? Seria ….igual? Existiriam douradas?
Carlos Campos com uma dourada feita com cavala. |
Provavelmente sim. Existiriam douradas, mas com hábitos alimentares diferentes, e por isso com dentição diferente. No Mediterrâneo, sem grandes marés, e por isso mesmo sem os mesmos mariscos que temos no Atlântico, as douradas adoptam uma postura distinta, mais de acordo com o comportamento de um predador de peixe miúdo. A alimentação muda, os hábitos alimentares mudam e o comportamento de caça é também ele diferente.
Por cá, mariscos como os perceves, as lapas, os mexilhões, as cracas, por exemplo, não existiriam caso não houvessem correntes. Estes pequenos seres dependem em absoluto da movimentação de águas para se alimentarem por filtragem.
Não havendo deslocação da massa líquida, não poderiam alimentar-se, logo não existiriam. Acaso encontram perceves em zonas de águas paradas? Podem os mexilhões deslocar-se de um lado para o outro para procurar sustento?
A resposta é negativa. São seres fixos, colados ao substrato rochoso, a sua estratégia de vida assenta em aproveitar a água que passa para recolherem nutrientes em suspensão na água, logo não poderiam alimentar-se.
Mas a questão não fica por aqui, pois temos a considerar a facilidade dos peixes chegarem aos pontos de concentração de alimento, através da subida das águas. As mexilhoeiras, que acabam por ter um pouco de tudo o que é alimento à sua volta, estariam perdidas caso o nível da água fosse constante. Porque estariam sempre acessíveis, seriam devastadas em pouco tempo.
Podem ver aqui, se olharem com atenção, cracas, mexilhões, lapas, e ainda algumas algas, potenciais alimentos para os peixes mariscadores. |
A quantidade de alimento disponível seria muito menor, caso não existissem marés. A um nível de água fixo, sem fluxos e refluxos, corresponderia um mar parado, logo, todos os peixes teriam à sua disposição uma quantidade de alimento fixa, sempre disponível, e por isso mesmo, finita. O espaço entre marés goza da possibilidade de descanso relativo durante o tempo em que os peixes não o podem voltar a atacar.
Nada disto existiria se a disponibilidade destas fontes de proteína estivessem sempre acessíveis.
Tudo está ligado: estes seres marinhos existem porque podem alimentar-se, podem crescer e reproduzir-se, e isso acontece porque as águas se movimentam.
A mesma coisa, mas com os perceves a ocuparem também algum espaço na rocha. Estes seres vivos precisam desesperadamente de águas agitadas. |
Por outro lado, há a considerar que a partir de algum tamanho, a resistência mecânica da casca dos mexilhões, por exemplo, está acima daquilo que os dentes das douradas e sargos mais pequenos conseguem quebrar. Os grandes mexilhões, aqueles que escaparam aos dentes fortes dos mariscadores, já só podem se quebrados por peixes com mandíbulas fortes.
As douradas são portadoras de um engenhoso sistema dentário: os incisivos prendem, cortam, e os molares esmagam as conchas de bivalves e moluscos.
As maiores douradas conseguem desenvolver uma pressão significativa com os seus dentes, e isso basta-lhes para no seu dia a dia esmagarem conchas e obterem alimento.
Se olharem bem para a boca de uma dourada conseguem adivinhar o que ela come preferencialmente. Não subestimem! Trata-se de mariscador mas com laivos de predador efectivo de pequenos peixes.
Se acham que aquela dentição está pensada exclusivamente para esmagar carapaças de caranguejos, navalhas, ou mexilhões, a realidade é bem distinta.
A prova disso é que é possível pescá-las com jigs metálicos que imitam peixes, com amostras de superfície, passeantes, que imitam peixes (no delta do Ebro, em Espanha, é mesmo a forma mais fácil de as pescar…).
A dourada que podem ver na foto abaixo, foi pescada com…cavala! Eu estava ao lado do Carlos e as fotos foram feitas por mim.
Reparem que o anzol entrou no sitio mais fácil onde pode penetrar: a comissura da boca, lateralmente, ou seja, no local que não tem dentes. O céu da boca da dourada é um intrincado bloco de dentes rombos, redondos, que serve para esmagar conchas, e ao mesmo tempo as protege das picadas dos nossos anzóis menos afiados.
Não sei se já tiveram a possibilidade de ver um sargo ou uma dourada a alimentar-se, na ressaca das ondas. A técnica é tão simples que chega a ser absurda: o peixe morde o perceve, e espera breves instantes. Poucos segundos depois, a onda chega com força e empurra o corpo do peixe, exercendo uma pressão que o perceve não consegue suportar.
Nada é por acaso. O formato espalmado do peixe, todo o seu peso corporal, são projectados para a frente pela imparável massa de água. A superfície larga do peixe, comprimido lateralmente, é fundamental para que esta técnica possa ser eficaz. Trata-se tão só do exímio aproveitamento das forças da natureza.
Por outro lado, se não houvesse ondas, …nada disto seria possível.
Assim, devemos entender que há todo um equilíbrio entre todos estes elos da cadeia alimentar: a existência de mariscos potencia a existência de mariscadores. Os dentes da dourada têm a força necessária para cortar e esmagar mexilhões, mas por outro lado também os mexilhões acabam por ter algumas possibilidades de sucesso, desde logo porque reproduzem aos milhões, libertando os seus óvulos na coluna de água, colonizando todo o tipo de superfícies.
Chegando a sítios onde a dourada pode não conseguir chegar.
Mas tudo assenta numa base: a movimentação das águas. Sem isso, nada existiria no mar, como o conhecemos.
Amanhã voltamos aos nossos robalos!
Vítor Ganchinho