BOLAS DE PEIXE

Se há pessoas que olham o mar e veem tudo igual, sem nada em particular que lhes chame a atenção, sem nada que quebre a monotonia do imenso azul, há no entanto outras que abrem os olhos e conseguem ter uma visão tridimensional do espaço à sua frente.
Veem um mar com comprimento, largura e profundidade. Veem a três dimensões um cenário onde a vida, com os seus dramas e conquistas, muda a cada instante.
O mar deixa, para essas pessoas que gostam de mar e de pesca, de ser apenas o ponto de contacto do ar com a água. Há algo abaixo, há peixes, vida e morte, dúvidas e interrogações.
A superfície, para quem quer ver mais, não é apenas um espelho virado ao sol, um caminho de barcos onde o “cima” é visível, conhecido, e o “baixo” um escuro de medos e mistérios insondáveis.
E isso já é ver algo diferente.
Se para os primeiros o mar é apenas o sítio para onde se lançam chumbadas e amostras, para outros aquela linha de superfície é apenas o começo de uma enorme e excitante aventura de conhecimento.
Eu gosto de pesca, mas gosto ainda mais de mar.
Porque vejo coisas incríveis no oceano a cada dia que saio. Vejo uma luta titânica pela sobrevivência diária, vejo imagens de incrível beleza, mas também de luta e dramatismo.
Os nossos peixes são todos eles super-heróis! Especializaram-se em encontrar formas de viver na fronteira do impossível. Se quiserem, arriscam a pele nos limites do possível.
O que eles fazem é um verdadeiro milagre, todos os dias, a todas as horas.
Sobrevivem, e isso já é incrível!


Serranus atricauda, um tipo de pequena garoupa cada vez mais frequente nas nossas águas. Se até aqui apenas eram possíveis nas nossas ilhas, neste momento já aparecem em águas continentais com alguma certeza. Crescem acima de 1,5 kg e salvo melhor opinião, …são bem-vindas.


Têm na foto acima um exemplo de resiliência: esta pequena garoupa pode ter chegado dos Açores, e é cada vez mais pescada por nós.
Não as encontrei até agora próximas dos pesos limites, em qualidade, mas a quantidade que ataca os meus jigs é cada vez maior. Lá chegarão.
Este é um bom exemplo, há de facto peixes que aparecem e desaparecem em função da manutenção mais ou menos prolongada de condições de mar que os favoreçam.
O aquecimento global irá baralhar e dar de novo, vamos ter muitas surpresas nos próximos tempos. Muitas espécies serão um problema, irão ocupar nichos biológicos que pertenciam a espécies que tradicionalmente encontramos por cá, e que forçosamente irão sofrer com os novos intrusos. Neste caso a minúscula “Serranus cabrilla”, a nossa garoupinha endémica, a sua concorrente ao mesmo espaço ecológico.
Se estivermos atentos, vamos conseguir detectar muitos outros exemplos. O que é fantástico é a capacidade de resiliência que as espécies mais procuradas revelam, pois levam pancada todos os dias.
Defendem-se apostando numa reprodução massiva.


Bolas de sardinhas miúdas são um alvo fácil para os nossos carnívoros, e sofrem verdadeiros massacres.


A cada dia acontece algo de nos deixar extasiados pelo seu insólito. Um ataque massivo de peixe às suas presas naturais é algo que acontece com frequência diária, e por vezes diante dos nossos olhos.
Basta-nos prestar atenção à actividade dos pássaros para o detectarmos.
Vejo muitas vezes “passareiras” à superfície, bolas de milhares de peixes atacados por baixo, pelos peixes que os trabalharam, que os empurraram para cima, e também atacados pelo ar, por pássaros desmandados dos céus que mergulham como setas, reclamando o seu quinhão.
Isto é um hino à capacidade de resistência de uma espécie. O estado em que fica um cardume depois deste massacre é uma perfeita lástima, meia dúzia de seres desorientados, perdidos da sua rotina diária.
E como sucede? Vejamos alguns detalhes.
Algumas zonas do oceano atraem os comedores de fito e zooplâncton. Concentram-se aí nesses pontos milhares e milhares de pequenos peixinhos, que seguem o seu desígnio de procurar comida.
Nem em todos os recantos da imensa extensão de água existem alimentos em igual quantidade. Há zonas sim e zonas não, e isso já pressupõe uma cadeia alimentar de valor acrescido em alguns pontos em detrimento de outros.
Quando procuramos os nossos robalos, as douradas, os sarrajões, os pargos, etc, aquilo que fazemos é procurar os “melhores pesqueiros”, ou seja, os pontos quentes, onde o habitat é mais completo, mais rico. Os peixes grandes estão aí, nesses locais onde o “puzzle” está mais completo. Os predadores procuram estar próximos por saberem que é aí que podem ter mais probabilidades de conseguir uma refeição.




Os pássaros, grandes oportunistas alados, fazem o mesmo.
Quando passamos por um bando de gaivotas, de cagarros, de gansos patolas, muitas vezes uma mistura de todos estes, pousados, aparentemente relaxados, mais não estão a fazer que …”esperar”.
Acreditem, não estão a apanhar banhos de sol, estão à espera do sinal para acudir a um frenesim que dura poucos minutos. E que, a seguir, tão bruscamente como começou, acaba. Por isso, o tempo de reacção é fundamental.
Irá voltar a acontecer noutro lado, por vezes a quilómetros de distância, sem se saber quando.
Mas há zonas mais querençudas, mais propensas a isso, normalmente nas rotas dos cetáceos, dos atuns, mas também de robalos ou anchovas, sarrajões, lírios, etc.
Eles, peixes e aves, vagueiam e fazem esperas em zonas onde a acção pode acontecer a qualquer momento.


Os golfinhos vão ao fundo e puxam para cima os cardumes. Todos irão tentar a sua sorte.


Normalmente aquilo que despoleta uma “passareira” é a acção de um grupo de peixes, ou mamíferos, concertados entre si.
Não é raro que os atuns surjam aliados aos golfinhos, pois ambos beneficiam de trabalhar em conjunto. No fim, haverá sempre alimento para todos.
O primeiro raid acontece em profundidade, com passagens cada vez mais próximas, a juntar o cardume. Por baixo, dos lados, surgem monstros que obrigam os indefesos peixinhos, sardinha, carapaus, cavalas, biqueirão, apara-lápis, a procurar o refúgio do interior daquela massa de peixe. Tratam-se de blocos compactos de peixe miúdo que os golfinhos trazem à superfície, depois de um aturado trabalho de grupo, onde cada um dos animais faz a sua parte.
Encontro por vezes as passareiras dos robalos, e mais raramente as de atuns. Os golfinhos fazem-nas muitas vezes ao longo do dia, e já tive oportunidade de mergulhar numa delas, a norte de Sines. É assustador!
É um perfeito acaso que alguém esteja equipado e consiga reagir a tempo de chegar ao local e entrar para a água. Muito menos que consiga ter condições para filmar com qualidade.
Aquilo que mais me preocupou enquanto estive aqueles minutos a submergir próximo da bola de peixes, cavalas na circunstância, foi o estrondo dos gansos patolas a bater na água.
Pensaria eu que nem se atreveriam a aproximar-se, mas de facto, quando a fome aperta, os cuidados ficam para segundo plano. Aqueles bicos afiados são uma arma de arremesso, uma flecha, e a dada altura dei por mim a afastar-me alguns metros, para dar espaço.
O silvo daqueles corpos a cair na água é algo que nunca esquecerei. Já tive muitas vezes a oportunidade de, estando no barco, ver como caem a uma velocidade vertiginosa sobre o cardume de peixes. Inclusive de assistir várias vezes à entrada na água para recolher peixes lançados por mim.
O ruído da deslocação de ar de um alcatraz a cair, sobretudo nos últimos metros, no máximo de aceleração, é assustador. O bico penetra no mar como um estilete, o crânio protegido por um engenhoso sistema de amortecimento, uma matéria “esponjosa” que absorve o impacto.
Digo-vos que o espaço de tempo que estes pássaros levam a cruzar as asas atrás do corpo foi telemetricamente cronometrado em …0.14 segundos. Um pouco de atraso nesta operação e seria o fim, as asas iriam inevitavelmente partir-se no brutal choque com o meio líquido.
Uma ave marinha de asa partida está …morta. Por isso, instintivamente recolhem as asas uma fracção de segundo antes da pancada. Irão a seguir descer até aos 10/ 12 metros, procurando capturar o seu peixe.




Bolas de pequenos peixes estarrecidos de medo, não são coisas que durem eternamente, nem isso seria sustentável. Os predadores servem-se e vão embora.
Ficar num daqueles sítios, onde aconteceu uma carnificina, não pode dar saúde a ninguém. É comer e andar, antes que chegue algo maior.
E isso torna muito difícil captar imagens. Para além disso, se estou por vezes sozinho, tenho de filmar e ao mesmo tempo conduzir o barco. Uma mão para cada coisa.
Não é fácil!
Aquilo que fica visível da superfície são escamas brilhantes e alguns peixes por baixo, a aproveitar os restos. Mas no fundo há algo bem interessante….assim tenhamos o equipamento montado, sempre pronto a ser utilizado.
Não têm ideia da quantidade de pargos que já fiz assim. Engolem os jigs! Ficam frenéticos!
Eles estão lá em baixo à espera de comida, restos de peixes trucidados, metades, cabeças, tudo o que possam imaginar que sobra do massacre feito acima, por dentes ávidos de sangue, e que cai para o fundo em folha seca.
Os meus jigs, chapas leves de slow jigging, formatos mais curtos e um pouco mais largos, lançados devagar, com o dedo na bobine a travar a linha... também caem assim...



Vítor Ganchinho



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