OS PEIXES ESCAPAM...? QUE BOM!...

Os peixes escapam-nos por erros nossos.
Nada é mais humano que atribuir a outras causas, nomeadamente ao tão português “azar”, a algo que é nossa culpa exclusiva.
Cometemos erros de palmatória, porque quando chega o momento crítico, falhamos.
Por nervos, por executar mal, por não saber fazer, a verdade é que não levamos o trabalho até ao fim.
Os sistemas de pesca que utilizamos são demasiado perfeitos para que um peixe se possa libertar facilmente. Os nossos carretos têm um drag, as nossas canas são muito elásticas, as linhas de uma incrível resistência, os anzóis perfeitos.
E todavia os peixes conseguem fugir. Errar é humano, dizemos.
Esta é a explicação mais terrena e mais simplória que conseguimos encontrar. Também a mais desconcertante, porquanto revela um encolher de ombros que não ajuda, nem potencia, eventuais correções.




Sabemos que não iremos vencer sempre.
Eu próprio, que vos escrevo estas linhas, acredito estar muito melhor documentado sobre falhanços que propriamente sobre sucessos.
Não imaginam a quantidade absurda de peixes que já me escaparam! Mas esses foram aqueles com os quais aprendi a fazer, foram os meus “professores”.
Ao fim de 53 anos de pesca, aquilo que retenho é que me ficaram gravados na memória muito mais casos de peixes perdidos, de enormes arrelias, de decepções de roer as unhas, que todos os outros, os que entraram a caixa.
Hoje, que já não fico nervoso com picadas de cortar a respiração, que já executo a pesca com a frieza necessária para ter muito mais sucessos que desaires, olho para mim e tenho pena.
Tenho pena de já não perder tantos peixes, de não ficar com frio na barriga ao perceber que a linha esticou e voltei a conseguir enganar um daqueles matulões.
Tenho pena de me terem desaparecido as borboletas do estômago. Que bom era sentir aquele nervoso miudinho quando a cana dobrava como um palito fino, quando a linha hesitava em aguentar ou romper, quando o peixe puxava desabrido intermináveis metros e metros de linha.
O desespero de achar que poderiam escapar-me deu lugar a uma certeza que me incomoda, que me retira alegria e excitação por conseguir um resultado positivo. E isso não é nada bom, acreditem.


Uma paisagem desoladora. Ter a sonda do barco a marcar um cardume de salemas, logo por azar vegetarianas, não é o sonho de nenhum pescador.


Bem pior que isso é não ter sequer a possibilidade de ferrar um peixe. Acham que isso é assim tão estranho? Pois fiquem a saber que não.
Há imensa gente que, durante um dia inteiro, não chega a ter a possibilidade de ver a cana vibrar, por um segundo que seja. Não têm um único toque.
E isso deve ser o mais deprimente que pode acontecer a um pescador. Pior que perder um peixe.
Pescam em locais que são verdadeiros desertos, com escassos vestígios de vida, e tudo porque insistem em ir pescar para sítios muito próximos das cidades, dos portos.
O objectivo é, segundo alguns deles me referem, o de reduzir despesas. A lógica é algo como “pescamos pouco, mas também não gastamos dinheiro em gasolina”...
Bom, a cada um a sua solução. Na verdade, não há saídas de pesca baratas, porque pescar sempre implica algum custo. Se o resultado desse esforço é nulo, …se não há ao menos alguma compensação emocional, fica mais caro. Não ter uma única picada é desesperante, mas acontece a muita gente. Os mestres sabem que não vão conseguir peixes, eles sabem que o peixe está mais longe mas isso implica custos acrescidos de combustível.
Por vezes passo por barcos carregados de pessoas, e aquilo que vejo são pessoas tristes, amorfas, descrentes.
Pessoas estáticas como uma estátua de bronze, canas pendidas, moles, a não augurar muita saúde, emprego e longevidade ao mestre do barco.
Muito sinceramente, por vezes tenho dificuldade em entender se estão só a dormir, ou se estão mortas.
Já viram bem o pincel que não é alguém ter de rebocar a terra um barco cheio de cadáveres, de pescadores que morreram de tédio?!


Alguns fundos são de uma desolação profunda. Os anos de arrasto sucessivo, as redes abandonadas no fundo, as linhas perdidas de pescadores tornam alguns locais verdadeiros cemitérios. Porque são perto de terra e os mestres não gastam combustível, continuam a ser os eleitos para passar um dia de …”não pesca”.


Quando passo por uma resma de barcos estacionados nas primeiras pedras à saída de Setúbal, a minutos da cidade, em pedras que já não veem um peixe passar-lhes por cima há anos, aquilo que me vem à memória é que mais uma vez as pessoas optaram pelo mínimo resultado possível em peixe, pagando o mínimo em euros. Isso faz sentido.
Faz de resto tanto sentido quanto chegar ao pesqueiro e tomar de imediato uma garrafa de litro e meio de formol forte.
Sim, porque à volta para cima, vejo-as na mesma posição, estáticas, completamente embalsamadas.
Será que estas pessoas não deveriam ser informadas de que estão ali só a fazer figura de …corpo presente?



Vítor Ganchinho



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