HOMEM ATACA POLVO

Bem sei que aquilo que seria um título decente era precisamente o oposto: polvo ataca homem! Vocês pelam-se por tragédias!...
O cinema americano de Hollywood está cheio de filmes de sucesso de monstros marinhos que levam barcos ao fundo, de polvos gigantescos que abraçam as embarcações e engolem vivas tripulações inteiras.
Mas em Portugal, para fazer uma coisa dessas a três dezenas de bravos marinheiros, só mesmo uma empenhada menina de Coina, nós não temos polvos a esse nível.
Conto-vos a história, constrangido por ter de reconhecer que este episódio podia ter corrido muito mal para o meu amigo Carlos Campos... e para mim.

Estávamos nós a pescar a dois, mano a mano. Conseguimos por obra e graça do Espírito Santo umas quantas cavalas frescas. A água estava gelada, os peixes não tinham mobilidade nenhuma... e aquilo estava ruim.
Como eu costumo dizer, “mais triste só chorando aos gritos, em pranto descontrolado…”.
Ao fim de algum tempo, e por força das pobres condições de pesca, farto daquilo, resolvi perguntar ao Carlinhos se ele via como algo de ruim, a possibilidade de …regressarmos a terra.
Na verdade, o vento frio, cortante e persistente que se fazia sentir não ajudava a nada. Ondulação, ar frio, vento forte, céu cinzento chumbo, são factores que desanimam qualquer um, e mais ainda a mim, que estava com a garganta toda inflamada, dos rigores das geadas dos últimos dias.
A vontade que eu tinha de estar ali era nula, e se o fazia era mesmo para dar algumas horas de pesca ao meu companheiro, que não tinha tido a possibilidade de pescar depois de termos voltado da nossa viagem ao Japão.
Tudo se torna difícil quando não estamos a gosto, quando o vento não nos dá tréguas por um segundo que seja.
Numa conjuntura particularmente ruim, a onda alta apenas dificultava a pesca um pouco mais. O balanço do barco, o seu inevitável sobe e desce, dá-nos e tira-nos possibilidades de detectar os toques, a um ritmo que nos obriga a sucessivas compensações, a trabalho de pulso e basculação da cana.
Mas a vontade de ir era muita e eu achei que devia fazê-lo. O Carlos sacrifica-se tanto pelas minhas pescas que merece que eu o faça também por ele, quando assim tem de ser.
E ali estava ele, a bater-se com algo que lhe pareceu um safio. Garantiu-me que era um safio. Segundo ele, ferrou, mostrou peso, e largou de seguida.
Todos sabemos que os safios, peixe rustico até onde se pode ser rustico, aguentam carga e não é sequer um anzol na queixada que os impede de voltar a morder.
E no caso, o anzol tinha subido, o peixe estava apenas “ressentido” e tristonho por aquele troço de cavala lhe ter escapado. Por isso mesmo, de certeza estaria disposto a atacar de novo.
Resolvi esperar mais um pouco, e dar ao Carlinhos a possibilidade de tentar mais uma vez.


                         Polvo de 9,1 kgs


Nestas coisas, e depois de assumido o desejo de sair dali, nada pior que a pressão de ter alguém ao lado a olhar, a contar os segundos que estamos a gastar para conseguir algo.
A pesca tem um ritmo próprio, muito seu, e é de bom tom que não se apresse ninguém.
Por isso decidi continuar a pescar, mesmo que o entusiasmo fosse nulo. Melhor isso que estar a olhar fixamente para ele, a olhar para o ponteiro dos segundos do relógio. Ninguém merece tão maus tratos.
Por isso mesmo, mantive a minha linha no fundo, fazendo de conta que sim, por respeito para com o meu companheiro.
A dada altura, e quando já estava a lançar as iscas fora, senti um toque estranho na linha. Aquilo não era um peixe de escama, esses são sempre mais nervosos, mais repentistas.
Era sim algo que indiscutivelmente tinha peso, tinha força, e sabia bem do poder que havia naquele corpo.
Tentei ferrar e ficou preso.
Nestes casos, pode ser um pouco disto tudo: um safio que engole a isca e reentra na sua toca, de onde nunca o conseguiremos tirar.
Pode ser uma moreia mais afoita que faz sensivelmente o mesmo trabalho, e porque naquela zona podem suplantar os 4/ 5 kgs, vai dar igual.
E pode ser ainda algo que engana qualquer pescador, porque prende, mas tem movimento: uma rede, ou uma gorgónia, que tem uma fixação ao fundo suficientemente robusta para fazer transpirar o mais atlético dos pescadores. As pessoas são enganadas porque acreditam até ao limite que o que prende o anzol é mesmo um peixe.
Basta o mar ter um toque de fundo, fazer subir e baixar o barco, esticar e folgar a linha, e temos o cenário perfeito para induzir em erro.
Mas no fim disto tudo, podia ainda ser uma outra coisa...


Aqui ainda numa fase em que estaria a tentar fazer “braço de ferro” com o animal. Neste ponto, o empate técnico era ainda uma realidade...


Em termos técnicos, ferrar um polvo nada tem de extraordinário. O animal lança-se sobre a isca, cobre-a com os tentáculos, na sua ânsia de a capturar. Na perspectiva do polvo, aquilo é um troço de cavala, com cheiro, com brilho, com sabor. E sendo comida, qualquer tipo de comida, interessa sempre a um polvo.
Quando ferrei, senti que não iria conseguir safar a pesca, porque a pressão era muita, demasiada. Dei um pouco de linha, e procurei, à mão, entender que tipo de prisão seria.
Na verdade, ao esticar a linha ao limite, senti repentinamente que esta teria soltado. O anzol estava de novo livre, e restava-me voltar a enrolar linha.
É sempre de verificar o afiamento dos anzois, porque normalmente nestes casos em que a peça vai à pedra, ou o que seja, quer a ponta do anzol quer mesmo a linha do estralho próximo do empate, podem ficar afectadas.
Nada pior que ter uma rotura com o peixe seguinte por incúria. Ao recuperar a linha verifiquei que afinal estava tudo bem, nada de danos.
Mas para mim, chegava e sobrava, a pesca estava terminada.

E foi aí que o Carlinhos, num assomo de coragem, resolveu lançar uma derradeira vez.
E passados breves segundos, ei-lo de novo ferrado, com algo que dobrava ao limite a sua cana Castiz`m, da Daiwa. Para fazer dobrar a cana àquele ponto, teria de ser algo …pesado.
Seria seguramente algo de muito pesado mesmo, a ver pelo esforço facial que fazia para içar o dito …”peixe”.
Ao chegar à superfície, já eu estava com a rede para dar final feliz à captura que viria a ser a melhor do dia: um magnífico polvo.
Não tardou o Carlos a “baptizar” o dito, atirando o palpite de…”Vitor, este é um polvo de 3 kgs, certo?”.
Respondi-lhe dando um número que na altura lhe terá parecido absurdo: 7 kgs.
Bem sei da densidade que estes animais têm, tal como as abróteas. Parecem sempre pesar menos que o seu peso real, ao contrário de outros peixes, muito menos densos, o caso dos sargos, por exemplo.
Um sargo de 2 kgs é um peixe gigantesco, um polvo de 2 kgs é uma carracinha miúda. Diferenças de densidade corporal explicam isso.


Reparem o olhar assassino que lança ao pobre do bicho.


De repente, vejo-o mudar o semblante, passar a exibir um ar cínico, de assassino em série, um “serial killer” que não hesitaria por um instante em cometer um crime com arma branca.
Digo isto porque o cabo da faca era branco.
Subitamente, o Carlos revirou os olhos, encheu o peito de ar e desatou a dar facadas no bicho, como quem comete um crime passional.
As imagens abaixo dispensam qualquer tipo de comentário:




E foi aqui que percebi que não era apenas o polvo que corria perigo de vida. O ambiente estava pesado, o Carlos sentia despertar em si dotes de matador e estava a dar largas aos seus piores instintos. Confesso que temi pela vida. A seguir ao polvo seria eu?!....
Os seus olhos raiados de sangue não faziam prever nada de bom. Com a faca na mão, olhou-me fixamente por alguns segundos, mas no fundo do seu cérebro algo o deve ter chamado à razão, porque de repente mudou de cor, acalmou e respirou fundo.
O polvo esse não aguentou o tratamento, desistiu, e deixou cair os braços inertes, sem vida.

Agora é dar-lhe três meses de congelador, e a seguir muito tempo de panela de pressão, até o pipo se fartar de apitar. Resulta.
Eu faço isso à minha Lena, que já tem 55 anos, e sempre a amacio um pouco...



Vítor Ganchinho



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4 Comentários

  1. Fiquei enaltecido com tal discrição, mas fique descansado que serial killer não! Ainda por cima, calhando, ainda viria a nado! :)

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    1. Bom dia!


      A nado nunca, porque há mais polvos na zona e não é liquido que não possa acontecer um acidente. Eles gostam de coisas a brilhar e qualquer fivela de cinto é o suficiente para acontecer uma desgraça.

      Basta brilhar...



      Abraço
      Vitor

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  2. Top top top 🤣👍
    Grande abraço para o Vítor e para o Carlos.

    Toze

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    1. Bom dia Tozé



      Na zona onde este polvo foi capturado, há muitos, e por vezes bem maiores.
      Já os capturei até aos 11 kgs, mas ao mergulho.


      Abraço
      Vitor

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