AS "BIMBAS"

Não estou aqui para vos escrever contos juvenis. 
Nem sequer páginas sobre borboletas e arco-íris coloridos.
Escrevo sobre pesca, com tudo o que ela tem de agreste, duro e ruim. O tema de hoje será tudo menos suave, diria até áspero, rude, mas faz parte do fenómeno da pesca e por consequência faz parte do conteúdo do blog.
Falo-vos hoje de pesca artesanal e das pequenas e frágeis embarcações angolanas. As localmente chamadas …“bimbas”.
Os passeios de barco feitos por gente rica, equipada com embarcações de luxo, onde não faltam camas, frigoríficos com bebidas frescas e chuveiros estão para as “bimbas” como uma loira de mini saia e saltos altos dos shoppings está para uma camponesa que ganha a sua vida a cavar a terra.
Longa vida a quem ganha o seu sustento com as suas mãos calejadas, de forma honrada e esforçada!
Hoje, um artigo dedicado aos que pescam em barcos a remos, aos que pescam pela sua vida.


O mar não é um obstáculo, é um caminho. Mas não é igual para todos. Uma placa de esferovite, alguns paus cruzados e muito engenho. Eis uma “bimba”, um barco típico utilizado na pesca artesanal.


Muitas pessoas que conheço em Portugal pescam menos bem porque lhes falta a maior motivação de todas: a fome.
Quando temos de ser bem sucedidos, quando a nossa vida depende do resultado da nossa pesca, a “motivação” é outra.
Esta gente tem uma noção de pesca diferente, porque também a sua vida é bem diferente.
Utilizam os seus parcos meios para conseguir extrair sustento de um meio que não é o seu, que é violento, que os mata, mas que é ainda assim o único a que podem recorrer.
Aquilo que para nós é acessório, para esta gente é mesmo o essencial, é tudo. A vontade de vencer, de passar obstáculos, resume-se, em duas palavras a isto: ter comida.
É fascinante vê-los, remadores incansáveis nas suas mais que improvisadas “bimbas”, a remar contra a corrente, contra o vento, contra a morte.


Aqui temos uma encostada à costa, mas podemos vê-las a quilómetros da costa, a trabalhar com redes, na esperança de conseguir um lance que mude a sorte, que mude a vida.


Exploram todas as possibilidades de obter alimento, procuram nos sítios mais incríveis, e tanto quanto possível, perto da costa.
Porque cada palmo de água mais longe lhes sai das suas mãos, das suas costas, procuram encontrar peixe em zonas abrigadas dos ventos, onde o retorno a terra seja menos penoso.
Têm um caminho, um mapa mental que percorrem com a sua barca, e que pressupõe peixe, no fim. Pressuponho que nem sempre consigam concretizar os seus planos, pois uma aragem de vento pode comprometê-los irremediavelmente. Mas encontrámo-los muitas vezes ao largo, porque a necessidade a isso obriga. São forçados a arriscar tudo, porque a fome aperta e faz falta peixe.
Quando o conseguem, o sucesso é sempre transitório, porque limitado ao que conseguem pescar para esse dia. Não há frigoríficos. No dia seguinte, o drama pela alimentação continua e há que voltar ao mar.
A pressa de pescar é a pressa do estômago. A sabedoria que possam ter do acto de pesca é limitada pela reduzida capacidade de deslocamento, pela impossibilidade física de poder arriscar um pouco mais, de ir mais além.
Porque de cada vez que uma jangada daquelas sai para o largo, quem está em cima dela arrisca mais que a pescaria do dia, arrisca a vida.
Se querem um exemplo de como é dura a pesca por aquelas paragens, e a exiguidade de meios, vejam esta imagem abaixo:


Aceitariam os meus caros leitores sair para o mar nesta “embarcação”? A remos?!...


Não pescam muito, mas ainda assim o suficiente para sobreviver. E são muitas, pelo que os valores em toneladas de peixe capturados acabam por ser significativos.
O contraste entre estas “ilhas de qualquer coisa que flutue”, tábuas, garrafas vazias, paus, esferovite, e um barco a sério é tão grande, que só com grande benevolência se lhes pode chamar embarcação.
Ainda assim, garantem o sustento a esta gente, e quantas vezes a uma numerosa família que espera por peixe, em terra. Vou dar-vos abaixo os números percentuais das capturas de peixe atribuídas a estas “bimbas”, e vão ver que são significativos.


Duas realidades distintas.


Tudo está bem quando as marés ajudam, mas sabemos que no mar as coisas mudam num ápice.
As tempestades africanas são de respeito. Quando chegam, formam-se rapidamente e podem destruir uma “bimba” em segundos.
Não há força nem remos que possam pôr uma jangada de madeira a salvo, quando os ventos sopram forte. Digo-vos mais: muitas destas pessoas nem sequer sabem nadar...


A rapidez com que se forma uma tempestade não permite escapar a quem não tem um motor. O risco existe.


Num país que ainda tem recursos piscícolas assinaláveis, e sendo isso tão raro a nível global, terá de haver boas explicações para tal facto.
É verdade que a guerra afastou durante muitos anos os interessados no peixe, retardou imenso a inevitável sobre-exploração dos recursos.
Mas também a frota pesqueira nacional angolana não terá uma real capacidade de fazer muito mais. Porventura a venda de quotas de pesca a países estrangeiros será uma solução mais evidente.
Vejamos alguns números, e a representatividade em termos de capturas, em toneladas, reportadas a 2017 e 2018, respectivamente:



Fazer aquicultura num país tão rico em peixe, será muito parecido a tentar vender areia no deserto. É cedo para isso.
Estima-se que a pesca ilegal, não declarada, possa representar entre 10 e 15% do total das capturas. Serão números optimistas, atendendo à capacidade de fiscalização do país...


As embarcações comerciais obsoletas são fundeadas junto à costa, fora das rotas de navegação, passam a destroços, e serão criadouros de peixe para toda a região.


Podem imaginar o que vive dentro do cavername. Em zonas onde o mergulho em apneia é possível, com águas limpas, é natural que até aos 25/30 metros, a quantidade de peixe seja menor, mas a foz dos rios e o seu aluvião corta rente a possibilidade de fazer caça submarina, e por isso mesmo, por falta de visibilidade, a quantidade de peixe e mariscos, nomeadamente lagostas, multiplica-se rapidamente.
Vi pessoas que as visitam, em pirogas, e mesmo neste estado deplorável ainda assim procuram algo que possa ser útil. Peças, chapas, tudo o que possa ser trocado ou vendido.
Se não são capazes de ver nada de interessante nestas chapas ferrugentas e retorcidas, é porque não são africanos. Há quem veja ali futuros fogareiros, chapas para grelhar peixe, divisórias para palhotas, escadas, cadeiras, etc, etc...




Se acham estranho, é ver o aproveitamento que é feito de tudo, literalmente tudo, nas circunstâncias mais estranhas.
Por exemplo, bancos e cadeiras de restaurante, feitos com restos de banheiras. Ora aí vai:


Isto é África em todo o seu esplendor. E quem não entender o pitoresco e a beleza que isto tem, não precisa de lá ir.


Os recursos naturais, se falamos de petróleo, madeiras, ouro, diamantes, peixe, são imensos, mas isso não quer dizer que essa riqueza chegue a todos.
Não vos comento qual o valor do salário mensal médio naquele país, mas posso adiantar que não é alto, muito inferior ao que se ganha diariamente em Portugal. E isso obriga a um aproveitamento de todos os recursos possíveis.
E força a um espírito inventivo que me fascina, que me deixa com a crença de que não está tudo inventado, que temos ainda um longo caminho a percorrer, e seguramente muito a aprender com quem faz de nada, ...tudo. 
Eles são... incríveis!


Em terra é isto. O mar dá o resto, o peixe.


E peixe não falta. A julgar pelas capturas que são feitas diariamente, mesmo até à pesca à linha, os números são assustadores, mas longe de beliscar os recursos existentes.
Não faltará quem deprecie, quem encontre defeitos naquilo que os não tem. A “estória” das águas quentes que não produzem peixe de qualidade, etc, ...pois sim, as garoupas que ali pescamos são as mesmas que alguém irá comprar cá, num qualquer mercado nacional, sob a designação de “garoupa legítima” e apregoadas como o melhor peixe do mundo.
Vão aos sites de venda de peixe e entendem o que digo. A proveniência pode ser Angola, Marrocos, Mauritânia, mas o peixe vendido em Portugal é sempre o mesmo.


O peixe de que vos falo é este, o mero branco, Epinephelus aeneus, uma especialidade na cozinha.


As grandes empresas de venda de peixe, quer fresco quer congelado, prestam uma atenção redobrada a estas fontes de abastecimento.
Para eles, as garoupas que fizeram parte destes relatos, e que para mim representam emoção, luta, pesca, serão sempre e só consideradas…”stock”.
Gosto de as ver como peixes fantásticos, capazes de nos derrotarem, de nos partirem linhas que julgamos extrafortes.
Ao longo destes dias dei-vos a conhecer peixes que não serão possíveis a quem pesca em Portugal. Mas há outras coisas, e num mar rico como o nosso, é apenas questão de “calibrar” os alvos, e sair ao mar com vontade, com a ilusão nos olhos.
Pescar é preciso, e no fim do arco-íris estará sempre um peixe preparado para nos dar luta. Não interessa assim tanto se é um robalo, um pargo, uma dourada. É um peixe.


Um país onde se podem capturar badejos quadrados a partir do cais, é algo de anormal. E são mesmo muitos, estão em todo o lado, …o que garante diversão para quem pesca LRF. Foto Luís Ramos, a peixe devolvido à água em boas condições de sobrevivência.


De terra, a lançar da costa, de barco, o importante é mesmo pescar.
Procurem não utilizar embarcações que possam ser confundidas com…”bimbas”. Aí arriscam demasiado, pese eu veja nas nossas águas alguns barcos que poderiam ser classificados como tal...

Na próxima semana terminamos a série de artigos sobre Angola.



Vítor Ganchinho



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4 Comentários

  1. Tenho muita pena que esteja a chegar ao fim esta série de artigos que me trazem muita alegria e um sentimento nostálgico, pois foi uma semana fantástica de pesca juntos a bordo do incrível. Sei que foi apenas o começo e um até já, pois Angola e os seus montros esperam por si 😄💪 Um abraço enorme e bjinhos à Lena meus e da Carla

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    1. Grande Luis!!


      Deste lado há vento.
      Hoje não foi dia de sair ao mar, fiquei a arrumar a casa de pesca, em casa.

      De vez em quando sabe bem organizar as coisas.
      Aproveitei também para procurar saber das minhas canas encomendadas no Japão.
      Estão mesmo demoradas. Aquela gente já só faz material depois de ter as encomendas na mão. Há marcas a dar mais de um ano de prazo de entrega.

      Os artigos estão a chegar ao fim ( acho que vão sair mais dois...) não por falta de assunto, mas porque há temas que têm de ser tratados agora, sob pena de "prescreverem" em poucas semanas. Este ano passámos do Inverno ao Verão, sem Primavera. Em Abril não choveu nada.

      Os pargos foram muito menos que o ano passado, embora os robalos estejam agora em força. Estão a subir, e já há muitos em locais muito acessíveis.

      Vou continuar a lutar por um conjunto de canas de qualidade, e se não conseguir melhor, levo paus de vassoura.


      Abraço
      Vitor




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    2. Estamos à vossa espera, venham daí para podermos meter o barco na água e dar uma volta deste lado. O que não prometo é que a Carla possa pescar garoupas de 50 kgs, têm estado escassas em Sesimbra.

      Beijinhos para ela.


      Vitor

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