Tudo nos mata!
O calor, a carga de humidade relativa do ar, o tamanho e força dos peixes. E a quantidade de peixe.
Ao fim de cada dia o meu corpo chegava a terra com os braços desfeitos de cansaço. Eu, que treinei em ginásio afincadamente, que preparei esta viagem de forma a estar com níveis de força acima do meu normal, confesso-vos que ao segundo dia estava de rastos.
Arrancar peixes do fundo a 130 a 140 metros mata-nos depressa. Os níveis de força bruta daquelas bestas chega a assustar-nos.
Não há forma de transferir intelectualidade e técnica para um combate de boxe cujas regras são absolutamente simples: ganha o mais forte.
É de força que falamos, e pouco mais. A técnica ali tem aplicação diminuta, já que nos limitamos a segurar a cana e carreto com força, para não nos serem arrancados das mãos. E enrolamos linha, …quando possível.
Içar do fundo, e literalmente a palavra é essa, um peixe que tem peso, tem força e sabe aplicá-la, será sempre tudo menos fácil.
É absolutamente esgotante fazer força debaixo de um sol escaldante, com uma humidade de nos fazer destilar suor. Por força de um sol directo e carregado a UV máximos, não podemos deixar de proteger o corpo e a cara com algo que nos cubra daquele martírio.
E que por isso mesmo nos impede de sentir alguma brisa, se a houver.
Estufamos dentro das roupas, porque não podemos retirá-las. A água do mar a 28/ 29ºC não ajuda, pelo contrário, aquece ainda mais a atmosfera e coze-nos em lume brando...
Ao acordar, a questão que mais vezes coloquei a mim próprio foi: porque estala o meu corpo, que barulhos estranhos são estes?
Muitos factores jogaram contra mim.
Habituado a trabalhar em Portugal a baixas profundidades, no máximo 70 metros, com jigs muito leves, de 10 a 60 gramas, e com conjuntos de canas, carretos e linhas ultra-light, sofri na pele a falta de treino e habituação a cargas tão pesadas.
Pesquei na cota dos 127 a 130 metros, com jigs de 160/ 180 gr, a peixes que, nalguns dos casos, literalmente teriam mais força que eu.
Mesmo peixes bem mais pequenos, e por factores que se prendem com a temperatura mais elevada e a consequente capacidade de mobilização de todos os recursos físicos, apresentam uma luta que está muito acima dos nossos lusos peixes.
Todos sabemos que recolher um peixe em água demasiado fria é um simples exercício de recolha de linha. O metabolismo dos nossos peixes, quando gelados pelas águas de Inverno, é muito baixo, limita-os.
Não é o caso, estes estão na posse de todas as suas faculdades, e sobretudo estão muito fundos, durante o longo percurso de subida alteram-nos a respiração, esgotam-nos as forças. Vejam isto, com um peixe pequeno:
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Querer competir com o meu anfitrião seria sempre uma tarefa desnecessária, inglória e inútil. O meu melhor, com os pulmões a arfar, de dentes cerrados e a espumar da boca, não chegava para acompanhar o ritmo pausado de quem corre por dentro da pista, de quem marca o ritmo e parece a cada instante não estar a sofrer o mínimo desgaste. Ele criou defesas contra a fadiga máxima, adoptando posturas e gestos que economizam energia. E adaptou-se ao clima, estando hoje perfeitamente integrado no sistema.
Pesca de segunda a sexta, deixando os fins de semana para a família. Na verdade acredito que seria demasiado desgastante não dar descanso ao corpo, porque o esforço físico é tremendo.
Quem chega quer pescar, quer viver as emoções que ele vive todos os dias. E assim sendo, a alvorada é para as 7.00 da manhã, já dia, e com os músculos preparados para a pancada.
Sabemos que ao longo da jornada de pesca vai haver momentos de tensão máxima, e por isso a alimentação e sobretudo a hidratação são fundamentais. Cada peixe faz-se merecer, ali não acontecem pescas fáceis.
Os momentos de descanso são aqueles que dedicamos a mudar de sítio. Quando os peixes deixam de reagir aos jigs, é tempo de mudar de zona. E, quando lançamos pela primeira vez num sítio novo, independentemente da hora do dia, haverá algo a fazer peso outra vez.
Os primeiros lances são sempre decisivos para que se consiga o melhor que o pesqueiro pode dar. Por isso, concentração máxima, nada de enleios ou de perdas de tempo. Quem tem os gestos tão mecanizados quanto o Luís, não comete erros.
Pode perder um ou outro peixe, mas sabe sempre o porquê. Se lhe acontece, vê e revê os anzóis, muda-lhes o tamanho para maior, se for caso disso.
Apenas pesca, mais e mais, cavando um fosso entre quem está ali a aprender e quem já sabe quase tudo daquilo.
Podemos até tentar competir com ele em número e qualidade de capturas, mas é muito natural que o Luís Ramos nem o chegue a perceber.
É isto que nos leva lá! São momentos que não esquecemos, porque somos levados ao limite das nossas forças. |
Porque conhece os peixes um a um, sabe desde o primeiro momento o que tem na linha. E trabalha-os em função disso.
Por exemplo o facto de, após vencer a primeira resistência do peixe, passar a trabalhá-lo com a cana em cima do joelho. Pouco ortodoxo? Talvez, mas ele é um profissional e sabe bem a razão pela qual faz dessa forma.
Ao fim de dois dias, descobri que sim, que afinal como ele fazia era bem mais fácil fazer subir peixes de grande porte. Adoptei o estilo Luís Ramos, …em “cima do joelho”…e ficou mais fácil.
Coloquem aspas neste “mais fácil”, por favor.
Ali, pescamos com o drag do carreto completamente cerrado. Zero embraiagem. Directo ao osso.
Nestas condições, tentar pescar com material de segunda linha é pura perda de tempo. A aposta é toda feita na qualidade da linha e leader fluorocarbono que temos. Há zero concessões a fazer, nem um centímetro de linha pode sair, sob pena de deixarmos o peixe entrar num buraco.
Se isso acontecer, é o fim. Assim sendo, mais vale ter fé, arreganhar o dente, dar luta ao animal, e fazer força para cima até perder o fôlego.
Se o conseguirmos levantar alguns metros, as nossas possibilidades aumentam substancialmente.
A dada altura, a meia água, sem contacto visual com o fundo, já podemos abrir um pouco o drag do carreto, e passamos mesmo a poder respirar. E descontrair um pouco o braço que segura a cana.
Os últimos 15 a 20 metros antes da superfície, garantem-nos o peixe. A essa baixa profundidade, mesmo que o peixe se desferre, a expansão dos gases internos e do volume da própria bexiga natatória, são suficientes para que o peixe suba por si, sem qualquer esforço.
Muitos peixes, pese embora a luta seja dura e metro a metro, chegam acima com o estômago fora da boca. É duro para nós, é duro para eles.
Não imaginam a força que tive de fazer para puxar este peixe de 130 mts de fundo... |
Testam-nos. As garoupas, depois de ferradas, testam-nos! Fazem uma força submáxima, e esperam a nossa reação. Se cedermos um pouco, aplicam então um pouco mais, reservando sempre algo para o derradeiro esforço.
Quando entendem que é chegado o momento, por volta dos cinco metros a partir do fundo, dão tudo, tentando voltar ao contacto com as pedras.
Isso pode acontecer ao fim de 15 longos e penosos minutos, em que apenas medimos forças, em que nada mais acontece que não seja a recuperação de 10 cm de linha.
Durante todo esse tempo, os músculos estão tensos, contraídos no seu limite, e pouco mais podem fazer que fazer força e …aguardar.
Uma garoupa “ Murianga” dá-nos uma sova de corpo desde que a ferramos até que a conseguimos içar para o barco. Acredito que uma carga policial do Corpo de Intervenção Rápida possa causar menos estragos nos nossos ossos, possa ser mais suave. Os cassetetes batem até o agente da polícia cansar o braço. As garoupas não, não se cansam, batem brutalmente até ao último segundo.
Tudo é esforço, tudo é cansaço. Ao fim do dia só queremos jantar e dormir um pouco.
Quando ele me dizia: “andam aqui nesta pedra umas garoupas grandes”… a leitura imediata que eu fazia era esta: ”meu Deus, …já aí vem mais pancada”!...
Ao longo do dia, o acumular de peixes pesados e fortes faz-nos desejar que….não piquem por alguns minutos. Queremos recuperar a respiração.
As deslocações de barco para outros lugares são recebidas com um entusiasmo anormal, como se o primeiro e único intuito da nossa presença ali fosse... não pescar.
Os pargos capatões sucederam-se, fiz bastantes, sempre de tamanho respeitável. São lobos esfomeados no fundo, atacam em cardume e não é raro desferrar-se um e haver contacto imediato de outro. |
Pescámos muito, pescámos bem, e eu aprendi a ser um melhor pescador. Não imaginam o quanto se pode aprender quando o professor se chama Luís Ramos!
Não imaginam a satisfação que tive em poder partilhar com ele os meus grandes momentos de felicidade. Durante seis dias fui verdadeiramente feliz e devo-lhe isso.
Há gestos que não se pagam em valores monetários, porque nos chegam de alguém que tem uma lógica de raciocínio que os dispensa. Trata-se de uma pessoa que fala de outra forma, com o coração, e isso deixa-nos aflitos, em dívida eterna.
Nunca lhe poderei pagar aquilo que fez por mim. Senti-me “paparicado” e protegido desde o momento em que recebi o seu convite para esta incrível aventura, meses antes, até que me deixou no aeroporto de Catumbela, já de volta a Portugal.
Encontrou soluções, mesmo quando as surpresas (!) dos serviços aéreos angolanos se apresentaram de forma muito…regular. Marcaram e desmarcaram voos, decidiram quando e como poderíamos voltar, sem que pudéssemos fazer algo.
Tendo pago cá 300 euros pelo transporte de um tubo de canas com 3 kgs, ida e volta, tentaram convencer-me que para as trazer de volta teria de lhes pagar mais 300 euros. Cada um faz a interpretação dos “regulamentos” que lhe parece mais lógica e no fim, sobra sempre termos de pagar algo mais. Temos o voo de regresso a Portugal para amanhã. OK, mas afinal …vão já hoje, daqui uma hora. Fazer malas a correr. Bom, mas afinal não é assim, vão então…amanhã, de novo.
O Luís a tudo respondeu com um sorriso, e a paciência de quem já ouviu muitas vezes aquela música. E resolveu.
Não fez mais por nós porque ninguém o poderia fazer. Tratou de tudo, absolutamente tudo.
Até os carapaus que pesquei eram grandes. Vejam bem o tamanho deste…chicharro. |
Gostava de vos poder dar uma ideia daquilo que é necessário fazer para arrancar um peixe destes do seu lugar. O filme que vão ver a seguir, foi editado, porque a meio da luta, e vendo como eu estava já desgastado, o Luís retirou-me a cana da mão por 20 a 30 segundos, para eu respirar um pouco. Não vão ver, porque o meu I-Phone ficou em cima da consola, de lente para baixo, e não valia mesmo a pena passar esse trecho de imagem. Mas registem que esta garoupa fez-me suar as estopinhas, e logo por “azar” não foi a única neste dia.
Naquela noite, adormeci em segundos e dormi profundamente…estava francamente cansado. Percebam o porquê:
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E os peixes foram-se sucedendo, cada um a colocar as suas dificuldades. E nenhum a ajudar!
A dada altura coloca-se a questão da coexistência pacifica entre o ser pensador que somos e o animal irracional que precisamos de ser para levar de vencida um oponente que apenas faz força.
Assumimos como uma verdade universal que a técnica vence a força bruta. Então vão dizer isso àquelas garoupas!
Elas não acreditam nisso!
Algo dentro de mim dava ordens que não são habituais. Fazer força é algo muito pouco natural em mim, que me assumo essencialmente como um pensador. Não tenho dúvidas de que serei muito mais forte de cérebro que de músculos.
Trabalho com canas ligeiras, com equipamentos tão leves que nem me ocorre ter de fazer força. Os meus peixes são douradas, são robalos, são pargos. E de repente...
De facto, tudo aquilo que somos enquanto pessoas acaba por desaguar num rasteiro e terreno... fazer força. E isso é muito estranho!
Os peixes grandes contêm em si mesmos uma qualidade de atracção, um poder de sedução que nos leva a eles, mas pagamo-los com língua de palmo.
Não deixa de ser um tremendo paradoxo pagarmos em sofrimento, em dores no corpo… a pesca que tanto nos encanta.
No próximo número vou trazer-vos mais algumas curiosidades desta expedição a Angola.
Há muito mais a dizer, sendo que o último artigo será dedicado ao monstro, a dita garoupa de 40 kgs….que mordeu seis vezes e que …não fiz.
Vítor Ganchinho
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Gostei de ver o Sr. Vitor no lugar do aluno! A acatar indicações! Peixes de uma vida, muitos parabéns!
ResponderEliminarOlá Pedro!
EliminarAquilo não são robalos...são peixes que podem ter mais força que nós.
Vai ver que nos próximos artigos aparecem uns peixes grandes a valer.
Como de costume, o melhor fica para o fim.
Abraço!
Vitor
.....belo ginásio esse Sr. Vitor e com um personal trainer como o Luis...uiiii. Só de ler mais este artigo Magnífico fiquei com os braços a doer 🎣💪 ...que peixes magníficos 👌
ResponderEliminarOi Simão!
EliminarVai ver os últimos artigos....
Na semana que vem saem mais dois.
As condições em que pescamos são muito duras, muito calor, humidade, e isso deixa-nos sem forças.
Ao fim de alguns meses o corpo já está habituado, mas ainda assim, para quem aparece apenas por uma semana, não deixa de ser duro.
Não perca os próximos números.
Abraço
Vitor.
Muitos parabéns por mais um excelente e genial artigo do que foi a nossa semana de pesca grossa nas águas de Benguela..😄👌 Deve ser o mais parecido com o curso dos comandos ou dos fuzileiros..😂💪
ResponderEliminarBom dia Luis.
EliminarNinguém merece sofrer tanto....
O curso de comandos quando comparado parece mais um curso de alfaiate, com corte e costura.
Vamos deixar o nosso pessoal ver mais qualquer coisa na semana que vem.
Há muito peixe para subir..
Abraço
Vitor
Boa tarde Vítor
ResponderEliminarNão há palavras para descrever.
Excelente.
Pascoa Feliz para Vítor, para Família e para a Excelente equipa do Blogue.
Grande Abraço
Toze
Olá Tozé
EliminarNão perca os próximos números, porque vai aparecer peixe grande....
Guardámos o melhor para o fim.
Em nome da equipa que faz o blog, um grande abraço e votos de boa Páscoa.
Vitor
Vítor Vou esperar ansiosamente.
ResponderEliminarObrigado
Abraço
Toze