Somos pescadores.
E ser pescador, aquilo que nos dá uma identidade individual mas também colectiva, não é um acto menor.
A pesca à linha enquanto actividade de lazer, (mesmo que não demasiado valorizada por quem não se interessa pela actividade e acha que somos apenas uns estranhos e pacientes seres, pescadores de botas e pouco mais…), é mesmo importante para nós.
Muita gente tem na pesca uma ocupação de tempos livres que lhe toma regularmente os fins de semana, é na pesca que encontra os seus amigos, é na pesca e no seu ambiente descontraído que se sente confortável.
Ser pescador dá-nos o bem estar de uma actividade ao ar livre, saudável, e ao mesmo tempo um sentimento forte de pertença a um grupo de pessoas que compartilha interesses e com as quais nos identificamos.
Até aí tudo bem.
Não devemos, ao abrigo deste espírito de grupo, aceitar que todos aqueles que pescam sejam considerados elementos válidos e representativos de uma corporação de pessoas que se pretende e considera séria, inteligente, urbana e recomendável. Há gente que, embora pesque, e por isso se auto-intitule de pescador, não merece pertencer a esta grande legião de entusiastas do mar.
Refiro-me concretamente a quem faz sucessivas e miseráveis pescas de exemplares imaturos, juvenis. Peixes com poucos centímetros de tamanho, com muitos hipotéticos e promissores anos de vida pela frente.
Infelizmente peixes que acabam prematuramente nas mãos de alguém que os mata sem escrúpulos nem vergonha na cara. E, não custa admiti-lo, depois de retiradas escamas e espinhas, … sem qualquer proveito.
Em termos de classe e de imagem pública, temos problemas por haver gente dentro desta família com comportamentos desviantes, que em nada abonam a figura de quem se esforça por actuar de acordo com padrões de conduta legais, ecológicos e responsáveis.
Há uma linha divisória entre uns e outros... |
Vivemos numa sociedade estranha, bipolar, em que alguns “pescadores” massacram peixes pequenos vitimizando-se ao mesmo tempo por não haver peixe. Atiram obviamente para cima dos outros as culpas. Lamentam-se e insurgem-se contra a pesca comercial.
Muitos daqueles que mais se queixam, são os mesmos que não hesitam em participar em matanças de inocentes, em apresentar baldes cheios de ...nada, (!!), uma “pseudopescaria” de dezenas de minúsculos peixes que, todos juntos, na verdade não são nada.
Se isso é feito às claras, à luz do dia, se as situações se repetem, então qual o limite, qual o risco vermelho que não pode ser ultrapassado? Qual a medida mínima de peixe a partir da qual se sentem envergonhados daquilo que fazem?
Pouco se faz para parar esta situação que a todos afecta. Um robalo juvenil de poucos centímetros é um peixe que a todos pertence, é património genético nosso e deve, e merece, ter tempo para crescer.
Impunemente, sabemos haver gente que continua a encher baldes de douradas de 12 cm nos esteiros dos rios, a massacrar pequenos sargos com anzóis minúsculos. Os ditos “anzóis mosca”….
Na imagem abaixo podem ver o interior do estuário do Sado.
Bem dentro, na zona da Carrasqueira, ou perto da ilha do Cavalo, há gente a pescar miudezas que fazem o seu crescimento dentro do rio onde nasceram. Esses seriam os futuros peixes adultos e fortes, a capturar fora, por todos nós, em mar aberto.
Mas são mortos quando ainda não têm capacidade para se defenderem; às mãos de quem a seguir vai alegar que pesca daqueles por “não haver mais nada”...
A pesca não é representada por gente dessa, da mesma forma que uma unha do dedo do pé não representa a totalidade de uma pessoa. A questão é que nem todos aqueles que estão longe do fenómeno da pesca entendem que esta gente actua de forma marginal, e não é representativa do todo, do grupo, da fileira dos pescadores nacionais. Toma-se uma pequena parte pelo todo e criticam-se os disparates como sendo algo comum e transversal a todos os pescadores. E não é assim!
Alguém suficientemente lúcido não confunde uma violenta e frenética perseguição de carros pelas ruas de uma cidade, aos tiros, de um qualquer filme de acção, com uma suave lição de condução em que alguém aprende calmamente a conduzir ao lado do instrutor.
Não é a mesma coisa, embora os meios sejam os mesmos: pessoas e carros.
Também na pesca temos pessoas e canas, mas todavia há atitudes bem diferenciadas, e não há nenhum fio condutor entre elas. Nada liga um qualquer desvairado que sai de casa e se dirige a um estuário de rio com um pacote de minhocas na mão, à procura de peixe juvenil, com um pescador que sai ao mar à procura de exemplares adultos. Não é igual!
Mas a opinião pública não sabe nem se preocupa em saber destrinçar entre uns e outros. Toma a nuvem por Juno, e mete tudo no mesmo saco.
Em termos de imagem, pagam todos por meia dúzia de desvairados irresponsáveis.
As consequências desta má imagem vão sentir-se muito em breve: há quem esteja a preparar legislação no sentido de obrigar todos os pescadores lúdicos a registar as suas capturas e transmitir por via electrónica a uma determinada entidade.
Vão ver que mais cedo que tarde vamos todos ter problemas por haver gente a “brincar com o fogo”…
Razões de sustentabilidade deveriam fazer-nos pensar. E enquanto atirarmos para os outros culpas que também são nossas, enquanto pensarmos “se não for eu será outro a levar este peixe para casa”… então nada vale a pena.
Os sinais de que o futuro não é sustentável desta forma, são muitos. Caso não se faça nada para alterar o estado das coisas, provavelmente um dia não teremos de nos preocupar em demasia em preservar, porque já não haverá nada a preservar.
Vejo a sustentabilidade como um valor primário, algo que deveria estar interiorizado em cada um de nós. Libertar peixes pequenos não deveria sequer ser motivo de interrogação.
Se já não é possível actuar sobre a consciência da geração que hoje pesca, e provavelmente só um nível de coimas avultadas os poderá fazer mudar de rumo, pois que se projecte para a próxima geração de pescadores o conceito de captura e solta de tudo aquilo que não é peixe adulto.
E o tempo de começar é hoje, porque não pôde ser ontem.
Passar valores ecológicos a quem se inicia é um dever de todos nós, é urgente, e devemos fazê-lo com a pressa possível.
Há assuntos que podem ser tratados com tempo. Se não é necessário empurrar os rios que correm para o mar pois eles sabem o seu caminho, há no entanto pessoas que, pese embora tanta informação disponível, ainda não entenderam que o único figurino que não é possível manter é este que temos. Não vai ficar igual porque não pode mesmo ficar igual!
Há que traçar directrizes claras à geração que vem a seguir, e tentar recuperar para formas de pesca mais sustentáveis aqueles que ainda possam ser recuperados, das gerações anteriores.
Os miúdos irão fazer o seu caminho, escolher o seu tempo de fazer acontecer as coisas, mas têm de ser ensinados desde tenra idade a preservar.
Com seriedade, com tempo, podemos fazer mais que aquilo que fazemos hoje. Não temos de correr, porque não é um processo de um dia apenas, mas é bom ter em mente que há um trabalho a fazer.
Ensinarmos aos nossos filhos como devem pescar já é um bom sinal. Eles farão o seu percurso de pescadores, irão criar a sua própria autonomia, e têm à partida uma vantagem sobre nós: mais informação.
Aquilo que lhes podemos passar não é só a transmissão de conhecimento, experiências vividas por nós, mas também princípios éticos de como fazer pesca.
O resto eles tratam. Não creio que necessitem de muita ajuda quanto a questões de entusiasmo. Não necessitam que o nosso entusiasmo possa despertar o entusiasmo deles, porque disso já eles têm em excesso!
Nós também o tivemos, no nosso tempo. Quem não se lembra da excitação do primeiro peixe?!
Ocorre-me este texto a propósito de imagens que me são enviadas por pessoas que insistem em dar conta de mais um ou dois baldes de peixes miúdos, obviamente sem as medidas mínimas legais.
Não publicamos tristezas dessas, antes as apagamos logo de imediato, por vergonha de podermos vir a ser confundidos como “parceiros” coniventes ou apoiantes de tais práticas.
Estamos bem longe disso.
Santa miséria!
Vítor Ganchinho
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Boa tarde,
ResponderEliminarDesde já agradeço a excelente reflexão e texto como já nos habitou ao longo de muito tempo.
É minha opinião que as novas gerações já se encontram melhor preparadas e sensíveis aos temas da sustentabilidade e ecologia. O problema é que não podemos esperar uma ou mais gerações para travar estes actos e outros crimes efetuados nos nossos estuários e orla costeira. Sendo o mar e orla costeira do nosso país um dos seus mais importantes ativos sociais e económicos, o investimento em fiscalização e patrulhamento dos mesmos deveria ser uma prioridade, com ganhos significativos a curto e médio prazo tanto a nível das pescas, turismo, ecologia e sustentabilidade.
Rui Alves
Boa tarde Rui Alves
EliminarEu não poderia estar mais de acordo consigo.
Assino por baixo a sua opinião de que esperar uma geração que seja, é desbaratar um património biológico que levou muitos anos a construir, e que pode, de um momento para o outro, ser desbaratado por meia dúzia de irresponsáveis.
Saí ao mar há dias. À passagem pela zona da Comporta, estavam a operar duas traineiras com artes de cerco, quase coladas uma à outra. A carga de peixe nas redes era de tal ordem que necessitavam de um barco auxiliar a fazer força em sentido contrário, para não adornar.
No fim daquilo tudo, o producto da venda vale tostões, (eles vendem 1 kg de peixe a pouco mais de 20 cêntimos....) enquanto que a perda de vidas daqueles peixes vale milhões. A maior parte dos peixes capturados, cavala, carapau, etc, vai servir para rações para animais, porque nem poderá ser vendida.
Há um limite de unidades vendáveis, a partir daí, é para farinhas....
No meio daquilo, irão pescar os predadores que estavam a seguir a comedia. E esses são capturados com redes de 1 cm de lado. A natureza não consegue responder a isso.
E a mim, há quem me envie fotos de "pescarias" com muitas dezenas de peixes de 10/ 12 cm de comprimento, para que eu publique...
Nunca! Comigo não...
Abraço!
Vitor