MUDAMOS O MAR OU... É ELE QUE NOS MUDA?

Quando capturo uma espécie que não devia estar nas nossas águas, sinto sempre um arrepio de frio na espinha. Aquele peixe não deveria estar ali, logo, algo não correu bem...
Tudo aquilo que altera a ordem natural das coisas significa que já aconteceram ou podem estar para acontecer problemas.
A foto que podem ver abaixo reporta-se a um serranídeo de nome “Serranus atricauda”, (Günther, 1874), ao qual muita gente confunde com a endémica Serranus cabrilla, a nossa vulgar garoupinha da pedra. A zona de Sines, onde pesco com frequência, está a desenvolver uma crescente população deste peixe.
Se as nossas “laranjinhas” são normalmente pequenas, não mais de um palmo, e são normalmente recebidas a bordo com algum desdém (pese a sua qualidade a acompanhar um bom arroz de tomate…), estas nem tanto, já que crescem um pouco acima de 1 kg, eventualmente 1,5 kg para os maiores exemplares. Diria até que, neste caso particular, não perderíamos pela troca porque as maiores avizinham os 50 cm de comprimento.
As nossas ilhas estão cheias delas e não há reclamações. Peixe fino, predador agressivo, excelente para a pesca desportiva com equipamentos ligeiros, e ainda melhor na cozinha.
A sua carne branca e firme, a permitir congelamento por meses, não é algo que possamos desprezar.
A questão é outra: que nicho de habitat irá colonizar que não esteja já ocupado? Há lugar para dois na mesma cadeira?
Como irá reagir a nossa garoupinha à presença de uma prima a competir por um espaço comum, sendo esta mais encorpada e mais possante?


Este peixe é um serranídeo voraz, e veio para ficar.


Cada vez mais comum, esta garoupa já existe entre nós há alguns anos, e isso prova que encontrou condições de habitabilidade que lhe servem.
Mesmo que sofram um pouco em águas mais frias, acredito que não será isso que a vai fazer recuar nos seus propósitos. Afundam, encontram as termoclinas e esperam que tudo melhore.
O facto de surgirem tão disseminadas na zona de Sines pode ter algo a ver com o fluxo de embarcações que atraca e larga águas de lastro naquela zona, para carregar productos da refinaria. Os óvulos presentes nos porões desses navios são largados e muito rapidamente se espalham pelas imediações.
Seguramente o Algarve já estará bem “servido” destes bichinhos, ou não fossem as suas águas tradicionalmente mais quentes, e passo a passo estarão também de viagem para o norte do país.
Lembro que a rápida mobilidade geográfica das espécies invasoras está umbilicalmente ligada a factores humanos, nomeadamente transportes de cargas. Desde que encontrem condições de vida aceitáveis os peixes, e outros, acabam por reclamar para sim uma parte do habitat selvagem.
Os erros cometidos nestes tempos de globalização, de transações comerciais de seres vivos para aquários e afins, são inúmeros. A criancinha chora e exige, os pais concedem-lhes o gosto e a dada altura o animal já é um “empecilho” a descartar, e vai…fora. Os períodos de férias são críticos, há que tomar uma decisão. Um lago, um rio, um sapal, uma praia, e a partir daí, é apenas uma questão de quantidade e oportunidade de reprodução.
Tartarugas, cobras e …peixes, tudo à solta na natureza.


Esta lançou-se sobre um novo jig da Little Jack, 30 gramas, cor cavalinha. Versão 2024. Não adianta devolver ao mar, porque elas não sobrevivem à diferença de pressão. Reparem nos olhos salientes…


Isto leva-nos a uma questão pertinente: o que podemos nós pescadores fazer para evitar a disseminação deste tipo de animais? Atrevo-me a dizer que pouco, muito pouco. A magnitude da tarefa excede em muito aquilo que podemos fazer com uma cana de pesca nas mãos.
O problema existe, não é de hoje, e leva-nos a pensar que as migrações de espécies são algo que aconteceu sempre, é essa a ordem natural das coisas e de pouco valem as tentativas de estancar estes acontecimentos.
São por vezes os acasos aquilo que traz e leva peixes para outras latitudes. E o fenómeno não se esgota assim, há muito a pensar e reflectir sobre a movimentação de aves, peixes, e até seres humanos.
E até, se quisermos, podemos meditar sobre algo que está ainda mais longe daquilo que é imediato, visível e óbvio: de que forma as nossas acções mudam a paisagem do mundo em que vivemos?
De que forma mudamos o mar ao actuarmos sobre ele, por exemplo esgotando os efectivos de uma espécie, potenciando a reprodução massiva de outros peixes?
Na verdade, de cada vez que tentamos brincar a Jesus Cristo, acabamos por nos prejudicar. Retirar ou adicionar uma espécie é algo que pode acontecer por alteração das condições climáticas, por ajustes na temperatura das águas, mas não devia ser algo induzido por humanos.
Há um estado de equilíbrio, e surgimos nós, com as nossas redes, anzóis, etc. E os nossos detritos urbanos, os nossos esgotos lançados directamente para o mar, e tudo muda nesse momento.
Tudo aquilo que altere o meio ambiente irá causar-lhe danos. Se damos preferência a um determinado tipo de peixe, modelamos a natureza, porque estamos a favorecer outros.
A partir daí, ao retirarmos de forma exaustiva um predador do seu meio marinho, as suas presas naturais desenvolvem-se a um ponto tal que acaba por provocar desequilíbrios imensos.
Somos, enquanto espécie super predadora, uma verdadeira lástima. Pomos e dispomos a nosso belo prazer, destruímos porque... sim, e no fim ficamos sempre mais pobres.


Um hélice corta a cauda de um golfinho. A partir desse momento, é um ser condenado. Encontrei este ao largo de Vila Nova de Mil Fontes, já putrefacto.


E como era antes?...

Longe vão os tempos em que as cidades e vilas ribeirinhas não passavam de pequenos aglomerados de casas com uma reduzida ligação ao mar. Nessa altura, (e situamo-nos antes da revolução industrial e de tudo o que ela viria a trazer em termos de deslocação massiva de pessoas), aqueles que pescavam eram conhecidos. Era este e aquele quem pescava, sabia-se o seu nome e sabia-se de onde vinha o peixe. A zona de pesca era a que estava disponível aos rudimentares meios disponíveis.
Se a saída era feita num barco a remos, era certo e sabido que o peixe era da zona. Nem podia ser de outra forma.
É precisamente a revolução industrial que vem colocar a exigência de mais e mais alimento. Mais pessoas concentradas, mais demanda de tudo e por isso, também mais peixe para consumo. E assim sendo, mudámos a relação de “forças” existente entre as espécies.
O equilíbrio natural desfez-se aí, com a procura de um ou outro tipo de espécies, alavancado por um valor comercial mais elevado. Isto parece-me claro: se o robalo tem um valor de 20 euros e uma cavala custa 2 euros, adivinhem a que peixe irá o pescador lançar as suas redes?
Na verdade não há um fundamento lógico na atribuição de um valor a uma determinada espécie que não seja a sua eventual raridade, ou a uma pressuposta “qualidade” acrescida.
Há muitos lugares onde uma lagosta não tem valor comercial….por ser banal. E há até lugares onde as pessoas não as comem.
Dou-vos um exemplo próximo, nosso: as ribeiras do nordeste da Ilha de S. Miguel, nos Açores, estão pejadas de trutas, algumas acima de 1,5 kg. Podem ser vistas e pescadas às centenas na Ribeira das Coelhas, na Ribeira dos Caldeirões, etc, etc.
No entanto, as populações não ligam por ser peixe de água doce. Preferem os “chicharrinhos”, ou seja, os carapaus pequenos. Esses sim, porque são do mar.


As ribeiras açorianas estão carregadas de trutas, sobretudo os poços. São às centenas...


Em povoados muito pequenos, sabe-se quem é o pescador, quem é o agricultor, quem repara alfaias. Isso permite localizar a proveniência do alimento, há um responsável, um rosto.
À medida que as cidades alargam as suas periferias, o efeito desvanece-se, e o alimento passa a chegar de forma incógnita, apenas aparece e pode ser comprado. E o peixe está aí, nesse lote.
Hoje as pessoas vão ao supermercado e compram peixe, mas não sabem quem o pescou, nem onde.
Alguém pesca, e pode fazê-lo a milhares de quilómetros de distância. Perde-se o rasto, a pista a quem o faz, e onde. Em vez da pessoa tal, passamos a falar da…”indústria pesqueira”.
E isso modela de forma irreversível a cidade, retira-lhe o carácter restrito da produção local. Passamos a falar de globalidade. E é pena. 
Da mesma forma que o mar e as ondas moldam o barco que é utilizado em cada região, também o peixe que existe molda as artes de pesca. E o pescador.
Por vezes devíamos parar um pouco e perceber quais as vantagens e desvantagens disto tudo...



Vítor Ganchinho



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