TEMOS DOURADAS? CAP I

Meus caros amigos, estamos no fim do ciclo anual de reprodução das douradas.
Nos últimos dois meses, muitos pescadores nacionais acorreram à cidade de Setúbal, a Meca nacional destes imponentes e curiosos espáridas.
Gente do norte, de Coimbra, do Alentejo, até do Algarve, fez a sua romaria às pedras onde elas habitualmente se juntam em cardumes.
Foram aos centos os pescadores concentrados em áreas restritas, bastante conhecidas, e que nesta altura do ano ficam sobrelotadas de embarcações.
Se a maior predominância de barcos aconteceu ao fim de semana, (e tudo é barco, todas as banheiras e alguidares de plástico servem para entrar na água e ir à pesca), também aos dias úteis de semana a afluência não deixou de ser significativa.
Há mesmo quem tenha tirado um mês de férias para fazer o “tempo das douradas”….
Pescou-se de manhã à noite, exaustivamente, experimentando aqui e a seguir ali, mudando de pesqueiros, lançando e recolhendo ancora, cortando caranguejos à tesourada. Caranguejos que, também eles, sofrem a delapidação natural de quem naquele período não lhes deu folga. Com patinhas e sem patinhas, aos triângulos e aos cubos, inteiros e cortados a meio, com casco ou sem, tudo o que vem à ideia de cada um, criatividade máxima na ânsia de pescar muito e encher as caixas.
É gente muito positiva, muito crente, e que ano após ano regressa a esta “miragem” da pesca à dourada. Infelizmente, e pese o fervor com que se reza, a maior parte das pessoas não teve grandes possibilidades de conseguir um único peixe.
Salvo ocasiões muito particulares, em que todos os astros estiveram alinhados, e por isso mesmo os resultados surgiram, a maior parte dos dias foi apenas mais um zero, mais um dia de ilusão.


A dourada. Este peixe leva as pessoas a perder a noção daquilo que fazem...


As razões são conhecidas: os peixes mais voluntariosos e descuidados já foram todos pescados. Sobra pouco peixe fácil.
Na verdade, ano após ano a quantidade de douradas reduz mais um pouco, e seria bom atentarmos nas razões que levam a isso.
São as douradas grandes, as maiores fêmeas, as que efectivamente têm potencial reprodutivo para depositar um maior número de óvulos. E essas têm vindo a sofrer uma erosão gradual mas sistemática no seu número de elementos disponíveis.
Ao longo das últimas três a quatro décadas vieram a ser pescadas de forma intensiva e diria eu... abusiva. Faz-se pesca exclusiva a este peixe durante um trimestre, e precisamente quando elas mais necessitam de descanso.
As grandes douradas do antigamente, peixes a avizinhar os seis a sete quilos, são hoje uma perfeita miragem.
Sobram assim os juvenis, projectos de jovens douradas que um dia chegariam a grandes, não fossem pescadas agora por quem faz delas um alvo relativamente fácil. Para os nossos melhores especialistas, pescar douradas não é difícil.
No tempo certo, leia-se no ciclo diário de alimentação certo, as luas certas, com condições de mar favoráveis, há quem seja muito eficaz a pescar este espárida. Aprendeu-se muito, treinou-se muito, e há hoje gente que sabe muito do oficio.
Os outros, todos os outros, limitaram-se a ver fazer, a tentar imitar, quase sempre com resultados apenas sofríveis.
O que não quer dizer que não tenham tentado, e isso significou muitas dezenas de barcos no mar, carregados de esperanças, uma verdadeira multidão de entusiastas da pesca à chumbadinha ou da montagem clássica vertical. Algumas se pescaram. 
Podem muitos deles fazer apenas figura de corpo presente, mas ao fim do dia, e por força do número de aficionados a lançar linhas e caranguejos, o inevitável desbaste nos stocks acontece.
Se a maior parte das pessoas não pescou nada, os outros, melhores tecnicamente, pescaram aquilo que ainda há, peixes curtos de tamanho, de idade e poucas ou nenhumas reproduções feitas.
E é aqui que está o busílis de toda esta questão! Não fica descendência para assegurar o futuro.
Pescaram peixes imaturos, jovens, não os peixes adultos e poderosos que hipoteticamente viriam a ser, com uma personalidade muito própria, com evidente carisma, com as suas dificuldades técnicas, mas sim algo que não chegou a ter anos de vida suficientes para se saber defender. Nem corpo para dar luta, para nos partirem as linhas.


Gravura antiga. Não é de hoje o fascínio que nos provocam.


Penso que ninguém no seu perfeito juízo defenderá que o momento ideal para pescar a este peixe é o período da reprodução. Os peixes estiveram a …reproduzir, a multiplicar-se!!
Todos sabemos que aquilo que se está a fazer ano após ano é abrir a galinha dos ovos de ouro à faca, para lhe retirar mais depressa os ovos de dentro. Estamos com pressa!
Esquecemo-nos de que os ovos chegam-nos à cadência de um por dia, espaçados, previsíveis, e que essa é a única forma de os obtermos: ser pacientes com os ritmos da natureza.
Aquilo que se está a fazer é acabar com os últimos reprodutores de douradas, e pouco mais...




Voltando à questão central: sabemos que há um momento crítico na vida destes peixes, o qual corresponde ao período pré-reprodutivo e reprodutivo.
Numa primeira fase, estes peixes procuram alimentar-se de forma a aumentar as suas capacidades físicas para o difícil período que vai chegar.
A sua hipersensibilidade a questões climáticas, nomeadamente à temperatura das águas, leva-as a cumprir um percurso que, ao fim de todos estes anos, é sobejamente conhecido.
Sabe-se onde vão estar e quando. E têm sempre gente interessada em lhes fazer chegar um anzol, ou uma rede.
Se é verdade que temos gente que as pesca e bem, teremos muito menos pessoas que as conheçam verdadeiramente.
Ano após ano tento passar alguma informação, no sentido de sensibilizar as pessoas a não participarem desta “degola dos inocentes”. Penso que pessoas informadas terão mais capacidade de análise e, sabendo o que estão a pescar, e porquê, serão mais capazes de entender a necessidade de libertar douradas juvenis, em caso de captura acidental.


Estes peixes exercem um enorme fascínio sobre todos aqueles que os tentam pescar.


Gosto de vos fornecer informação, porque é isso que pode fazer a diferença. Vejamos alguns dados técnicos:
Sendo um peixe essencialmente costeiro, ainda assim é possível, em algumas alturas do ano, detectar douradas em cotas na ordem dos 150 metros de fundo. Mas esse não é o padrão, aquilo que é normal é que faça a sua vida bem próximo da costa, em fundos mistos, de pedra e areia, com bancos de mexilhão, perceves, lapas, ostras, por perto.
Nos momentos de alguma turbulência, procuram nas areias levantadas os bivalves e caranguejos que tanto apreciam. Estão particularmente adaptadas a este tipo de alimentos pois dispõem de um tipo de dentição altamente especializado em arrancar e esmagar as conchas mais resistentes. Vejam abaixo detalhes sobre a sua dentição:


Os dentes frontais arrancam da pedra, os molares esmagam e mastigam. Vejam a dificuldade que os nossos anzóis enfrentam para penetrar nesta boca.


Os cardumes reúnem-se em mar aberto e iniciam a sua migração anual na direcção dos estuários. A primeira intenção é a de proceder à desova dentro do rio, em ambiente propício ao desenvolvimento dos alevins.
Já dentro do estuário, alimentam-se de bivalves, ostras, mexilhões, anelídeos, etc, mas também de camarão, e inclusive de pequenos peixes. Tudo apontaria para uma conjugação perfeita de factores a levar a uma desova bem sucedida.
Mas é sol de pouca dura, o rio que as acolhe acaba por fazê-las retirar apressadamente ao fim de algum tempo. E porquê?
No próximo número vamos ver como se inicia o processo reprodutivo, e a razão de ser das douradas cumprirem todos os anos um circuito conhecido entre o Sado e as pedras mais próximas da foz.



Vítor Ganchinho



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2 Comentários

  1. se as dorada viessem desovar a costa, aí de certeza que o pescador de cana era proibido de as pescar, como acontece com os sargos na costa vicentina e depois chamam defeso

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    Respostas
    1. Bom dia! Continue a ler a sequência deste artigo.
      Certamente terá algum detalhe que ainda não conhece.


      Obrigado pelo seu comentário.


      Vitor

      Eliminar
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