TEMOS DOURADAS EM SETÚBAL? CAP II

As nossas sadinas douradas preparam a sua reprodução conforme sempre o fizeram desde tempos ancestrais, dentro do estuário do Sado.
Porém, algo tem vindo a mudar nos seus hábitos, na segurança das suas posturas, e não necessariamente para melhor. Progressivamente, a desova deixou de ser feita dentro do rio pois aí os peixes já não encontram condições favoráveis para que isso aconteça.
Com efeito, as douradas sofrem hoje com vários factores ambientais negativos, sendo dois deles mais impactantes que todos os outros.
São eles, a saber: o sobreaquecimento das águas por força da exposição solar, (o qual decorre de forma directa dos efeitos do aquecimento global) e o segundo factor, o qual se prende com a crescente e massiva utilização de pesticidas na produção de arroz, nos campos de Alcácer do Sal.
Seria possível mencionar outras causas, a pressão de pesca profissional, a pesca lúdica a exemplares juvenis, etc, mas são os dois primeiros, actuando em paralelo, aqueles que mais decisivamente contribuem para a sua debandada para o exterior.
A qualidade das desovas é substancialmente mais baixa, e a expectativa de sobrevivência dos alevins é bem mais reduzida. Com o consequente empobrecimento do valor percentual de peixes que chegam a adultos.
Vejamos hoje como acontecem e quais as consequências de ambos os processos, em separado.


A natureza brinda-nos com momentos de luz incríveis. Fiz esta foto no caminho de Setúbal a Sines.


A falta de oxigénio

Dentro do rio, a natural ausência de turbulência, ondas e ressaca, a baixa intensidade do vento, sobretudo matinal, e as calmarias de tempo quente e seco promovem nas zonas mais recônditas dos esteiros águas muito paradas, quase estagnadas.
A constante presença de fertilizantes (resultantes da escorrência dos trabalhos de agricultura feita nas margens do Sado), os dias de sol intenso, as temperaturas altas, durante semanas sucessivas próximas ou acima de 40ºC, criam condições propícias para o crescimento de algas, fitoplâncton, bem como de bactérias. Neste caldo de nutrientes, estranho seria que não acontecessem excessos, e eles revelam-se através de uma densidade anormal destes micro vegetais.
As águas tornam-se verdes, ficam uma “sopa” de algas.
Mas esta é a parte positiva, águas verdes são sinónimo de nutrientes, de matéria prima para a criação de vida animal. Não vem mal ao mundo que exista matéria vegetal deste tipo, ela será aproveitada pelo zooplâncton, e estará na base de uma cadeia alimentar que irá crescer até aos grandes peixes da nossa costa. O problema não é a existência de microalgas, é sim o tempo em que ela acontece, o excesso, e pior, o efeito que este excesso provoca na qualidade da água dentro do rio.
Esta biomassa de algas consome imenso oxigénio, num momento e local em que ele não abunda, e precisamente quando as douradas mais dele necessitam.


O efeito do sol directo aumenta exponencialmente a produção de algas, e empobrece a água do seu teor de oxigénio.


Por força das temperaturas elevadas, da quantidade de horas de sol directo, esse precioso gás reduz a sua presença no meio líquido.
Ao mesmo tempo, as algas proliferam e, pese libertem bastante oxigénio para a atmosfera por efeito da fotossíntese, (bom para nós) concorrem ainda assim com os peixes no consumo do oxigénio dissolvido na água.
Se para os humanos isso representa uma benesse, (alimenta-nos a atmosfera que respiramos de algo vital para nós), já para os peixes nem tanto, pois retira-lhes o oxigénio quando ele lhes é mais necessário.
Corresponde o desenrolar deste processo ao final do período de Verão e início do Outono, precisamente quando se joga a cartada decisiva do início da reprodução das douradas.
Em termos fisiológicos, aquilo que acontece é que a rarefacção do oxigénio combinada com as altas temperaturas obrigam as douradas a um aumento do seu ritmo metabólico, acelerando-lhes o ritmo da respiração.
Cada grau centigrado a mais obriga a uma aceleração do metabolismo fisiológico do peixe, até chegar a níveis intoleráveis. No limite, se permanecerem no local, os peixes morrem.
Recordam-se de ver imagens de peixes mortos a flutuar em barragens com pouca água? Morrem porque a água quente liberta o oxigénio para a atmosfera, e empobrece deste gás até um ponto em que já não é possível a um peixe continuar a respirar.
Relativamente às nossas douradas o processo é idêntico, sendo que no caso de água doce, os peixes estão reféns de um espaço limitado. As douradas podem escapar e por isso saem para o mar.
Tudo aquilo que estes peixes fazem responde a estímulos ambientais exteriores que para nós nada dizem, mas para elas são tudo. Nós colocamos mais ou menos roupa, hidratamos mais ou menos, procuramos sombras, mas elas infelizmente não têm isso no rio.
O metabolismo das douradas é de tal forma sensível que uma simples passagem de 25 para 27ºC pode aumentar o seu consumo de oxigénio enormemente.
As douradas são muito sensíveis a altas temperaturas, (de resto têm como limite de tolerância vital valores que o Sado atinge facilmente nas suas zonas mais baixas, em águas paradas, a rondar os 35ºC em locais com menos de 1 metro) e qualquer pequena mudança térmica obriga a uma correcção da profundidade a que querem e podem situar-se.
Porque dispõem de sensores térmicos muito afinados, quando estes lhes transmitem que os valores estão próximos do ponto crítico, respondem a um sinal de alarme interno e iniciam uma debandada geral.
Esta saída, não sendo “combinada”, acontece no espaço de poucos dias, leia-se uma a duas semanas, pois cada um dos peixes responde a critérios que são comuns a todos, e por isso as suas reacções são muito uniformes.
Quando sai uma, as outras saem, porque as razões são as mesmas. Estudos indicam que os 28ºC são o limite para que a saída se inicie, e não é difícil que as temperaturas atinjam esse valor, em zonas de águas rasas.




Os químicos na água

O segundo motivo da sua saída esse coincide com as primeiras chuvas. É simples: as primeiras águas de Setembro promovem o arrasto de sedimentos para o rio, e isso é positivo. Mas trazem também os pesticidas lançados ao solo por mão humana.
Já aqui no blog vos expliquei em detalhe este segundo factor, (a forma como se processa a entrada de químicos anti herbicidas na vala real que desagua no Sado), mas se querem uma achega ao assunto é algo como isto: a vala real que sai da Barragem de Sta Susana traz água que é utilizada pelos agricultores que plantam o arroz. O processo é conhecido, e posso dar-vos uma ideia em traços largos: eles levantam as tampas das comportas e a água da vala inunda os campos de arroz.
A dada altura, e já com o arroz nascido, lançam herbicidas para conter o nascimento de ervas daninhas que concorrem com o cereal. Quando o arroz está feito e é momento de colher, deixam sair a água através das comportas da vala, para secar o campo e poder fazer entrar as ceifeiras.
Nessa altura, a água da vala fica altamente contaminada pelos pesticidas. A chuva faz o resto, transporta-a direito ao Sado, onde entra pelo canal contíguo ao Museu do Arroz.
Os químicos entram no fluxo de águas das marés e ao serem detectados, obrigam os peixes a procurar outros locais para desovar.
Todos estes factores combinados jogam contra os nossos peixes.


Cá fora, as douradas encontram águas com muito mais qualidade.


E cá fora? Como reagem as douradas ao chegar fora do rio?
Dada a enorme dimensão do espaço a considerar, os factores que levaram as douradas a sair do rio acabam por se diluir na imensidão do oceano.
O “caldo verde” das águas, soprado pelo vento dominante a 315º, o noroeste-sudeste, esse acaba por influenciar toda a limpidez do mar a sul de Troia, projectando os sedimentos do rio até perto de Sines.
Mas não é de visibilidade que elas se queixam, mas sim de ter ou não ter oxigénio para respirar, e isso, cá fora está garantido. Os nossos peixes selvagens são naturalmente, por definição, resistentes e saudáveis, e se saem do rio é porque a sua sobrevivência fica em risco. Os seus parâmetros fisiológicos têm de ser cumpridos, sob pena de o peixe entrar em colapso.
Não é por falta de alimentação, o rio está pleno de recursos naturais e não é por aí, é sim pela rarefacção de oxigénio (fenómeno crescente à medida que o aquecimento das águas acontece...) somado à presença de químicos.
A dourada, sensível que é a esses químicos e pressionada pela rarefacção dos níveis médios de presença de oxigénio, faz a sua saída do rio.
Já cá fora, estão longe de ter terminado os seus problemas.
Estacionam em pedras como o Zimbralinho, o Mar Negro, as Salgadeiras, as Casinhas, etc. As primeiras chuvas e abaixamento de temperatura forçam-nas a afundar um pouco mais e aí, as pedras são conhecidas, as técnicas de pesca sobejamente conhecidas.
E morrem milhares de douradas todos os anos.
Vejam aqui um filme feito na Marina de Sesimbra, onde encontrei esta dourada com cerca de 3 kgs a alimentar-se de mexilhão.
Peço desculpa pela falta de qualidade da imagem, mas estava longe e o zoom do telemóvel estragou a imagem.

Clique na imagem para visualizar e na rodinha das definições para melhorar a qualidade.


O futuro destes peixes é negro porque nada as ajuda.
Não sei se conseguem estabelecer uma relação directa entre estes dois fenómenos: com a saída obrigatória das douradas para mar aberto, e sendo as posturas efectuadas muito longe do estuário do Sado, ou do Tejo, os alevins terão um percurso demasiado longo a percorrer para conseguirem chegar sãos e salvos a um espaço seguro. Fora, em mar aberto, são presa fácil de tudo aquilo que os procura avidamente.
Quantos de vós já viram cardumes a alimentarem-se perto da superfície? Peixes como as cavalas, os carapaus, os peixes agulha, etc, etc, esperam estes indefesos viajantes, e cobram-lhes um preço demasiado alto: a sua vida.
O impacto deste fenómeno vai fazer-se reflectir no número de douradas disponível, muito mais que as pescas, quer de redes quer de anzol.
Mas nós não estamos a ajudar em nada. Neste contexto, tudo o que signifique pescar uma dourada mais é contribuir para uma rarefacção desta espécie de peixe.
Porventura passaremos a ter muito menos douradas, pois as que ficam vão ser as que forem capazes de alterar os seus hábitos gregários, os seus locais de desova, inclusive a sua própria alimentação.
Ficarão aquelas que souberem passar a frequentar espaços onde nós não as procuramos, a comer aquilo que nós não lhe oferecemos, a reproduzir em momentos que não são aqueles que nós conhecemos.
E aí, passaremos a ter um outro peixe, que sendo uma dourada, já não é …a nossa dourada!



Vítor Ganchinho



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