SATOH SENSEI - SENTADO AO COLO DE QUEM SABE...

Há momentos na vida de uma pessoa que são marcantes.
Muitos deles, só anos mais tarde chegamos a perceber o quanto se tornaram decisivos na nossa evolução.
Em termos de pesca, estar com mestre Satoh sensei terá sido para mim um marco na minha vida. Perceber como afina os seus jigs, e as razões para o fazer de forma tão precisa, é algo que não esquecerei.
Poder acompanhar todo o processo de acabamento técnico de um jig é algo muito interessante, e bem mais complexo que aquilo que vocês possam pensar.
Receber nas minhas mãos, como oferta, o resultado final desse trabalho é ainda mais gratificante.
Quem o conhece bem diz-me que nunca Satoh ofereceu um jig trabalhado por si a ninguém. Ele prepara e guarda as peças metálicas para si, e é entendível que assim seja já que falamos de horas de meticuloso trabalho.
Quando recebi a oferta daquele jig eu estava a ser colocado num espaço muito restrito no seu coração. Quando me convidou a passar o dia seguinte com ele, em sua casa, aí eu senti que estava a entrar num espaço sagrado.
E aceitei, em meu nome pessoal mas também em nome de todos aqueles que fazem o favor de me acompanhar aqui no blog.


Satoh sensei trabalha num projecto de desenvolvimento de jigs há alguns anos.
A Evergreen tenta acompanhar tecnicamente os desejos do seu mentor. Dá-lhe os seus melhores engenheiros, materiais para experiências, carta branca para poder decidir durante o processo criativo. E recolhe economicamente os dividendos do seu trabalho.
O japonês, de 67 anos, responde com produtos de excelência.
Pediu-me para lhe dizer que tipo de jigs iria utilizar daí a semanas, aquando da minha visita ao Luís Ramos, em Angola.
Porque iriamos pescar na ordem dos 130/ 150 metros, e porque gosto de pescar um pouco mais ligeiro, sugeri os 180 gramas. Vasculhou numa das suas caixas de material e pegou num jig da nova série “Sato jig”, a Ocean Fleet.
Mostrou-me um comprido e baço pedaço de chumbo. Eu seria incapaz de pescar com aquilo.

Começou por dar simetria à peça de chumbo, utilizando para isso uma calha em madeira, com rasgos, feita por si. A seguir começou a polir com um X-ato velho.

A seguir, as suas mãos ágeis pegaram num velho x-ato de cabo amarelo e começaram a raspar a oxidação.
Explicou-me que não o podia fazer com uma lâmina nova, porque a ideia não era cortar mas sim raspar. Aos poucos o brilho do chumbo novo fazia-se notar.
E mais e mais, e os seus olhos miravam o brilho e equilíbrio da peça e viam aquilo que mais ninguém conseguia ver.
Passou-me o jig para as mãos. Quis que eu sentisse o que estava a fazer. E eu não cheguei lá, não consegui acompanhar o seu raciocínio.
Para mim, o jig estava pronto a pescar. Da peça metálica saltava agora um brilho reluzente. O que poderia faltar mais?!

A peça de madeira de que vos falo.

Mestre Satoh sensei não estava satisfeito. Foi à procura de uma régua e aplicou-a sobre o jig. As luzes deixavam um rasto lateral de quase uniformidade de sombra.
Porque o jig era ligeiramente abaulado, seria pressuposto a sombra ser exactamente simétrica. Mas ainda não era. O japonês meteu mais à obra e continuou a raspar. E volta a medir e a raspar mais e mais. E mediu de novo.
Pediu-me para voltar a analisar a peça. Eu vi que estava bom. Os olhos dele viram que não estava bom. E continuou a raspar o chumbo brilhante por muitos minutos.

Vejam o filme:

Clique na imagem para visualizar e na rodinha das definições para melhorar a qualidade.


Os acessórios que utilizou para trabalhar o jig.

A dada altura pediu-me para ser eu próprio a fazê-lo. Tentei dar o meu melhor ao sentir-me observado por muitas dezenas de pessoas que assistiam a alguns metros à sua explicação.
Toda a gente estava em suspenso da sua decisão, do seu conhecimento. No fim o jig teria de estar perfeito. Absolutamente perfeito. Explicou-me que bastava um milésimo de matéria a mais num dos lados para que o jig passasse a ter uma "queda", uma tendência para cair para esse lado. E ele queria-o simétrico, para planar o máximo de tempo possível. 
Leiam nisto uma manifestação de sapiência, uma demonstração de enorme capacidade técnica. Quanta exigência, quanta perfeição! Todo aquele trabalho por uma milésima de milímetro.
Voltou a passar-me o jig para as mãos. Eu não consegui ver a menor imperfeição. E ele também não.
Pegou no jig, poliu passando as arestas de um estilete de ponta metálica afiada, pressionando bem forte com a parte lateral, e senti que os seus olhos sorriram. Estava satisfeito.
Passou-lhe um guardanapo de papel e pediu-me que voltasse a medir o ângulo de entrada da luz. Estava absurdamente simétrico! Incrível!
Faltava, e para mestre Satoh falta sempre algo, garantir de novo que o jig estava direito sobre o seu eixo. Encontrou uma régua de madeira à qual fez alguns entalhes e depois de alguns ajustes, garantiu que estava plano, sem curvas.
Da sua testa escorriam gotas de suor. Os projectores de luz debitavam o seu preço.
Digo-vos que sei algo sobre a sua saúde que obviamente não irei revelar aqui, mas ajudam a perceber o esforço que estava a fazer. Estava cansado.

Um dos grandes vultos mundiais da pesca à linha: Norihiro Satoh

Foi à arrecadação do stand da Evergreen e trouxe uma caneta de feltro. Assinou o jig e entregou-mo na minha mão.
O grande Satoh sensei estava finalmente satisfeito com o seu trabalho.
_Vitor, é teu! Pesca um bom peixe com ele…

Respondi-lhe: "…mas mestre Satoh, …como posso eu sequer pensar em lançar este jig à água?!….e se algum peixe o leva?…"

Sentiu a minha ingénua pergunta como um sinal de respeito. Os seus olhos sorriam, a sua alma estava em paz. 
Estávamos ambos felizes e certos de que há pontes que só o respeito mutuo e o carinho humano constroem.

Absolutamente exausto depois de 17 horas de voo, mais algumas de espera entre ligações, com um fuso horário de 9 horas, ….mas feliz.


O resultado final de muito tempo de trabalho. Dezenas de pessoas ficaram a olhar para mim pensando qual a razão de ter sido eu o escolhido para ficar com este jig, autografado.

São momentos….e devemos desfrutar deles por nós e por todos aqueles que gostam de pesca e não puderam estar ali.
A este nível não se pode exigir menos que tudo e eu estava a desfrutar como nunca de estar ao lado dele.


Vítor Ganchinho


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4 Comentários

  1. Boa tarde Vítor

    Estou sem palavras para descrever o que sinto ao ler estas linhas.
    Muito obrigado por tudo, pela partilha de tamanho conhecimento e por nos trazer estes momentos.
    Abraço
    Toze

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    Respostas
    1. Bom dia grande amigo! Eu acho que vai ficar feliz quando chegar ao fim desta sequência de sete ou oito artigos sobre o Japão, e muito especialmente aqueles dedicados ao grande Satoh.
      Vai perceber porque é que ele é considerado o maior génio da pesca vivo.

      Espere por mais, vai ficar surpreendido.

      Grande abraço!
      Vitor

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  2. Pedro Evangelista26 março, 2024

    Sr. Vitor, por favor não deixe o jig encalhado no fundo mar. Não o use. Faço-o uma das peças centrais da sua loja. Atrás de uma vitrine. Quero ter oportunidade de o ver

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    Respostas
    1. Olá Pedro! O jig está seguro.

      Estive em Angola e não o levei, propositadamente.
      DE resto em Angola perdi uma dezena de jigs, a maior parte deles à conta de uns miseráveis peixes, de nome baiacú, que são infames porque nos cortam as linhas PE. Acham-lhes graça, têm dentes ultra afiados, e, quer no fundo quer mesmo à superfície quando temos o jig no fundo, ...cortam!
      Muitas vezes perdemos 130 metros de linha à conta disso. E acabamos de montar tudo de novo, vem de lá um outro sacana daqueles e...corta.

      Por isso não levei o jig do mestre Satoh.
      Vai estar à sua disposição, para que o veja, na GO Fishing em Almada, para o próximo workshop. Vamos ter de marcar, mas isso terá de acontecer num dia em que exista muito mau tempo, para não obrigar as pessoas a não irem à pesca...


      Abraço
      Vitor

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